Formação docente deve incentivar trabalho colaborativo
Em evento realizado em São Paulo, António Nóvoa defendeu a necessidade de um espaço dentro da universidade para discutir formação de professores
por Maria Victória Oliveira 1 de agosto de 2016
“Se a profissão docente não superar as suas dificuldades e não assumir uma dinâmica coletiva de atuação, nós não teremos condições de resolver nenhum dos problemas das nossas escolas.” Essa foi uma das colocações realizadas por António Nóvoa, educador português e ex-reitor da Universidade de Lisboa, na última quinta-feira (28), em um encontro promovido pelo Instituto Singularidades e o Instituo Ayrton Senna, sobre “Formação de professores na atualidade: currículo e formação da identidade docente”.
Durante sua exposição, que aconteceu na sede do Instituto Singularidades, em São Paulo, o educador fez um paralelo inusitado entre a formação de médicos de Harvard e a formação de professores, como a reflexão sobre a escolha profissional. Trazer algumas ideias da instituição norte-americana, segundo ele, pode ajudar na formação inicial de docentes no Brasil, que sofre por não ter um lugar próprio, uma “casa comum” dentro da universidade para discutir a preparação dos novos professores.
Segundo ele, é preciso que os futuros profissionais da educação, ainda enquanto estudantes, conheçam a realidade das escolas. “Desde o primeiro dia, nós temos que dar um jaleco aos jovens professores. Isso significa levá-los às escolas e à sala de aula, para conversar com pessoas que estão na profissão há muito tempo. É levá-los a participar destas comunidades profissionais.”
De forma descontraída, ele mencionou uma pergunta organizadora que raramente é feita durante a elaboração dos programas de formação de professores. Nóvoa defende que não se deve questionar o que os professores precisam saber ou quais conhecimentos devem ter. É preciso que os futuros educadores perguntem: “como é que eu, pessoa, me formo um profissional, encontrando a minha maneira própria de ser professor, em conjunto com outros profissionais, pesquisando e agindo no espaço institucional da escola, sem nunca esquecer o exercício público da minha profissão?”
Para responder a essa questão, ele falou sobre um conjunto de cinco disposições necessárias em um programa de formação que possibilite um universitário se tornar professor. São elas: disposição pessoal, composição pedagógica, interposição profissional, proposição institucional e exposição pública. Esse conjunto de disposições surgiu a partir do questionamento: como transformar uma pré-disposição, uma vontade ou motivação a ser professor, em uma posição profissional?
Na esfera da disposição pessoal, Nóvoa defende que é impossível formar um professor se não houver espaço e tempo suficiente dedicados a um trabalho de autoconhecimento e autorreflexão. “Se a profissão não for a tradução para uma disposição dos dilemas pessoais e da história de vida, é muito difícil fazer a formação de professores.” Em seguida, na composição pedagógica, ele defende que não existem dois professores iguais, que cada um ensina da sua maneira. Isso significa, portanto, que os novos educadores precisam elaborar uma pedagogia e modo próprios de ser professor, possibilitando que cada um dê o seu contributo para a melhoria e renovação da profissão.
Quanto à interposição profissional, Nóvoa defende uma socialização de trabalho. Segundo ele, é preciso que isso aconteça desde o primeiro dia na faculdade, ensinando os jovens a conquistarem a sua posição no interior da profissão. Essa necessidade é ressaltada pela transição que a profissão está passando, de uma dimensão individual para coletiva. “A ideia do professor que fica com a sua sala de aula e com os seus alunos acabou. Hoje nós temos um conjunto de professores, no conjunto da escola, com um conjunto de alunos, a organizarem um trabalho. Essa dimensão coletiva é absolutamente central e, infelizmente, muitas vezes está ausente nos programas de formação.”
Confira a série do Porvir sobre Formação de Professores
A proposição institucional, por sua vez, é aprender a conquistar um espaço dentro da escola. Nóvoa, que foi reitor da Universidade de Lisboa, reconhece que essa não é uma tarefa fácil, pois existem conflitos entre os profissionais. “As nossas escolas exigem um trabalho coletivo entre os professores. Isso é matricial desde o momento da formação inicial, quando o futuro professor ainda tem 18 anos. Se não fizermos isso, não adianta dar aulas muito bonitas e dizer aos alunos que eles têm que colaborar entre si. Isso tem que acontecer na própria maneira como nos organizamos no interior do nosso espaço de formação.”
Em entrevista ao Porvir, o educador defende que a melhor maneira de mostrar aos futuros professores sobre a importância do trabalho colaborativo é o próprio universitário usar métodos coletivos em sala de aula. “Se o aluno não realizar essas práticas dentro da universidade, quando for professor também não vai fazer com os seus alunos.”
Por fim, a exposição pública é a capacidade de trabalhar no espaço da comunidade, o que Nóvoa chama de “espaço público da educação”. Ele defende que o professor é uma figura frágil nas esferas públicas de decisão. “Portugal tem cerca de 100 mil professores. É a profissão de nível superior mais numerosa do país. Mas a participação nas esferas públicas de decisão é praticamente zero.”
O problema central da formação no Brasil
Durante sua exposição e o debate que seguiu, Nóvoa demonstrou que conhece, e muito, o sistema educacional do Brasil. Em entrevista ao Porvir, ele defende que as condições institucionais são de extrema importância na formação dos professores. “Eu tendo a achar que o problema principal da formação inicial de professores no Brasil é a falta de um lugar dentro das universidades, a tal da ‘casa comum’, um lugar onde é pensada a maneira como se forma um professor”, mencionou, já que em grande parte das instituições brasileiras é comum os cursos deixarem conhecimentos técnicos na responsabilidade de departamentos, enquanto a faculdade de educação costuma cuidar das disciplinas voltadas para a preparação do profissional enquanto professor.
Para o educador, é muito difícil dar coerência a formação inicial enquanto esse espaço de diálogo não existir. Apesar dessa carência, ele defende que algumas iniciativas no sentido de proporcionar essa ‘casa comum’ vem surgindo no Brasil. “A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, está trabalhando numa ideia que eles chamam de ‘Complexo da Formação de Professores.'”
Apesar desse ser considerado “o problema central” da formação de professores, muitos outros pontos da educação ainda não estão de acordo com as crenças de Nóvoa. Entre eles, o modelo de avaliação. Ele defende que, sem avaliação, não há educação. Entretanto, é preciso que seja uma avaliação formativa, que ajude os alunos a superar as dificuldades e a ir mais longe, seja no mundo digital ou fora dele.
O educador também argumenta que é normal que professores tenham que ser sensibilizados para o uso de tecnologia e das informações que surgem a partir do uso de objetos digitais de aprendizagem. “Tudo que tem a ver com a cultura digital está dentro das escolas, está nos alunos. Portanto, é normal que o professor tenha que se familiarizar com isso”. Entretanto, ele argumenta que é mais provável que essa formação tecnológica aconteça no dia a dia, no próprio exercício da profissão. “Eu não recuso que a natureza dessas ferramentas seja ensinada na formação. Mas eu sei que vai ser na utilização diária, com ajuda de colegas, que muitas transformações irão acontecer. É nesse trabalho coletivo, onde uns sabem mais, outros sabem menos, com apoio dos alunos, que as coisas acontecem.”
A sua experiência como reitor também interferiu na posição sobre criação de cursos de formação continuada. Nóvoa acredita que a grande dificuldade dos professores é encontrar, dentro da profissão, maneiras de adaptação a novas realidades. “Eu resisto muito a criar novos cursos. As pessoas fazem e depois descobrem que não ajudou. Essa formação descontextualizada nunca deu um bom resultado. É preciso construir uma formação em contexto profissional, uma formação que esteja dentro da própria ação do professor, que é muito mais útil do que cursos genéricos onde a pessoa vai aprender um monte de conteúdo e depois não utilizar nada.”