Como colocar em prática uma gestão escolar decolonial e antirracista?
Diretora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, em Salvador (BA), Cristiane Coelho compartilha como os saberes ancestrais negros e indígenas constroem o currículo e apoiam o dia a dia da unidade
por Cristiane Coelho 22 de setembro de 2023
Inaugurada em 2018 na cidade de Salvador (BA), a Escola Afro-Brasileira Maria Felipa tem como objetivo a emancipação de crianças pretas e a construção de uma sociedade mais crítica e reflexiva. Nossos grupos, da educação infantil ao ensino fundamental 1, recebem nomes de reinos e impérios africanos e indígenas. Contamos, atualmente, com 79 educandes e uma equipe composta por 34 pessoas majoritariamente negras: apenas 2% são brancas.
Maria Felipa é a primeira escola afro-brasileira registrada pelo MEC (Ministério da Educação), com um currículo trilíngue (Português, Inglês e Libras). A idealizadora da escola, Bárbara Carine Soares Pinheiro, estava em processo de adoção de sua filha e esse foi o grande motivo para criar a escola: ela achava necessário encontrar um espaço educacional que fortalecesse a identidade de uma criança negra. Bárbara começou a sonhar e, desse sonho, nasceu um projeto político-pedagógico desafiador, emancipatório e lindo. Surgiu a tão amada Escola Maria Felipa.
➡️ Clique aqui para baixar o PDF “Do epistemicídio à insurgência: o currículo decolonial da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa (2018-2020)”
A escolha do nome desse projeto precisava ser forte, potente e ancestral. Pensando no processo de apagamento histórico intencional de heroines brasileires que tanto contribuíram para a formação identitária e social do nosso país, a escola não poderia ter sido batizada com o nome de uma outra figura senão Maria Felipa.
Mulher negra, escravizada liberta, marisqueira, trabalhadora, intelectual, organizadora social, estrategista e aguerrida, Maria Felipa de Oliveira (data incerta — 4 de julho de 1873) organizou e liderou um grupo diverso de pessoas na Ilha de Itaparica com estratégias para prevenção da invasão portuguesa em terras baianas. Uma mulher à frente do seu tempo, que trazia com ela o espírito de luta e de liberdade.
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Antes de chegar à direção da Maria Felipa, eu tive várias vivências com práticas coloniais e eurocêntricas em suas estruturas. Nem sempre fui professora, mas sempre fui educadora porque caminhei por diferentes espaços. Uma vez, quando era auxiliar, estava varrendo o chão e uma diretora muito áspera e grosseira, que costumava usar sua bengala para cutucar as pessoas, tirou a vassoura da minha mão, para, supostamente, me ensinar a melhor forma de varrer. E isso não faz 20 anos!
Estas práticas obviamente não abarcavam a diversidade e pluralidade do que é ser e viver o corpo docente dentro de uma perspectiva decolonial, que se abre para diversas vozes e caminhos, respeitando os diferentes corpos e identidades que compõem o espaço da escola. Com pouco mais de 30 anos, ao entrar na faculdade, pude legitimar minha prática como educadora, dentro de um lugar de amparo das minhas diversas vivências. Sabia exatamente o que eu não queria reproduzir e o que nunca estaria dentro da minha rotina profissional.
Com base na Pedagogia Histórico-Crítica e na Decolonialidade do Saber, busco trazer para as práticas diárias, de forma transversal, atividades pautadas nos saberes científicos, matemáticos, tecnológicos africanos e indígenas.
Quando me foi feito o convite para assumir a direção da Maria Felipa, depois de 15 anos à frente do meu próprio espaço educacional, no qual a relação humanizada com todas as pessoas que se relacionavam comigo e colaboravam dentro do processo da construção do espaço escolar já era uma marca, meu primeiro questionamento também foi pensar na descolonização deste espaço. Surgiu, então, um grande desafio: “Como pensar a descolonização de um espaço sem antes pensar no processo de humanização e desconstrução dele?”.
Dentro da lógica teórica, pensar esta humanização exige práticas concretas e reais. Ou seja: para que este processo ocorresse de forma produtiva e assertiva, eu precisava desconstruir todos os resquícios da estrutura colonial que o perpassa. Não é um processo simples: afinal, a colonialidade dura há mais de 500 anos e traz com ela uma estrutura racista, homofóbica, sexista.
Aqui entra um ponto importante: para alcançar destreza neste processo, o primeiro passo dessa desconstrução precisaria ser dado por mim, uma mulher periférica com muitos atravessamentos. Sei que desconstrução não é um processo fácil e nunca será, mesmo sendo constante na minha vida e trajetória.
O primeiro passo era construir um espaço democrático, onde as pessoas que compõem a comunidade escolar fizessem parte da minha gestão – porque muito se fala desta construção que é coletiva, mas na prática ela não existe. A partir dessas diversas mãos, eu fui criando estratégias e propondo ações. Uma delas é a escuta afro-afetiva.
Ouvir para agir
Eu estava ali para propor um modelo de gestão que trouxesse amparo e escuta para os diversos profissionais da escola. A narrativa africana nos ensina a narrativa do coletivo, a fim de reunir todo mundo para fazer com que a roda gire.
Trata-se de um processo de escuta sensibilizada, que funciona e traz resultados, além de construir vínculos de confiança entre as pessoas. Era algo que eu gostaria de ter vivenciado e experienciado nos espaços pelo qual eu caminhei.
Convidamos toda a equipe, do porteiro às coordenadoras, para sentarmos juntos. Em roda, todos dizem o que acham, o que sugerem, o que está incomodando, como o trabalho pode ser mais fluido. O que podemos fazer para tornar o dia a dia mais leve, principalmente em um momento no qual se fala de muitos transtornos? Nós, profissionais da educação, temos uma cobrança muito maior da sociedade e precisamos criar estratégias para transitar em meio a essas demandas.
Inicialmente, essa escuta era feita só com as crianças e depois se expandiu para todo o corpo docente. As crianças sempre se sentem muito confortáveis para falar sobre tudo, do espaço da escola às situações externas de suas famílias, mas, sozinha, eu não dava conta de atendê-las tão bem. Para apoiá-las, passamos a oferecer uma escuta terapêutica, com o apoio da psicóloga Tarsila, a fim de que se sentissem mais seguras e recebessem devolutivas sobre suas questões.
Uma vez por mês, a Tarsila vai para a sala de aula e realiza o trabalho de escuta coletiva. Em seguida, o momento é com a família dos e das educandes. Com os colaboradores, além do bate-papo, eles também podem escrever sobre seus incômodos e tudo o mais o que acham importante.
A partir da escuta afro-afetiva, o corpo docente começou a mobilizar e também trazer relatos sobre os seus incômodos, o que nos ajudou a ampliar as possibilidades de melhoria e construção de um espaço afetivo, democrático e coletivo.
Deixo aqui algumas sugestões para gestores que desejam trilhar e direcionar a sua prática e atuação pautadas numa perspectiva decolonial e antirracista.
- Buscar a desconstrução não só de ações, mas de falas e práticas.
- Reformular o currículo.
- Inserir nos espaços da escola literatura negra e indígena.
- Convidar intelectuais negres e indígenas para o espaço.
- Estudar e propor práticas e ações decoloniais.
- Consumir autores negres.
- Lembrar que as filosofias ancestrais africanas e indígenas têm muito a contribuir.
Também provoco uma reflexão: o corpo docente da instituição é composto majoritariamente por pessoas negras ou brancas?
Todos somos um
Outra ação fundamental neste processo da construção da humanização é formada pelos encontros com a equipe, as chamadas jornadas pedagógicas. Além de desenvolver práticas, propomos ações de melhoria para o bom convívio, compreensão e entendimento do outro com respeito e tolerância, temos pensado e discutido sobre estratégias para prevenção da saúde mental.
Recentemente, em um destes momentos de troca, coloquei uma reflexão para a equipe e eu gostaria de trazer aqui:
“Qual seria a escola ideal?” “E o que você está fazendo para que este espaço seja ideal?”
Essas são justamente as perguntas que eu me faço todos os dias, e as trago para a equipe a fim de refletirmos sobre as nossas ações, sobre a criação de um espaço que fosse o mais próximo do ideal para a equipe e para educandes. Ao entrar na Maria Felipa, desejava um espaço livre das amarras do colonialismo, mas ele não se construiria sozinho. Então, precisei criar e elaborar ações para que ele funcionasse.
Neste trajeto, enfrentei inúmeras situações e uma delas foi também entender que eu era meu maior desafio: o processo de mudança exigia demais de mim, e muitas vezes era difícil estar aberta para mudanças que mexiam com algo tão profundo. O que me fez acreditar na possibilidade de dar certo foram as pesquisas, a escuta, a troca com as pessoas que tenho como referência. Listo aqui algumas obras que me apoiaram durante o caminho:
- O movimento negro educador, de Nilma Lino Gomes
- Como ser um educador antirracista, de Barbara Carine
- Vozes ancestrais, de Daniel Munduruku
- O perigo de uma história única, de Chimamanda Ngozi
- Manual antirracista, de Djamila Ribeiro
- Ensinando a transgredir – a educação como prática de liberdade, de bell hooks
- Ensinando a comunidade, de bell hooks
- Negritude: usos e sentidos, de Kabengele Munanga
- Interseccionalidade, de Carla Akotirene
É importante dizer que a busca é diária por conhecimentos científicos, ancestrais, tecnológicos e formais. Entender sobre minhas limitações me fez avançar diante dos enfrentamentos que surgiram e surgem no cotidiano dentro da minha comunidade escolar. As filosofias africanas como direcionamento ancestral também orientam essa caminhada, como Ubuntu (com origem nos idiomas zulu e xhosa do sul do continente africano, e tem como significado a humanidade para todos) e Sankofa (palavra que surgiu do provérbio ganês: “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”, que significa “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que você esqueceu (perdeu)”.
Enquanto pessoa e gestora de um espaço de educação e formação humana, sigo em busca da minha emancipação e contribuindo com a emancipação da minha comunidade, para que juntes possamos trilhar por desafios equânimes.
Ubuntu!
Cristiane Coelho
Formada em pedagogia com especialização em psicopedagogia, pesquisadora autônoma das práticas pedagógicas antirracistas. Produtora de material didático e jogos pedagógicos antirracistas, arte-educadora, contadora de histórias. Vem de uma longa caminhada na educação, somando mais de 15 anos. Atualmente, está como diretora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, em Salvador (BA).