Alunos se inspiram na literatura para bordar seus próprios livros
Criação de livro artesanal estimula estudantes do ensino médio de Santos (SP) a ampliar seus olhares para si e para o mundo
por Grasielly Lopes 2 de julho de 2024
Começo este relato com um convite. Você conhece o texto “Se eu fosse eu”, de Clarice Lispector, publicado no livro “A descoberta do mundo?” No vídeo abaixo, do projeto “Toda poesia”, a atriz Débora Wainstock faz a leitura:
Depois de assisti-lo, deixo algumas perguntas: o que o texto te fez pensar? Como você definiria a palavra identidade?
Clarice nos faz refletir sobre quem somos. E a leitura desta crônica foi o ponto de partida para o projeto “Palavra-Identidade: ler e tecer”, que realizei com 15 alunos do 1º ano do ensino médio do Centro Educacional SESI 087, em Santos (SP).
Desenvolvido semanalmente no contraturno, como um convite a partir das aulas de língua portuguesa ligadas às competências socioemocionais, o projeto nasceu da proposta de estar em contato com a literatura em suas mais diferentes representações para promover a possibilidade de ampliar os olhares para si e para o mundo.
A cada aula, depois de leituras e debates literários, cada aluno trabalhou na construção de seu livro artesanal para registrar ali aspectos de sua própria identidade. A técnica manual utilizada é uma mistura de fanzine com o movimento cartonero. O nome vem do espanhol cartón, e os exemplares foram realizados com capas e páginas pintadas e feitas à mão, bem como a encadernação.
Referências literárias
A literatura permite aos alunos criar e compartilhar suas próprias narrativas, além de possibilitar a identificação com personagens e situações, levando a uma reflexão profunda sobre suas identidades. Por meio da leitura e da escrita, também é possível ampliar a visão de mundo e humanizar ações, estimulando o autoconhecimento e a compreensão do que se vive.
A partir de textos e livros selecionados previamente e coletivamente, os encontros levavam em consideração as experiências individuais e as despertadas pela leitura coletiva. Abaixo, as obras utilizadas:
- Água viva – Clarice Lispector
- As mais belas coisas do mundo e Contos de cães e maus lobos – Valter Hugo Mãe
- Torto arado e Salvar o fogo – Itamar Vieira Junior
- O avesso da pele – Jefferson Tenório
- Sobrevivendo no inferno – Racionais MCs
- Erva brava – Paulliny Port
- Quarto de despejo – Carolina Maria de Jesus
- A vida não é útil – Ailton Krenak
Cada aluno escolheu um trecho com o qual se identificava mais, que definia sua identidade. Além de explicar a escolha, eles tinham de destacar uma frase para compor seus próprios livros artesanais.
A partir dessas trocas, conversas e registros, mantivemos o foco nas habilidades socioemocionais e no fortalecimento da autoestima, além de olhar para o coletivo como parte da própria identidade dos estudantes.
Do fio à meada do livro artesanal
Durante o processo, a criatividade foi estimulada o tempo todo. Partimos da leitura e do trabalho manual como instrumentos para uma nova produção, o livro artesanal, ligado ao projeto de vida e à identidade dessa turma.
A cada encontro, fazíamos uma atividade prática, permeada por costuras e bordados a partir de um trecho lido. Muitos não tinham ideia de como um bordado era feito e os alunos com mais facilidade auxiliavam os que apresentaram maior dificuldade diante da técnica nova. Entre uma linha e outra, sempre surgia uma conversa ou uma lembrança familiar.
Bases teóricas
Eu me inspirei em dois conceitos para criar essa proposta: na literatura como direito, ideia defendida pelo professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017) e na literatura como remédio, argumento do historiador Dante Gallian: para ele, a prevenção para doenças do corpo e da alma está na leitura dos clássicos.
A base das atividades tinha como referência a metodologia da Tertúlia Literária Dialógica, proposta pela estudiosa Jane Christina Pereira. Essa prática traz como princípios o direito de fala a todos e o conceito de inteligência cultural: todos temos conhecimento e aprendemos culturalmente pela interação dialógica, entre outros pontos.
Também me baseei nos Círculos de Leitura, proposta do mestre em teoria da literatura Rildo Cosson. A definição desses círculos está na prática coletiva, com sujeitos que se identificam como parte de uma comunidade leitora para discutir e interpretar a relação entre a leitura de um texto comum e literário, com a força criativa da imaginação e da intenção estética. Com essa prática, confere-se à leitura um caráter social.
Para debater aspectos como antirracismo e território, realizamos oficinas interdisciplinares a partir de estudos desenvolvidos pela professora de geografia convidada, Juliana Parini, por meio de sua tese de mestrado, intitulada: “Diálogos para uma educação antirracista e o ensino de geografia – um olhar atento sobre a geografia e literatura de Torto Arado”. Ela também é autora do artigo “A cartografia e a literatura na Terra dos meninos pelados”, baseado no livro de Graciliano Ramos.
Foco no socioemocional
Com a leitura e as metodologias acima citadas, realizamos discussões e registros de modo a perpassar lembranças familiares, escolares e construção de identidade e personalidade.
A motivação para ser quem se é, o autoconhecimento como identidade e a inteligência emocional para a adversidade nortearam a escrita e produção do livro artesanal.
Como resultado do projeto, destaco alguns depoimentos dos estudantes:
“O ‘Palavra-Identidade’ mudou um pouco o meu modo de pensar. Foram muitas reflexões sobre nós mesmos, tivemos muitas conversas. Voltamos ao passado para ver nossa infância e isso me fez pensar no meu eu de agora e no meu eu do passado, se eu era a mesma pessoa e se eu estou em constante mudança.”
“Eu ainda tenho muitas dúvidas sobre quem eu sou, mas isso não é totalmente um problema. Ao longo do tempo, eu vou descobrindo.”
Estar em contato com a literatura, em suas mais diferentes representações, promove a possibilidade de ampliar olhares para o mundo e para si, além de agir na (re)construção da identidade e do pertencimento, levando em consideração as relações interpessoais e a relação escola, aluno e família. Compreende-se, portanto, que a construção da identidade pode ser um trabalho que se faz por meio da palavra em seu viés individual, mas também coletivo.
Alcance do projeto
Acredito ter sido uma prática transformadora por se tratar de um processo de escolha voluntária a partir de um convite para encontros no contraturno escolar e, durante o processo, não passamos por desistência ou número significativo e/ou injustificado de ausências.
Tal fato aponta para um desejo genuíno de estar com o grupo, no processo de leitura e produção, de modo a entenderem-se como parte do que ali estava sendo construído.
Ao final, estava visível a potência do grupo e o olhar cuidadoso para o processo e para o produto final que, mesmo sendo fruto de construção individual, refletia o coletivo escolar e familiar. Além disso, houve compartilhamento da experiência e atualmente o projeto está acontecendo com alunos do 3º ano do ensino médio.
Grasielly Lopes
Professora de língua portuguesa, literatura e redação, graduada em letras pela UNESP (Universidade Estadual de São Paulo), na cidade de Assis. É mestre em literatura e vida social pela mesma instituição e especialista no ensino de linguagens pela Faculdade SESI. Após longa jornada e alguns projetos entre rede pública, privada e ensino superior, atualmente é professora do ensino médio (Rede SESI), finalista no Concurso de Redação "Câmera Educação" (TV Tribuna), integrante da equipe Geração Futura Educadores 2020, Multiplicadora Educamídia, colaboradora da AVA Editora e mediadora do projeto RES.PIRAMOS, no Instagram.