Literatura cria oportunidades para uma educação antirracista
A escolha de bons títulos, que dialoguem com práticas antirracistas, é uma estratégia assertiva para diminuir preconceitos e valorizar culturas historicamente marginalizadas
por Ruam Oliveira 29 de junho de 2022
Parte do racismo e dos preconceitos se originam de um não entendimento sobre o tema. Uma das razões está no pouco contato com pessoas diferentes. A máxima de um senso comum, por exemplo, é acreditar que a África é apenas um país – homogêneo e com pessoas iguais. O que não é verdade.
Para quem gosta de ler, não é novidade que a leitura pode ser uma boa companheira. Com ela, é possível observar diferentes situações, muitas delas impossíveis de serem vividas no mundo real.
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Também, algumas leituras podem – e fazem assim – ajudar a entender novos contextos e gerar empatia sobre situações que outras pessoas vivenciam. E por que falar de leitura? Porque a literatura é uma ferramenta fundamental para a educação antirracista.
Em linhas gerais, entende-se por educação antirracista aquela que se preocupa em combater todo e qualquer tipo de preconceito racial e racismo no ambiente escolar e no entorno. Uma educação antirracista é também aquela que traz uma valorização da história e contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros na construção do país.
E os livros são elementos centrais na construção das subjetividades das pessoas. “A leitura ajuda a gente a criar uma imagem e repertório a respeito da identidade de quem somos, de quem o outro é e a criar empatia também. A partir do momento que a gente lê e tem contato com uma narrativa sobre o outro, conseguimos entender melhor quem a gente é e quem são essas outras pessoas com as quais a gente pode se relacionar”, diz Caroline Maciel, analista de consultoria pedagógica da Árvore.
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Ela ressalta a característica humanizadora da literatura. Por muito tempo, foi comum que as representações de pessoas negras nos livros refletissem o racismo estrutural e colocassem-nas somente em lugares de subalternidade ou de maneira animalizada, como sendo um tipo diferente – e inferior – de ser humano.
“Ao longo dos anos, na formação da história do Brasil, o negro foi mantido à margem da sociedade brasileira. Esta desigualdade racial é legitimada também no ambiente educacional, quando há um diferente tratamento entre alunos brancos e negros, e também quando os materiais didáticos trabalhados na escola não estão voltados para desenvolver uma prática de valorização das culturas e etnias diferentes que existem em nosso País”, escreve Lara de Freitas Severo em sua pesquisa “O negro nos livros didáticos. Um enfoque nos papéis sociais“.
Essa questão dos materiais didáticos e de como a população negra está sendo representada nos livros vem se modificando aos poucos com a inserção de projetos e atividades de caráter antirracista. Muitos deles na esteira da lei 10.639, de 2003, que altera a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e inclui nos currículos a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira.
A Árvore criou recentemente o Programa de Educação Antirracista, voltado tanto para escolas públicas, quanto privadas. O projeto traz uma seleção com mais de 200 livros alinhados à temática da educação para as relações étnico-raciais que estão acompanhados de materiais de apoio alinhados à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e à lei 10.639/03.
Laís Rodrigues, também consultora pedagógica da Árvore, comenta que muitas vezes algumas escolas não têm tanta intimidade com o tema ou que não sabem por onde começar. “A gente sabe que ainda é muito difícil para algumas escolas e algumas pessoas darem o primeiro passo por falta de conhecimento”, comenta.
O programa prevê ações que promovam uma comunidade de práticas, mentorias com especialistas e eventos de partilha de experiências.
Qual livro escolher?
Ter um espaço com curadoria pronta já facilita muito o processo de inserir a temática antirracista nas aulas. Existem diversos livros que trazem pessoas negras em seus conteúdos. No entanto, nem sempre essas pessoas estão sendo representadas de maneira digna.
Há uma polêmica recente que pode ilustrar bem as nuances de uma escolha certa. Trata-se de trechos da obra do escritor Monteiro Lobato, que trazem expressões de cunho racista, como “Macaca de carvão” e “Negra beiçuda”, referindo-se à Tia Nastácia, personagem preta das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. “O que sente uma menina preta, sentada na classe, ouvindo a professora ler um texto onde se fala ‘negra beiçuda’?”, questiona Rayane Moura, em artigo publicado no UOL.
A jornalista argumenta que qualquer obra racista impacta a vida dos estudantes e, com isso em vista, essa curadoria de quais títulos sejam os mais adequados para o trabalho deve ser levada em consideração.
“Não é qualquer representação que funciona para desconstruir estereótipos construídos historicamente. Temos um histórico de literaturas que até trazem personagens fora desse padrão hegemônico, do personagem homem branco europeu, mas que não funcionam para desconstruir esses estereótipos. A gente quer uma representatividade positiva de todos os grupos para trabalhar precisamente uma justiça social”, pontua Caroline.
A gente quer uma representatividade positiva de todos os grupos para trabalhar precisamente uma justiça social
Márcia Fernandes Nunes de Almeida, coordenadora pedagógica do Colégio Notre Dame, na Ilha do Governador (RJ), ressalta a necessidade de critério nas escolhas desses títulos. Além disso, há a importância da intenção sobre o que se deseja com a leitura de tais livros. “Trazer para o ambiente escolar a consciência do antirracismo não é fácil, se faz necessário traçar metas, projetos e estratégias que venham desenvolver essa consciência. As metodologias empregadas precisam ter significado e verdade”, afirma a docente.
Além de ajuda para selecionar quais livros farão parte da estratégia da escola, há também processos de formação sobre a temática, para que os educadores possam explorar de maneira mais rica possível a proposta de educação antirracista.
“Primeiramente, o educador precisa ter consciência e entender o que é ser e ter atitudes antirracistas tanto na sua vida pessoal e principalmente para sua vida profissional, pois esta é de responsabilidade formativa. Para isso acontecer, é necessário estar atento ao caos que o preconceito traz”, aponta Márcia.
Apesar de prevista em lei, tanto com a 10.639/03 quanto na 11.645, de 2008 – que amplia o assunto incluindo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura dos povos indígenas e originários –, essa ação que visa um olhar para a educação antirracista ainda não é tão forte.
Quando a gente vai olhar os currículos da formação docente lá nas licenciaturas, é muito difícil ter uma disciplina ligada à relações étnico-raciais posta de uma forma obrigatória, então acaba ficando muito na conta da iniciativa individual
Nos próprios currículos de graduação e licenciaturas o tema é tratado sem grande sistematização. “A gente tem na própria formação do educador uma série de lacunas a respeito de como tratar essas questões. Quando a gente vai olhar os currículos da formação docente lá nas licenciaturas, é muito difícil ter uma disciplina ligada à relações étnico-raciais posta de uma forma obrigatória, então acaba ficando muito na conta da iniciativa individual de cada educador buscar acesso a esses conteúdos, buscar uma formação continuada, um curso de extensão, palestra ou grupo”, destaca Caroline.
De fato, grande parte dos projetos existentes nas escolas vêm de ideias que os docentes têm o desejo de realizar, seja porque fazem parte da população negra, seja porque o tema os toca pessoalmente de alguma maneira.
A analista da Árvore reforça a importância de que os educadores não estejam sozinhos nessa missão, que precisa ser coletiva. As instituições de ensino devem dar esse suporte. Isso porque, apesar de questões de cunho racial estarem presentes o tempo inteiro nas escolas e na sociedade, essa não formação sistemática pode ser um fator que dificulta o avanço de uma educação antirracista e intercultural.
E a literatura como ferramenta surge como esse apoio que necessita de maior embasamento para ter sentido. Ou seja, não trata-se apenas de ler um livro escrito por uma autora congolesa ou trazer um livro onde a personagem principal é indígena, mas saber dar contexto a partir da leitura.
Para Caroline, um dos grandes desafios da educação antirracista é justamente não silenciar a questão, não fugir dos possíveis conflitos que as discussões podem suscitar. “A gente está falando de relações históricas, que estruturam a nossa sociedade. E eu acho que tem que ter em mente que a escola é o espaço privilegiado para esse debate, para esse diálogo. Mesmo que isso desperte sentimentos difíceis, questões difíceis, acho que a escola é um dos melhores lugares onde a gente pode trazer isso para um debate construtivo e construir algo positivo a partir daí”, diz.