Turma do 4º ano leva literatura negra e indígena para feira livre em SP
O que acontece quando estudantes antes tímidos trocam a segurança da sala de aula pelo burburinho da feira? Com livros de autores negros e indígenas em mãos, eles se lançam à rua com o desafio de provocar debates em meio à venda de verduras e pastéis
por Renilde Santos dos Passos
19 de novembro de 2025
Imagine que você está em uma feira livre. Entre a escolha de frutas ou verduras, come um pastel, toma um caldo de cana. De repente, você se depara com um grupo de estudantes do 4º ano, de 9 e 10 anos, empurrando carrinhos cheios de livros e sacolas carregadas de diversidade cultural. Dentro delas há poesias, textos e manifestos de grandes autores negros e indígienas, como Carolina Maria de Jesus, Angela Davis, Conceição Evaristo, Márcia Kambeba, Bell Puã, Ailton Krenak e Daniel Munduruku.
Eles param, sorriem e perguntam se você pode ouvir uma leitura rápida. “Posso ler um manifesto de um minuto para você?” ou “Posso ler uma poesia rapidinho?”. A proposta é direta porque quem está na feira não consegue parar por longos períodos para ouvir, refletir ou acompanhar explicações longas. Mas, em poucos minutos, provocam reflexões sobre racismo, preconceito, território e pertencimento. É a literatura antirracista ocupando a rua.
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Essa cena é corriqueira em Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. Quinzenalmente, às sextas-feiras, os estudantes da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Deputado Caio Sérgio Pompeu de Toledo deixam a escola no contraturno rumo a trocas e aprendizados com a comunidade, com o projeto “Levando literatura preta e indígena para a feira livre”.

A literatura antirracista no centro da comunidade
Nosso território é marcado pela vulnerabilidade social. Muitas mães solo, famílias que não concluíram os estudos e uma rotina atravessada por diferentes obstáculos. Ainda assim, é uma comunidade potente, que acolhe e vibra quando vê seus jovens ocupando a feira com livros nas mãos.
O projeto que hoje ocupa as ruas começou dentro da escola, com as turmas que participavam do grupo Mediadores de Leitura. Eles já liam para turmas menores, organizavam saraus, apoiavam eventos literários e cuidavam de tudo o que envolvia livros na escola.
Era um trabalho importante, mas que já não trazia tanta novidade. Os estudantes dominavam tão bem essas atividades que começaram a achar tudo repetitivo.
Em 2022, surgiu a necessidade de propor algo novo. Percebi que eles precisavam de um novo impulso e apresentei a ideia de levar a mediação de leitura para a feira livre. Eles aceitaram imediatamente.
Antes de começar, porém, a escola conversou com as famílias, pois, mesmo sendo uma saída curta de aproximadamente 1 km, exigia cuidado. O primeiro teste foi feito com textos curtos para garantir confiança. A recepção foi calorosa. A comunidade gostou, os estudantes ficaram empolgados e o projeto ganhou continuidade.
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Primeira versão
No início, a comunidade ainda se surpreendia com a cena. Os estudantes chegavam à feira carregando sacolas e carrinhos, livros, uma lona e frutas cenográficas. Estendiam a lona no chão, organizavam os livros e colocavam uma fruta sobre cada exemplar. Quando alguém escolhia uma fruta, o estudante lia a poesia que estava embaixo. Era simples, afetivo e criativo, e logo chamou a atenção dos feirantes e moradores.

Biblioteca comunitária e antirracista
Ainda naquele ano, o grupo ampliou a proposta e começou a fazer empréstimos de livros para a comunidade. A cada quinzena os moradores devolviam os livros, e a turma levava novos títulos. Muitos vinham da Feira de Troca de Livros da escola, formada por doações e exemplares que não faziam parte do acervo fixo.
Com o tempo, a feira se tornou um espaço de circulação literária. Moradores passaram a trazer livros de casa para doar. Era comum ouvir alguém dizer que tinha livros guardados e voltar minutos depois com uma sacola cheia. A barraca literária se consolidou como parte viva do território, um lugar onde leitura, pertencimento e generosidade caminham juntas.
Leituras e reconhecimento
A diferença entre 2022 e os anos seguintes está principalmente na mudança das turmas. A cada ano, novos estudantes entram no projeto e outros saem. No começo, eu trabalhava com turmas de 8º e 9º ano. Esses estudantes concluíram o ciclo e deixaram a escola, o que abriu espaço para uma nova geração. Em 2023, o projeto passou a ser desenvolvido com o 4º ano. Essa rotatividade é natural, já que a escola oferece muitos projetos diferentes e os alunos circulam entre eles.
O trabalho envolve diversos gêneros literários. Além de manifestos e poesias, os estudantes também exploram contos, trechos de livros e textos curtos. Durante a preparação, selecionam um trecho significativo, fazem a leitura e depois apresentam a origem do texto, explicando se é parte de um livro, de um poema solto ou de uma coletânea de contos. Esse cuidado fortalece a construção de repertório e valoriza as autoras e autores estudados.
Neste ano, ampliamos a proposta. A discussão sobre território levou a turma a incluir trechos de romances, crônicas e textos sobre imigração, garantindo que pessoas de outras culturas se sintam acolhidas e respeitadas.
Os livros de escritoras negras sempre chamam mais atenção. Já os livros de autores indígenas despertam curiosidade, especialmente porque muitas pessoas ainda têm uma imagem limitada do que é ser indígena hoje.
Quando se deparam com obras de autoras como Márcia Kambeba, líder indígena e escritora, por exemplo, o impacto é imediato. A questão racial também gera identificação forte, já que muitas mulheres pretas e periféricas reconhecem suas histórias naquelas páginas.
Trazer autoras e autores negros e indígenas tem sido importante para valorizar a diversidade e combater o racismo.
No começo, algumas pessoas achavam a proposta ousada e diferente. Hoje, quando a barraca literária chega, os estudantes são cumprimentados como conhecidos do bairro. A literatura fez morada ali.

Escolha dos livros
A escolha dos trechos lidos na feira é feita pelos próprios estudantes. Durante os estudos, lemos partes dos livros juntos e eu indico alguns trechos que considero significativos. Eles usam marca-texto ou post-its para destacar as passagens que serão lidas, sempre pensando em leituras curtas, já que o tempo na feira é muito dinâmico.
As leituras tratam de racismo, preconceito e educação antirracista, temas que sempre exigem cuidado. Por isso, começamos pelo diálogo. Antes de selecionar os textos, realizamos rodas de conversa com relatos pessoais, situações que os estudantes já vivenciaram, presenciaram ou ouviram de familiares. Também compartilho experiências minhas de infância. É nesse espaço de troca que construímos o entendimento do tema. Racismo e antirracismo são assuntos sensíveis, e a conversa em grupo ajuda a contextualizar as leituras.
Quando os estudantes se aproximam das pessoas na feira, a leitura sempre vem acompanhada de um comentário. Eles perguntam, por exemplo, se a pessoa conhece escritoras negras ou autoras indígenas, se já ouviu falar sobre práticas antirracistas na escola ou se sabe da existência de leis que combatem o racismo. Esses pequenos diálogos dão sentido ao projeto e ajudam a explicar por que estamos ali, lendo literatura e conversando sobre o assunto.
Como o projeto acontece quinzenalmente, o trabalho se organiza de forma contínua. Em uma sexta-feira, aplicamos a atividade na feira. Na seguinte, preparamos o material que será utilizado na semana posterior. Os estudantes passam a semana inteira com os textos escolhidos. Levam os livros para casa, leem com calma, treinam a entonação e a expressão e refletem sobre o trecho destacado. Esse processo faz parte da preparação e fortalece a apropriação do conteúdo antes de compartilhar a leitura com a comunidade.

Transformações visíveis
Depois de anos de projeto, as mudanças são claras. Estudantes tímidos ganham confiança. A postura melhora, a entonação evolui, a fluência aumenta. O vocabulário se expande e o protagonismo aparece nas rodas de conversa e nas interações com o público.
Não havia, no início, intenção de buscar leitores específicos. O objetivo era oferecer literatura afroindígena para quem estivesse disposto a ouvir, e isso foi se tornando um movimento de aproximação mútua.
Formação e estudo contínuos
Eu integro o Comitê Antirracista da Diretoria Regional de Ensino de Guaianases, curso extensão em Africanidades na UFABC (Universidade Federal do ABC) e participo de clubes de literatura antirracista. As referências que estudo chegam à sala de aula com entusiasmo e afeto, influenciando diretamente o repertório da turma.
Os estudantes se tornam agentes multiplicadores. Usam a literatura como ferramenta de resistência, ética e força, reparando uma ausência histórica dessas temáticas no currículo escolar.
Uma escola que atravessa o bairro
Ao compartilhar suas leituras e seus estudos com a comunidade local, os alunos se tornam agentes multiplicadores das aprendizagens escolares e levam seus saberes para além dos muros da escola.
Participar de experiências sociais é uma prática que a escola busca desenvolver, pois estimula o hábito da leitura no outro, amplia o contato com diferentes gêneros literários e coloca em prática os conteúdos aprendidos em sala.
Os estudantes demonstram amplo conhecimento sobre as temáticas trabalhadas, posicionam-se com senso de pertencimento, participam das rodas de discussão e estão mais seguros ao conversar com as pessoas. Tornaram-se mais fluentes e tiveram seu vocabulário ampliado.
Quem aceita o convite da turma também se beneficia. Ao parar para ouvir uma leitura, vive um momento de acolhimento, conhece autores e obras fundamentais, conecta-se com a potência da literatura como ferramenta social e vivencia a sensação positiva de contribuir para o desenvolvimento dos jovens.
Renilde Santos dos Passos
Professora da Rede Municipal de Educação de São Paulo, é contadora de histórias, capoeirista e ativista da educação antirracista. Vencedora do 9º Prêmio de Educação em Direitos Humanos com a primeira versão deste projeto de literatura, atua na valorização das identidades negras e indígenas no ambiente escolar. É pós-graduada em Educação para as Relações Étnico-Raciais, cursa extensão em Africanidades por uma Educação Antirracista pela UFABC e integra o Comitê Étnico-Racial da DRE Guaianases.





