Livro de poesias conta a história do Brasil pelo olhar do povo negro - PORVIR

Inovações em Educação

Livro de poesias passeia pela história do Brasil por uma perspectiva negra

Em conversa com o Porvir, o professor Henrique Marques Samyn fala sobre “Levante”, livro que reúne 75 poemas sobre a trajetória do povo negro no Brasil, e abre a série de conteúdos especiais no mês da Consciência Negra

por Ruam Oliveira / Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 10 de novembro de 2023

A educação possui diversas ferramentas para se tornar antirracista. Além de materiais de apoio pedagógico – como infográficos e jogos – elementos da música, das artes, do cinema e da literatura são importantes para ajudar as escolas a combater o racismo e valorizar a contribuição dos povos negros na construção do país. Isso é justamente o que determina a lei 10.639/03, que traz a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares. 

A poesia é um meio de trazer essa valorização. Em “Levante” (Editora Jandaíra, 104 páginas), o poeta Henrique Marques Samyn, professor de literatura da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), apresenta o caminho trilhado pelos africanos sequestrados em África e trazidos para o Brasil, seus descendentes e as realizações conquistadas em solo brasileiro. Pesquisador especialista em estudos sobre gênero e raça, coordenador do projeto LetrasPretas, voltado à divulgação da produção intelectual e cultural de mulheres negras, Henrique mostra em “Levante” uma imagem do povo negro muito além daquela cristalizada e relacionada à escravização. 

Aperte o play para ouvir trecho do audiolivro “Levante”.  Lançado pela Tocalivros, tem narração do ator e roteirista Leo Raoni

Mais do que a elaboração dos poemas, o livro, que é usado nas escolas municipais de São Paulo (SP), nasceu com o objetivo de gerar subsídios na formação para uma prática antirracista. Em conversa com o Porvir, o escritor comentou que o livro, da forma como está estruturado, traz uma outra forma de narrar a História do Brasil, a partir de uma perspectiva menos europeia. 

“Muitos livros de autoria negra têm sido levados para as salas de aulas, por professoras e professores que têm feito um trabalho muito sério; e nós, que produzimos essa literatura, percebemos os resultados pelo retorno que recebemos de alunas e alunos, inclusive quando visitamos as escolas e participamos de eventos e feiras literárias”, afirma Henrique. Ele enfatiza a necessidade de políticas que promovam a leitura e apoiem bibliotecas escolares e públicas, além de valorizar o trabalho docente – lacunas históricas no Brasil.

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Confira abaixo os principais destaques da conversa: 

Porvir – Quando surgiu a ideia do livro “Levante” e como você o desenvolveu?

O professor Henrique Marques Samyn. Foto: Arquivo Pessoal.

Henrique Marques Samyn – “Levante” resultou de uma longa pesquisa que não tinha como objetivo a construção de um livro de poemas, e sim a elaboração de cursos sobre a história do povo negro no Brasil e a formação da luta antirracista. O que aconteceu foi que, em 2017, nos mais diversos momentos – viajando de ônibus ou metrô, por exemplo, ou quando eu já me preparava para dormir –, começaram a me ocorrer certos fragmentos que eu, posteriormente, identifiquei como versos. Assim, em mais ou menos um mês, eu já tinha uma primeira versão da obra, mas apenas como material bruto; então, veio todo o trabalho formal, a estruturação do livro, etc. Em sua forma definitiva, “Levante” tem seis seções, que correspondem a etapas da história do povo negro no Brasil, desde o sequestro transatlântico até o período contemporâneo.

Porvir – Quais aspectos sociais e culturais podem ser discutidos com base nas poesias e nos temas apresentados no livro?

Henrique Marques Samyn – Felizmente, o livro tem sido bastante debatido, tanto em coletivos e grupos de leitura quanto em instituições de ensino, enfocando questões diversas: o sequestro transatlântico, o genocídio do povo negro, o epistemicídio… como a obra contempla um conjunto de lutas e demandas presentes ao longo de um vasto período histórico, é possível abordá-la de muitas formas diferentes. Em grupos de leitura e coletivos, percebo que muita gente traça aproximações bastante interessantes com o slam e com o rap. No caso de escolas e universidades, isso depende muito da proposta didática de cada docente. Com alegria, tenho recebido mensagens de professoras e professoras que têm levado o livro para as salas de aula, tanto para turmas de ensino fundamental e médio quanto para estudantes de graduação e de pós, o que muito me honra – porque, como sempre repito, esse é o mais nobre destino que o livro pode ter.

Porvir – De que forma a poesia contida em “Levante” pode também ser abordada em outras disciplinas além da Literatura?

Henrique Marques Samyn – Também posso responder a essa questão a partir do retorno que tenho recebido de docentes, alunas e alunos. O pessoal que estuda a História do povo negro utiliza bastante poemas como “Senzala”, “Herança”, ou aqueles sobre quilombolas cujas trajetórias foram varridas pelo epistemicídio, e que eu – assim como outros escritores e escritoras negras – resgatamos. O pessoal da Sociologia costuma trabalhar com poemas como “Pivetes”, “Pretinhos” e “Sobreviventes”. Já o povo da Psicologia Preta discute bastante poemas como “Banzo”, “Memória” e aqueles da seção “Liberdade”. Recentemente, uma professora de uma escola pública de teatro aqui do Rio de Janeiro construiu, com alunas e alunos, um belíssimo espetáculo de dança-teatro a partir do poema “Pés descalços”. Sei que o livro também tem transitado por outros campos e alcançado bastante gente, não por mérito meu, mas porque os poemas dialogam com o que a tradição literária negra vem construindo há mais de um século.

Muitos livros de autoria negra têm sido levados para as salas de aulas, por professoras e professores que têm feito um trabalho muito sério

Porvir – O livro está organizado por uma lógica que vai do “Desterro” à “Liberdade”. De que maneira é possível explorar a história brasileira a partir dessa mesma organização temporal proposta na obra?

Henrique Marques Samyn – De fato, essa estruturação está relacionada a uma outra leitura da História do Brasil, a partir de uma perspectiva negra. Desse modo, tudo começa com o deslocamento forçado de pessoas capturadas na África (“Desterro”); prossegue tratando do período da dominação escravista (“Cativeiro”) e da construção de uma resistência negra (“Ancestralidade” e “Resistência”); chega ao período contemporâneo, quando ainda lutamos pela emancipação (“Herança”); e tem como desfecho o futuro que nós sonhamos e construímos, dia após dia (“Liberdade”). Isso transparece, aliás, no projeto gráfico do livro, que começa mais sombrio, mais “pesado”, e vai se tornando mais “luminoso”.

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Porvir – Você tem um poema preferido dessa coletânea? Se sim, por quê?

Henrique Marques Samyn – Não tenho um poema preferido, mas percebo que alguns poemas têm sido mais citados e mais estudados – como “Diáspora”, “Senzala”, “Pretinhos”, “Genocídio”… e muitas pessoas têm citado, inclusive como epígrafe, o verso inicial do poema que abre a seção “Liberdade”: “Pássaros negros não voam sozinhos”. Fico feliz com essa diversidade, que evidencia as múltiplas leituras possíveis para a obra.


Porvir – Como podemos apoiar os professores a levar poesia escrita por autores e autoras negras para a sala de aula?

Henrique Marques Samyn – Embora o cenário que atualmente encontramos ainda esteja longe do ideal, a lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, favoreceu bastante as coisas. Muitos livros de autoria negra têm sido levados para as salas de aulas, por professoras e professores que têm feito um trabalho muito sério; e nós, que produzimos essa literatura, percebemos os resultados pelo retorno que recebemos de alunas e alunos, inclusive quando visitamos as escolas e participamos de eventos e feiras literárias. 

Precisamos de políticas de fomento à leitura, apoio às bibliotecas escolares e públicas, valorização do trabalho docente…

Porvir – O que ainda falta para essa efetivação?

Henrique Marques Samyn – O que falta, a meu ver, são recursos que fortaleçam esse processo. Cito como exemplo o uso de “Levante” nas escolas aqui do Rio de Janeiro. Recentemente, a prefeitura de São Paulo comprou milhares de exemplares do livro para distribuição na rede escolar, mas até agora nada semelhante ocorreu aqui no Rio de Janeiro, embora eu saiba que “Levante” tem sido utilizado por muitas e muitos professores que compram exemplares por conta própria. Muitas editoras oferecem descontos para docentes, mas não é assim que as coisas deveriam funcionar, porque as próprias editoras carecem de mais incentivos. Precisamos de políticas de fomento à leitura, apoio às bibliotecas escolares e públicas, valorização do trabalho docente… são falhas historicamente presentes no Brasil.

Porvir – Enquanto pesquisador, você tem se deparado com uma vasta produção de literatura e poesia escrita por pessoas pretas nos últimos anos? 

Henrique Marques Samyn – Em praticamente todos os cursos e seminários que ministro, eu sempre digo que, em termos históricos, estamos numa época muito propícia para quem produz, lê e estuda a literatura negra. O que vemos, hoje em dia, é o resultado da luta de gerações de escritoras e escritores negros que lutaram pela construção de caminhos para a publicação e para a recepção de nossas obras. Por isso, hoje temos editoras que publicam majoritariamente, ou exclusivamente, livros de autoria negra; disciplinas acadêmicas e linhas de pesquisa dedicadas a essa área; grupos de leitura e coletivos que trabalham apenas com escritoras e escritores negros, etc. Tudo isso chega às salas de aula. 

PorvirComo as escolas podem aproveitar esse crescimento de publicações e de produções nesse segmento?

Henrique Marques Samyn – Eu já fui convidado a visitar diversas escolas para falar sobre os meus livros, e é sempre uma alegria encontrar alunas e alunos que se interessam pelos poemas. Quando não posso estar presente, procuro contribuir, inclusive divulgando as atividades nas minhas redes sociais, quando possível. Acho que esse é o melhor caminho: utilizar obras de autoria negra nas aulas, comprar livros de editoras que valorizam essa produção literária, levar escritoras e escritores para as escolas… isso não só fortalece o trabalho de quem está aí, mas ajuda a formar novas gerações de leitoras e leitores, o que é importantíssimo. Ressalto, contudo, que é fundamental haver mais apoio político a essas iniciativas.

É preciso ler, divulgar e falar mais sobre a produção de nomes como Lino Guedes, Aloísio Resende e Antonieta de Barros, por exemplo.

Porvir – Gostaríamos de indicar aos leitores alguns autores. Parte das poesias e da obra de Cruz e Souza, Francisco de Paula Brito e Luiz Gama estão disponíveis no site Domínio Público e na Biblioteca Nacional, por exemplo. Maria Firmina dos Reis também conta com um memorial online. Dos autores clássicos, quais você acrescentaria?

Henrique Marques Samyn – Seria inviável nomear aqui todas as autoras e autores que merecem mais atenção – porque, ao contrário do que muita gente pensa, o volume de obras negras publicadas historicamente no Brasil é colossal, ainda que muitas permaneçam esquecidas. É preciso ler, divulgar e falar mais sobre a produção de nomes como Lino Guedes, Aloísio Resende e Antonieta de Barros, por exemplo. Mesmo Solano Trindade, a meu ver, deveria ser mais lembrado e valorizado. E não posso deixar de mencionar o extraordinário trabalho realizado pelo conselho editorial que vem cuidando da publicação da obra de Carolina Maria de Jesus, a partir dos cadernos originais.

Porvir – E entre os autores e autoras contemporâneos, quais suas indicações?

Henrique Marques Samyn – Como eu disse anteriormente, vivemos numa época muito propícia para quem produz, lê e estuda a literatura negra; qualquer listagem desse tipo resulta em lacunas, inevitavelmente. Para citar apenas uma dezena de nomes, sem me restringir a gêneros literários específicos – diversos dos quais têm não só produzido boa literatura, mas também divulgado outras autoras e autores –, eu pensaria em: Elaine Marcelina, Eliane Marques, Fernanda Bastos, Heleine Fernandes, Lu Ain-Zaila, Lubi Prates, Natasha Felix, Sandra Menezes, Vagner Amaro e Vinicius Neves Mariano. São nomes importantes, que têm publicado livros que, merecidamente, têm alcançado bastante repercussão. 


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consciência negra, educação antirracista

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