Menos matrículas, mais evasão: o retrato da educação na Amazônia Legal
Estudo do programa Amazônia 2030 revela o crescente número de crianças e jovens fora da escola
por Ana Luísa D'Maschio 5 de janeiro de 2022
Depois de dois anos de pesquisa e cinco meses de apuração, o documentarista João Moreira Salles lançou uma série de reportagens sobre a Amazônia na revista Piauí. Nela, expôs a pobreza predominante nas cidades amazônicas, duramente impactadas pelo desmatamento desenfreado, e mostrou como a maior floresta tropical do mundo é desconhecida dos próprios brasileiros.
Soma-se ao esforço do cineasta em compreender a região, o recém-lançado estudo “A Educação na Amazônia Legal – Diagnóstico e Pontos Críticos”, das economistas Tássia Cruz (FGV-EBAPE/CEIPE) e Juliana Portella (FGV-EBAPE). O levantamento integra o projeto Amazônia 2030, formado por 60 pesquisadores, e visa coletar evidências que fomentem um plano de desenvolvimento sustentável a ser entregue aos gestores públicos e candidatos nas eleições de 2022. A iniciativa reúne o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o Centro de Empreendedorismo da Amazônia, ambos situados em Belém, a Climate Policy Initiative (CPI), o Departamento de Economia da PUC-Rio (RJ) e o Instituto Mundo Que Queremos.
A conclusão do trabalho é preocupante. A Amazônia Legal, formada por nove estados pertencentes à bacia Amazônica (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão) e 772 municípios, conta hoje com o menor número de estudantes matriculados e as mais altas taxas de evasão escolar no ensino médio do país.
“Fizemos um diagnóstico com dados de todas as etapas da educação para entender quais são os pontos de atenção que vamos desenvolver nos próximos meses”, diz Juliana. Um deles diz respeito à queda de matrículas na educação básica, maior nos estados que compõem a Amazônia Legal (1,8%) do que no restante do Brasil (1,5%). “À primeira vista, a diferença na porcentagem pode parecer baixa, mas estamos falando de 170 mil alunos fora da escola só na região da Amazônia Legal”, explica a pesquisadora.
Da creche ao fundamental
Somente 25,6% das crianças de até 3 anos estão matriculadas em estabelecimentos de ensino, “fase significativamente mais baixa na Amazônia Legal do que no resto do país”, mostra a pesquisa. Para 41,1% das famílias com crianças nessa faixa etária, a falta de oferta é o motivo principal.
“No Brasil, a creche é uma etapa não-obrigatória. Na Amazônia Legal, vemos indícios de que esse fator é ainda corroborado pela falta de creches nas áreas rurais, onde há boa parte de crianças na fase da educação infantil”, diz Juliana. A maior parte das matrículas em creches (87,5%) acontece na área urbana.
O mesmo problema, porém, não aparece na etapa da pré-escola: 21,4% das matrículas são em zonas rurais, índice próximo da proporção das pessoas que vivem nessas áreas (23,3%). De acordo com o estudo, o Plano Nacional de Educação, que prevê a universalização da pré-escola para crianças entre 4 e 5 anos, além de ampliar a oferta de creches para atender, no mínimo, 50% das crianças de 0 a 3 anos até 2024, não deve alcançar a Amazônia Legal.
Já no ensino fundamental, obrigatório de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases, a região registra uma taxa bruta de escolarização (porcentagem de crianças da idade correspondente efetivamente matriculadas nas respectivas séries) próxima dos 100% – bastante similar às do restante do Brasil.
Entraves do ensino médio
Um dos desafios do ensino médio na região é a distorção série-idade. São 31,2% dos alunos matriculados com idade acima da esperada, sendo que a taxa no resto do país é de 28,1%. Além disso, há o obstáculo da evasão escolar, em torno de 10% – a média brasileira é de 9,2%.
Entre as causas, além do desestímulo e do abandono, estão a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar e a dificuldade de acesso às escolas. São poucas as oportunidades para concluir o ensino médio nas pequenas localidades, explica o pesquisador Welton Yudi Oda, professor de biologia da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).
“O estudante de uma pequena aldeia ou comunidade, por exemplo, tem de ir para outro município para cursar o ensino médio. Vemos aí muitas situações de exclusão, como a dos jovens que são abrigados por instituições religiosas nas cidades maiores e são obrigados a se converter para morar e estudar”, conta. “Conheço um indígena do povo Sateré Mawé, situada entre o Amazonas e o Pará, que passou por isso. Ao recusar a conversão, foi excluído pela turma, precisou se mudar. Hoje, é professor de educação básica, mas não se esquece do constrangimento”, afirma.
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Leitura do mundo
Idealizador da Caravana da Diversidade, projeto focado no apoio à formação docente “com caráter amazônico, politizado, inclusivo e humanizado”, Welton tem contato direto com educadores e estudantes de diversas comunidades país afora, principalmente na região Norte. Tanto que criou um Instagram no qual reúne “causos dos professores da Amazônia”. Para ele, o grande empecilho encontrado pelos profissionais da educação da Amazônia Legal é lidar com a uniformidade dos currículos das licenciaturas, distantes do chão da escola e do saber dos povos da floresta.
“São cursos que pouco, ou nada, levam em consideração a realidade local. Não são valorizados os saberes sobre as biodiversidades, as diferentes culturas dos ribeirinhos, indígenas e quilombolas. Os conhecimentos tradicionais são valiosos, mas a universidade, em geral, quase os ignora”, diz. A despeito de a região abrigar a maior área indígena no país, as escolas, em sua maioria, trabalham apenas com o português. Ainda são poucos os tradutores para as línguas originárias.
Ele exemplifica com um caso da Escola Municipal São José, instalada em Nossa Senhora do Livramento, à beira do rio Tarumã (a dez quilômetros de Manaus). “Alguns professores que ali atuaram são indígenas e nem mesmo eles ensinam em Nheengatu (língua indígena da família Tupi-Guarani). Em um passado recente, contrataram uma educadora, falante de Nheengatu, para que os alunos fizessem reforço de matemática nessa língua, já que o maior problema para estudantes indígenas era a comunicação em português”, relata.
Realidade submersa
Também nas proximidades de Manaus, a 25 quilômetros em linha reta, está o município de Careiro da Várzea. A Escola Municipal Professora Francisca Góes do Santos, de Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) 3,4 (de 10), localizada na comunidade São Francisco, oferece 400 vagas para todas as etapas da educação básica. Mas conta com apenas 115 matrículas. Em parceria com o estado, as aulas de ensino médio são dadas no período noturno, para 35 estudantes.
“No ensino médio, muitos se afastam para trabalhar, principalmente na época da piracema (período de desova dos peixes). Nosso povo vive da pesca e da agricultura, quase não temos fontes de emprego por aqui. Ou você vira professor ou agente de saúde”, conta a diretora da escola, Lucycleia Gonçalves da Silva.
Careiro da Várzea tem pouco mais de 30 mil habitantes e está situada em uma região com 95% da vegetação do tipo várzea (planícies inundáveis). Chamada de “Veneza da Amazônia”, fica submersa por até cinco meses a cada ano. Todas as casas são altas, de palafitas, para evitar a subida da água. Em 2021, porém, nem mesmo as passarelas de madeira ou a ponte de mais de seis metros (construída da porta da escola ao barranco onde os barcos atracam) contiveram a enchente histórica que tomou conta da região. A escola fechou durante o mês de junho.
Quando retomado, o ensino remoto seguiu de maneira apostilada – a cada 15 dias, os exercícios eram enviados às casas dos estudantes. A escola só conta com três computadores antigos, um deles quebrado. “Não temos certeza do aprendizado desses alunos, infelizmente. Muitas vezes, recebíamos a apostila com letra de outras pessoas, talvez preenchida pela mãe ou pelo irmão mais velho”, lamenta Lucycleia. De acordo com a PNAD-Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), 4,1 milhões de alunos (11,2%) não receberam atividades escolares durante o período da pandemia em todo o Brasil.
Contudo, apesar dos percalços, a diretora se orgulha da participação dos alunos de ensino fundamental nas Olimpíadas de Língua Portuguesa: em 2014 e 2016, foram finalistas em “Memórias Literárias”; e, em 2019 e 2021, chegaram à fase semifinal nas categorias “Poesia” e “Crônica”, respectivamente. “Temos dificuldades, mas somos guerreiros”, assegura a diretora.
Resiliência pedagógica
As pesquisadoras Francimara Souza da Costa e Danielle Golvim da Silva Alencar, também da UFAM, selecionaram a escola liderada por Lucycleia para o recente estudo “Resiliência pedagógica: escolas ribeirinhas frente às variações de seca e cheia do Rio Amazonas”.
“A resiliência é bastante discutida na psicologia. Na educação, por ora, poucos autores falam sobre o conceito de resiliência pedagógica, que é uma maneira de verificar a adaptabilidade do educador nas situações adversas em seus ambientes de ensino”, explica Francimara, professora de economia e administração rural da UFAM.
Francimara e Danielle queriam entender como as interferências ambientais e a sazonalidade (seca e cheia) do Rio Amazonas impactavam a rotina escolar. “Nos períodos de seca, os moradores enfrentam longas distâncias por terra. Crianças de comunidades vizinhas chegam a caminhar dois quilômetros para chegar à escola. O transporte é feito por triciclo, que se assemelha a uma carrocinha, pouco segura”, diz Francimara. “Na cheia, por vezes, as aulas chegam a ser suspensas”.
Por terra ou por rio, o cenário é de dificuldades. “Falta formação pedagógica específica para esses professores. O currículo que utilizam também não é adaptado para a área rural, distanciando os alunos da realidade. Alguns educadores não moram na comunidade e também precisam enfrentar distâncias muito longas. Sem contar os salários, muito baixos.”
Bônus demográfico
O número de pessoas pobres na Amazônia Legal atingiu 41% em 2019, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), quase o dobro da média dos demais estados. Mas há oportunidades para melhorar esse cenário, aponta o estudo do projeto Amazônia 2030.
“Destacamos o bônus demográfico vivido pela região: a proporção da população economicamente dependente é menor do que as pessoas que estão em idade produtiva”, explica Juliana Portella. “Trata-se de uma janela de oportunidades para o crescimento, na qual é possível aquecer a economia para a região. Mas, para que esse bônus seja aproveitado e a força de trabalho seja maior, as pessoas devem estar qualificadas, com bom acesso a empregos. A educação é peça-chave”, conclui a economista.