Não voltar, recriar a Escola - PORVIR
Crédito: Pollyana Ventura/iStockPhoto

Coronavírus

Não voltar, recriar a Escola

Helena Singer discute por que é perturbadora a ideia de “perda do aprendizado” e como uma nova escola pode surgir a partir do envolvimento de famílias e estudantes

por Helena Singer ilustração relógio 25 de setembro de 2020

Completados seis meses de fechamento dos prédios escolares, multiplicam-se os debates, balanços, propostas e polêmicas em torno de questões sobre “recuperar a aprendizagem”, “aprovar ou reprovar automaticamente”, “como seguir os protocolos na volta às aulas”, entre outras que abordam a educação com a linguagem e as problemáticas mais próprias do campo das ciências contábeis. Posições mais extremistas alertam para “danos irreparáveis”.

Uma visão que tem ganhado mais relevância no debate é especialmente perturbadora, a ideia de “perda do aprendizado”. Pesquisas de consultorias americanas e mesmo de instituições brasileiras que comprovam esta perda foram citadas em parecer do Conselho Nacional de Educação sobre o assunto e vêm ganhando manchetes de jornal[1]. Esta perspectiva é condicionada pelos nossos processos de escolarização, que associam de forma absoluta o ato de aprender com a experiência de estar em sala fechada ao longo de várias horas por dia, ao lado de algumas dezenas de pessoas da mesma idade, assistindo aulas sobre conteúdos previamente preparados por professores especializados em certas disciplinas e, a cada bimestre, testar os aprendizados em provas.

A pandemia suspendeu abruptamente os grandes pilares desta experiência: os prédios escolares, as aulas, os agrupamentos etários, a imobilidade dos corpos nas carteiras. Como estávamos condicionados a somente reconhecer a aprendizagem associada à experiência da sala de aula, imediatamente começamos a contabilizar as “perdas da aprendizagem” a partir dos dias em que os prédios escolares estão fechados. Algumas escolas com maiores recursos financeiros e alunos de famílias igualmente com recursos trataram de, o mais rápido possível, recriar os mesmos pilares em bases remotas.

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Estas são as muitas vezes referidas com admiração escolas que criaram um sistema capaz de fazer seus estudantes ficarem as mesmas 5 horas diárias na frente do computador, basicamente assistindo aulas. Os pais destes estudantes, de início, aliviados com a manutenção da rotina, depois de algum tempo, perceberam graves problemas associados a ela, como desmotivação, fadiga e frustração. Os estudantes, mais sensíveis aos limites da proposta, trataram logo de não ligar suas câmaras e assim manter algum nível de liberdade corporal e mental, mas acabaram por ampliar a angústia dos professores.

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Perda da aprendizagem é condição da demência
A parte o processo de escolarização, sabemos por experiência, tradição e ciência, que aprendemos desde o momento que nascemos, aprendemos em diversos lugares, nas muitas interações sociais vividas. Fora da condicionante da escolarização, estranhamos imediatamente a ideia de “perda da aprendizagem”, utilizada apenas quando nos referimos a processos de demência e outras situações extremas.

É por este motivo que, ao invés de debater se é melhor aprovar ou reprovar, devemos recusar qualquer proposta que carregue a palavra “automática” e coletivamente refletir sobre as aprendizagens vividas nestes seis meses, para a, a partir delas, recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.

Algumas pesquisas lançadas no período apontam dados significativos. Em primeiro lugar, todos aprendemos mais sobre a insustentável desigualdade brasileira. Para ficar apenas em um dado que tem relação direta com o tema deste artigo, pesquisa TIC Kids Online 2019[2], cujos dados só chegaram à grande mídia por causa da pandemia, aponta que 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa, 21% só acessam a internet pelo celular. Nas escolas particulares, estas taxas são, respectivamente, de 9% e 3%. A desigualdade é também regional, sendo o uso da internet exclusivamente pelo celular maior no Norte (26%) e Nordeste (25%). Podemos com segurança inferir que entre os estudantes das escolas rurais o acesso seja ainda menor.

Estes dados seguramente se relacionam com os resultados de outra pesquisa, “Juventudes e a Pandemia do Coronavírus”[3]. Cerca de 80% dos mais de 33 mil jovens de 15 a 29 anos de todo o Brasil que responderam ao questionário online realizaram algum tipo de atividade de ensino remoto no período, mas encontraram grandes dificuldades, tanto em relação à infraestrutura tecnológica para acessar conteúdos, quanto em relação ao próprio equilíbrio emocional e a capacidade de organização para estudar. Apesar disso, a pesquisa mostrou a grande disponibilidade dos jovens para ajudar de alguma forma: 70% utilizaram as redes sociais para conscientizar os demais sobre a pandemia, 40% apoiaram alguém vulnerável para garantir seu bem-estar e 29% realizaram alguma doação. Ou seja, algo muito distante de uma realidade em que haveria “perda de aprendizagem”. O que aprenderam os jovens sobre desigualdade, solidariedade e bem comum? O que aprenderam sobre suas comunidades e sua própria capacidade de promover o bem? Estas perguntas deveriam estar no centro do planejamento da reabertura das escolas.

Também os professores estão aprendendo muito neste período. A pesquisa “Educação, Docência e a COVID-19”[4] criou um formulário respondido por 19.221 professores da rede estadual de São Paulo (quase 10%), residentes em 544 municípios (84% do total). Os professores relataram sentimentos relacionados a desafio, aprendizado e inovação no que se refere à educação mediada por tecnologia. No geral, 62% dos sentimentos citados foram classificados como positivos. Cerca de 80% afirmaram que sua atuação como docente vai mudar para melhor no período pós-pandemia e 68% entendem que a educação em sentido mais amplo também vai melhorar.

Recriar a escola para um mundo sem pandemias
O mundo que levou à pandemia é profundamente marcado pela desigualdade, pela degradação social ambiental e pelo autoritarismo de bases colonial, machista e racista. Como já sabemos desde Bourdieu, Illich, Foucault e outros pensadores, a escola disciplinar, com sua estrutura baseada nos anos letivos, salas de aula, conhecimento fragmentado e provas, tem sua parcela de responsabilidade pela manutenção deste estado de coisas.

A urgência de transformação que a pandemia traz deve orientar agora os esforços no sentido de reconhecer, valorizar e multiplicar as escolas que existem sobre outros pilares e de refletir coletivamente sobre os muitos aprendizados da pandemia.

Nestes meses, escolas e famílias aproximaram-se de modos diversos. No caso das crianças pequenas, os responsáveis foram envolvidos na mediação das relações entre professores e crianças. Entre os mais velhos, o intenso compartilhamento do espaço domiciliar aproximou os familiares do universo escolar. Aconteceu ainda o reconhecimento, por parte das equipes escolares, da situação de vida das famílias de seus estudantes, obrigando os professores a desenvolver estratégias diversificadas para manter o contato com seus estudantes. Toda esta experiência deve direcionar a reinvenção de uma escola muito mais próxima das famílias, que as inclua em seu projeto pedagógico, currículo e gestão.

Falando em currículo, se ainda não estava claro que uma extensa lista de conteúdos fragmentados não engaja os estudantes em processos significativos de aprendizagem, agora, com a longa suspensão das aulas, ganha aderência a proposta de focar no que realmente importa. Mas, não se trata de reduzir o currículo a um mínimo porque é o possível no momento. A nova escola deve se tornar um espaço de produção de conhecimentos voltados para o enfrentamento coletivo das questões que nos levaram à pandemia. Fundamental aprendizado do período foi sobre a força, criatividade e solidariedade das comunidades. Diante da incapacidade e descompromisso dos governos para garantir as condições básicas de segurança para todos, multiplicaram-se as iniciativas que salvaram vidas, desde arrecadação e distribuição de mantimentos até o crescimento de bancos comunitários, passando pela produção local de equipamentos de proteção individual, novos circuitos entre produtores agrícolas e consumidores, dentre muitas outras. Voltar à velha escola, que ignora e até menospreza os conhecimentos e a força das comunidades é inconcebível.

Além da potência das comunidades, como mostrado na pesquisa, aprendemos mais sobre a potência dos estudantes. Envolveram-se em muitas dessas iniciativas comunitárias e fizeram uso de sua maior experiência com as tecnologias e redes sociais para interagir, colaborar, debater e divulgar, em diversos formatos, informações relevantes e suas próprias reflexões. Reside aqui o centro da recriação da escola pós-pandemia: finalmente os estudantes e suas experiências no centro do processo do planejamento escolar.

Chegamos, então, ao pilar mais evidentemente erodido do sistema escolar pela pandemia: a organização dos tempos e espaços. Ela expôs com clareza o caráter massificador da estrutura baseada em salas de aula com 30, 40 ou mais estudantes em prédios que reúnem centenas deles. Agora todos chamam isso de aglomeração. Nada menos propício aos processos educativos. Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, o acompanhamento individualizado das aprendizagens e, ao mesmo tempo, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade. Mais do que nunca precisamos de oportunidades de exploração corporal e de convívio com a natureza. Se os prédios e a velha estrutura chamada enturmação não servem para isso, utilizemos todos os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos que agora os professores conhecem melhor, para criar a estrutura dos tempos e espaços que torne isso possível.

Por fim, não menos importante, aprendemos muito durante a pandemia sobre a importância do trabalho articulado de atores sociais e institucionais visando a constituição de uma rede de direito. Onde aconteceu a articulação dos agentes da educação, saúde, assistência social, foi possível garantir direitos fundamentais dos estudantes e suas famílias, como a segurança alimentar, a prevenção ao contágio do Covid-19 e o acesso a recursos educacionais. Manter e aprofundar estas articulações onde foram estabelecidas e criá-las onde ainda não existem deve ser prioridade da nova escola.

Utilizemos os últimos meses do ano de 2020 para construir esta escola. Não a portas fechadas, nos gabinetes como se costuma fazer. Nem só entre as equipes escolares. Mas, desde já envolvendo famílias e estudantes nesta construção. Se for para isso, faz sentido falar em idas semanais aos prédios escolares, para encontros ao ar livre, em grupos pequenos.

[1] Parecer do CNE menciona pesquisas do Annenberg Institute da Universidade de Brown, Universidade de Harvard, e a consultoria McKinsey. No Brasil, a Rede de Aprendizagem Solidária publicou estudo com a mesma perspectiva.

[2] Dados solicitados pela Unicef ao Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).

[3] Realizada pelo CONJUVE (Conselho Nacional da Juventude), em parceria com Em Movimento, Fundação Roberto Marinho, Mapa Educação, Porvir, Rede Conhecimento Social, Unesco e Visão Mundial.

[4] Realizada pelo grupo Cidades Globais do IEA-USP (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo).


Conteúdo publicado originalmente no Centro de Referencias em Educação Integral e reproduzido mediante autorização


TAGS

coronavírus, educação integral, ensino fundamental, ensino médio, tecnologia

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