Um novo olhar para a educação integral a partir da aprendizagem criativa
Integrantes de secretarias de educação compartilham aprendizados e inspirações surgidas durante a Expedição Criativa, nos Estados Unidos
por Vinícius de Oliveira 30 de junho de 2023
Muito mais do que um currículo, é um aprendizado para a vida. É assim que Ricardo Lisboa, integrante da secretaria de educação de Alagoas, descreve a experiência de jovens que frequentam o Melvin H. King Fab Lab, em Boston, nos Estados Unidos. No final de maio, ele e outros secretários de educação, subsecretários, diretores executivos e membros da equipe técnica participaram da Expedição Criativa, a convite do Programa Escolas Criativas.
Sob o tema “Impulsionando a educação integral dos estudantes com o Programa Escolas Criativas”, foram quatro dias de visitas e trocas na cidade norte-americana, referência quando o assunto é aprendizagem criativa. A imersão do grupo brasileiro também passou pelo instituto de pesquisa MIT Media Lab, onde surgiram a abordagem e o Scratch (ferramenta de computação criativa para crianças e jovens, que permite a criação de histórias, jogos e animações).
“A ideia foi, ao longo da semana, aprofundarmos com as redes, a partir de visitas a escolas e locais de referência, e de conversas e oficinas, sobre como podemos criar e proporcionar espaços de aprendizagem cada vez mais significativos dentro e fora da sala de aula na escola”, diz Ana Beatriz De Sanctis Bretos, coordenadora de gestão do programa.
Durante a expedição, cada rede desenhou uma iniciativa ou projeto para trazer os aprendizados da viagem de volta para o Brasil, a partir do que viram e ouviram por lá. “Hoje, apenas algumas semanas após a viagem, já estamos acompanhando o desenrolar das ações nas redes, e vendo a sementinha que plantamos juntos lá na expedição dando frutos”, diz.
A equipe brasileira teve a oportunidade de visitar escolas que vão além do modelo tradicional de ensino, como a Acera School, e conversar com líderes educacionais, como Rob Riordan, cofundador da High Tech High, uma rede que valoriza projetos escolares. Todos puderam conhecer Susan Klimczak, que há mais de duas décadas é responsável por gerir o Melvin H. King Fab Labs, espaço de tecnologia, criatividade e assistência social mencionado por Ricardo no início do texto.
A cada parada, os participantes se familiarizam com práticas de aprendizagem criativa, com destaque para critérios como valorização da diversidade, esforços por equidade e inclusão em diferentes níveis, protagonismo e senso de pertencimento do estudante, e integração curricular, dimensões que compõem as escolas criativas.
Inspiração em diferentes estágios
Secretário de Educação de Mata de São João (BA), Alex Carvalho afirma que a expedição trouxe novos elementos para sua visão sobre educação e aprendizagem criativa. Durante as visitas às escolas e instituições, ele se entusiasmou com as possibilidades e benefícios de quem ousa ir além do modelo de ensino tradicional, conforme constatado nas reuniões com professores e estudantes.
“O compromisso tanto dos alunos quanto dos professores me chamou a atenção. Foi muito interessante conversar com os estudantes e entender o que os motiva a estar na escola. Percebi que eles valorizam a liberdade de criar, de expressar suas ideias e de aprender em um ambiente onde os erros fazem parte da brincadeira”, conta Alex.
A rede de Mata de São João conta com 9,3 mil estudantes em 40 escolas, segundo dados do Qedu. Alex destaca que participar do Programa Escolas Criativas permite o contato com soluções para tornar as escolas mais engajadoras. “É importante trabalhar a matemática e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), mas é possível realizar essas atividades com metodologias ativas e abordagens de projetos. Dessa forma, as crianças certamente terão prazer em ir à escola”, acredita.
Outra reflexão feita por Alex em relação à viagem diz respeito ao papel da tecnologia na aprendizagem criativa, que não se resume ao uso do computador. “Percebemos que a tecnologia não se limita ao hardware. Ela parte de uma abordagem orgânica. É possível criar muito a partir do uso de uma máquina de bordado, com pedaços de madeira ou de tecido. Podemos aproveitar os recursos e ferramentas disponíveis. Isso se conecta mais facilmente com a cultura local, sem precisar trazer algo artificial”, explica.
Com essas ideias na bagagem, Alex espera tornar a educação no município baiano mais significativa e oferecer novas oportunidades aos estudantes. “As crianças que estão sendo formadas hoje têm o poder de influenciar outras pessoas e alcançar qualquer lugar que desejarem no mundo.”
Abordagem sistêmica
A delegação também teve representantes de Joinville (SC). O município está iniciando o trabalho com o Programa Escolas Criativas em 10 escolas de sua rede. Segundo Cleberson Mendes, gerente de avaliação, formação e inovação, o momento é de adequação com vistas a alcançar uma abordagem sistêmica.
“Já selecionamos as escolas que farão parte do programa, mas percebemos a importância de toda a secretaria e seus integrantes terem conhecimento da abordagem e participarem de uma formação para estarem alinhados. É essencial que todos compreendam os princípios e premissas da aprendizagem criativa, a fim de implementá-la de maneira mais sistemática, não apenas nas dez escolas selecionadas, mas em toda a rede”, afirma.
Apesar do começo gradual com o Programa Escolas Criativas, Joinville já vem implementando uma cultura de atividades mão na massa em suas escolas. Giani Magali da Silva de Oliveira, diretora de políticas educacionais, destaca que a secretaria conta com professores integradores de mídias e metodologias em seus quadros, responsáveis por apoiar os demais na integração curricular por meio de metodologias ativas. Agora, com o Programa Escolas Criativas, a intenção é ampliar o repertório teórico para a formação de todos os professores da rede.
“Nós queremos trazer essas abordagens que envolvem o pensamento e a aprendizagem por meio da brincadeira. É importante que haja um engajamento dos educadores nesse processo e, portanto, nossas formações precisam ser fundamentadas nessas concepções. Com isso, quando um professor tem contato com uma nova metodologia, ele percebe que há possibilidades de realizar atividades de forma mais dinâmica”, pontua Giani.
Inspiração para novas rotas
Em comum aos demais participantes ouvidos pela reportagem, Cleberson e Giani ressaltam o quão inspiradora é a experiência da educadora Susan Klimczak, no programa Learn 2 Teach, Teach 2 Learn, que atende jovens com as mais variadas experiências de vida em Boston. Na cidade catarinense, projetos de tecnologia e programação também são destinados justamente aos estudantes com menos acesso.
Cleberson comenta que nos espaços makers não há ainda toda a estrutura de dispositivos como na iniciativa de Susan, mas são usadas algumas das mesmas ferramentas há muito tempo. “Esses espaços são utilizados por todos. Temos um público muito parecido com o que trabalha lá e que atualmente frequenta clubes de robótica e participa de atividades no contraturno escolar”, diz Cleberson sobre a experiência da cidade brasileira em instalar espaços em bairros periféricos.
E o que pode ser repensado, então? O que a visita aos EUA trouxe de mais inspirador? Segundo o gestor de Joinville, descentralizar a distribuição pode ser algo a ser considerado nos debates internos da secretaria. “O acesso aos recursos que eles têm facilita, por exemplo, o trabalho de Susan e da própria escola, com oficinas de panificação, marcenaria, entre outros. Atualmente, enfrentamos dificuldades nesse tipo de aquisição. Você precisa de uma licitação, isso demora tudo muito tempo, às vezes dá certo, às vezes não”, exemplifica.
Integração entre projetos
Em Alagoas, atividades de aprendizagem criativa estão presentes em escolas de ensino fundamental e médio, em 13 regionais de ensino. “Nosso interesse é que todo mundo da rede trabalhe aprendizagem criativa. Mesmo se não alcançarmos todos os professores, de todas as escolas, já contamos com professores apaixonados, que já desenvolvem ações para entender a aprendizagem coletiva e criativa como uma realidade”, comenta Ricardo Lisboa.
Quando perguntado sobre comportamentos e atitudes de educadores dos Estados Unidos, Ricardo menciona a visão local sobre educação. “Entender que a aprendizagem acontece de forma integrada com o mundo que se vive é algo que a gente pode levar para nossas realidades”, afirma. “Ver aluno aprendendo em um ateliê de costura, participando do preparo de cookies ou construindo projetos foi uma experiência formidável”, lembra, em referência ao trabalho desenvolvido na Acera School, que oferece currículo flexível e desenhado a partir de projetos alinhados aos interesses dos estudantes.
“A escola foge de todos os contratos. Os estudantes fazem descobertas, o que é formidável. Ficávamos nos perguntando como era a avaliação, e a diretora contava que o mais importante era que os alunos sairiam de lá sabendo se destacar em situações e de forma muito mais criativa”, conclui Ricardo.
Aprendizados da Expedição Criativa
Ao longo da viagem, a equipe brasileira visitou organizações e conversou com educadores sobre as dimensões que constituem uma escola criativa. Confira quais são, as referências estudadas nos EUA e as propostas relacionadas já desenvolvidas pelos municípios brasileiros.
Detalhes da dimensão: A valorização da diversidade étnico-racial, socioeconômica, de gênero, orientação sexual e habilidades intelectual e físico-sensorial podem ser construídas quando as pessoas são recebidas e celebradas nas suas diferenças, e quando são ofertadas oportunidades condizentes com as disparidades, para eliminar barreiras existentes.
Referências da dimensão nos Estados Unidos
Learn 2 Teach, Teach 2 Learn: O programa de protagonismo juvenil e desenvolvimento comunitário idealizado pelo líder social Mel King e a educadora Susan Klimczak oferece aos estudantes recursos financeiros e acesso a diferentes e recentes tecnologias, além de apoio pedagógico e social para que possam se aperfeiçoar e compartilhar o que aprenderam para outros jovens. Saiba mais sobre a iniciativa nesta entrevista com Susan publicada pelo Porvir.
Acera School: Além de uma pauta antirracista como compromisso, a escola particular de ensino fundamental localizada em Winchester, Massachusetts, orienta seu trabalho a partir das habilidades dos estudantes, com turmas flexíveis em diferentes áreas do conhecimento, oferecendo uma trilha personalizada.
Exemplo de Ribeirão das Neves (MG)
A aprendizagem criativa está presente em Ribeirão das Neves por meio de iniciativas com o objetivo de promover uma educação antirracista.
No Scratch Day 2023, que teve como tema “As cem linguagens da criança”, uma alusão ao poema de Loris Malaguzzi, criador da abordagem Reggio Emilia, a rede se apoiou atividades baseadas nos princípios da lei 10.639/03, que estabelece o ensino de cultura e história afro-brasileira nas escolas.
Uma exposição permitiu uma compreensão mais profunda sobre a diáspora africana, a colonização e as origens da população brasileira em contraponto à perspectiva apresentada nos livros didáticos. Entre as atividades, destacaram-se: exposição da enciclopédia negra; reflexão sobre as teorias criacionistas (jardim do Scratch) e evolucionista (fóssil de Luzia); arca do Scratch com animais produzidos dentro do projeto “Nossa casa criativa”, que contou com a participação das famílias; oficina prática de confecção da boneca Abayomi; contação de histórias com o uso do Scratch, dentre outras.
Detalhes da dimensão: Nas iniciativas educacionais visitadas, foi ressaltado o papel central do estudante em sua própria aprendizagem. Esse conceito, embora amplamente utilizado na educação, ainda enfrenta desafios na implementação nas escolas brasileiras.
Referência da dimensão nos Estados Unidos
Learn 2 Teach, Teach 2 Learn: A experiência de Susan Klimczak é, mais uma vez, uma referência fundamental. No Fablab Mel King, situado na Madison Park Technical Vocational High School, os alunos participam de oficinas e cursos focados em tecnologia, enquanto desenvolvem projetos alinhados aos seus interesses. Concluídas essas capacitações, assumem a função de mentores, criando e ministrando módulos de tecnologia para outros estudantes. Trata-se de um exemplar programa de liderança juvenil e desenvolvimento comunitário, pois os jovens se aprimoram enquanto professores, aprendizes e ativistas.
Exemplo em Mata de São João (BA)
O município baiano experimenta um processo de formação de alunos monitores. Após descobrir um estudante do 9° ano que se destacava no uso do Scratch na Escola Municipal Monsenhor Barbosa, o professor Dermeval Costa (embaixador do Programa Escolas Criativas) e a coordenadora Joseane Carvalho lançaram o projeto de tutoria aluno-aluno.
Aos poucos, outros estudantes se juntaram à iniciativa e o grupo passou a apresentar atividades de Scratch em eventos da cidade, como a FLIPF (Festa Literária Internacional de Praia do Forte) e a Semana do Meio Ambiente no Castelo Garcia D’Ávila.
Detalhes da dimensão: Uma escola criativa incorpora a criatividade em todos os aspectos do ensino, indo além do contraturno e dos sábados. Os planos de aula são baseados em projetos alinhados aos 4Ps da aprendizagem criativa (projetos, paixão, pares e pensar brincando). Essa abordagem interdisciplinar repensa a forma como os conteúdos curriculares são ensinados, promovendo uma educação mais integrada e reflexiva.
Referência da dimensão nos Estados Unidos
Acera School: Estudantes têm a oportunidade de aprender diversas disciplinas, como matemática, ciências, línguas e humanidades, por meio de projetos alinhados aos seus interesses. Isso pode envolver atividades como escrever e ilustrar seu próprio livro, criar cenários com massinha de modelar, preparar receitas para compartilhar com os colegas, costurar roupas e fantasias, explorar marcenaria e criar jogos de tabuleiro sobre eventos históricos.
Exemplo em São Bernardo do Campo (SP)
A professora Kelly Watanabe, que leciona no 4º ano da EMEB Ítalo Damiani, em São Bernardo do Campo (SP), realiza um trabalho no qual a programação dialoga com a língua portuguesa.
Como estudantes demonstravam interesse na construção de rimas, foram estimulados a gravar declamações de poemas no próprio Scratch e acrescentar sons da biblioteca, brincando com as opções na mesa de mixagem criada pela professora.
Propostas de trabalho
Ao final da expedição, representantes das diferentes redes apresentaram ideias que pretendem aplicar dentro de seus programas de aprendizagem criativa.
Proposta: Criação de um grupo de trabalho específico, por meio de um edital de chamamento de professores, inspirado no trabalho de Susan Klimczak, com o lema “ensinar para aprender, aprender para ensinar”. O objetivo é desenvolver trilhas pré-formatadas que sigam os 4Ps da aprendizagem criativa e que estimulem a criação de produções próprias a partir das paixões dos professores.
Proposta: Criação de núcleos autônomos de aprendizagem criativa dentro das escolas, compostos por gestores e professores embaixadores. Eles terão a chance de compartilhar práticas pedagógicas inspiradoras e serão responsáveis por estimular a integração de temas estruturantes discutidos na expedição.
Proposta: Construção de uma estratégia de formação para os professores de ensino fundamental 1 e 2, utilizando o Scratch Junior/OctoStudio (projeto de criação de histórias em dispositivos móveis, mesmo sem conectividade). O cronograma de formação será alinhado ao calendário escolar com acompanhamento próximo das diferentes comunidades (eixos Praia, Centro e Pindorama). A formação terá como premissas o trabalho interdisciplinar, a escuta ativa, o compartilhamento entre pares, o intercâmbio entre escolas, os elementos da aprendizagem criativa, bem como a alegria e o prazer dos estudantes em aprender.
Proposta: As formações oferecidas pelo Centro de Formação serão pensadas sob a perspectiva da aprendizagem criativa, tendo o aluno como centro do processo. O objetivo é alinhar todos os segmentos da Secretaria de Educação e repensar a cultura organizacional das escolas, transformando as habilidades curriculares em aprendizagens significativas para a vida dos estudantes.
Proposta: Estruturação de um plano para o desenvolvimento e acompanhamento do Programa Escolas Criativas, com seis etapas e ações definidas. A rede educacional está atualmente na terceira etapa, que envolve a elaboração de diretrizes claras e alocação de recursos. Nas etapas seguintes, serão realizadas a implementação, o monitoramento e a avaliação dos resultados. A expectativa é que, ao implementar as ações previstas no plano, seja possível entusiasmar os profissionais da educação, ampliando sua visão sobre a aprendizagem criativa de maneira inclusiva, sistêmica e voltada para o mundo.
Proposta: O município propõe a ressignificação dos espaços existentes, como ambientes educativos para promover a aprendizagem criativa e estimular o desenvolvimento dos estudantes. Para cumprir essa tarefa, serão realizadas ações de mapeamento, escuta dos diferentes segmentos da comunidade escolar, além de contato com potenciais parceiros da proposta.
Mensagens finais da expedição
Uma fala comum entre especialistas que tiveram contato com a delegação de gestores brasileiros, como Rob Riordan (cofundador da High Tech High, escola que vive a cultura de projetos), Courtney Dickinson (diretora da Acera) e Susan Klimczak (cofundadora do Learn 2 Teach, Teach 2 Learn), enfatiza a importância de que as redes criem uma visão compartilhada para transformar a educação e conectá-la com a realidade dos alunos. Engajar líderes, professores, pais e estudantes é o primeiro passo para impulsionar essa mudança.
Como sustentar essa transformação em um sistema enraizado de um modelo de educação tradicional? Uma estratégia é compartilhar o trabalho dos alunos. Isso é possível quando a porta das escolas está permanentemente aberta para que pais e a comunidade possam conhecer os projetos pedagógicos realizados. Na High Tech High, isso é uma prática comum, permitindo que todos se envolvam e compreendam o valor do aprendizado dos alunos.
Além disso, é essencial promover uma cultura de colaboração e compartilhamento de ideias entre os educadores. Isso pode ser feito por meio de comunidades de prática, encontros profissionais e redes de aprendizagem, onde os professores podem trocar experiências, discutir desafios e buscar soluções inovadoras.
Outro aspecto fundamental é proporcionar espaço e autonomia para os estudantes explorarem suas paixões e interesses. Ao permitir que eles tenham voz e escolham projetos relevantes para suas vidas, a motivação e o engajamento também são positivamente impactados, resultando em aprendizado mais significativo.