Projeto Âncora: relembre as marcas deixadas pela escola que ousou transformar
Ao longo da história do Porvir, o Projeto Âncora foi retratado em reportagens, projetos e especiais. Confira, a seguir, os aprendizados dessa iniciativa reconhecida internacionalmente como escola inovadora
por Maria Victória Oliveira 28 de outubro de 2022
O ponto colorido da lona de circo em meio ao verde da natureza é, sem dúvida, o que mais chama atenção no Projeto Âncora, que hoje é Cidade Âncora. Fundado em 1995 com o desafio de melhorar a realidade de crianças e adolescentes de Cotia, na região metropolitana de São Paulo, surgiu como projeto social que oferecia atividades no contraturno escolar.
Com o passar do tempo, passou a oferecer também ensino fundamental e médio. Tudo em um modelo de educação que não seguia o que há de mais tradicional: os estudantes não eram divididos por idade e anos, não havia disciplinas nem notas e o trabalho pedagógico era desenvolvido por projetos e interesses particulares, permeados sempre por vivências envolvendo músicas, artes e atividades corporais.
Trecho do Almanaque comemorativo dos 25 anos do Projeto Âncora conta que o casal Walter Steurer e Regina Machado Steurer, idealizadores e criadores da iniciativa, defendiam a “educação que parte da criança, sua história, sua essência, suas necessidades, desejos e sonhos. Acreditamos que o conhecimento é comunitário e não individual. E que o que não faz sentido não será aprendido.”
Eles buscaram inspiração em nomes como Maria Amélia Pereira, a Peo, responsável pela pedagogia da escola Casa Redonda, em Carapicuíba (SP) e José Pacheco, educador português idealizador da Escola da Ponte, para criar uma educação que fizesse sentido aos estudantes e que contribuísse para a formação cidadã de crianças e jovens. Toda a caminhada fez com que o projeto fosse reconhecido internacionalmente como uma escola inovadora.
“Quando conhecemos a Peo e a escola Casa Redonda, essa pedagogia passou a fazer todo o sentido, e passou a ser aquilo que acreditávamos como necessário para a formação dos meninos e meninas desse país: uma formação com base na cultura brasileira e na autonomia. Começamos a sonhar essa educação para os nossos filhos e para todo mundo”, comenta Regina, reforçando a vontade do casal por um modelo de educação moderno, para o que chama de ‘tempo de hoje’.
Resumir a história do Projeto Âncora em poucas linhas é, portanto, tarefa desafiadora. Mas entender a grandiosidade da iniciativa fica um pouco mais fácil ao observar a história de Cleriston Izidro dos Anjos.
Autonomia como base
Natural de São Paulo e atual residente de Maceió (AL), Cleriston foi um dos primeiros alunos do Âncora em 1996, aos 13 anos de idade. Passou a frequentar o projeto no contraturno escolar para participar de atividades esportivas, do circo e de oficinas, como as de mosaico, das quais gostava muito. Mais tarde, com a evolução do projeto, também cursou aulas de informática, espanhol e de educação para o trabalho.
Atualmente com 40 anos, ele recorda que a autonomia concedida aos estudantes, que participavam das atividades que mais lhes interessavam, contribuiu para seu desenvolvimento pessoal e profissional. “O Âncora sempre teve uma dinâmica de conselhos com representação da comunidade e de diversos segmentos. Nós discutíamos os assuntos coletivamente. Especialmente nesse momento que estamos vivendo, é muito importante falar de uma instituição que valoriza processos democráticos de participação.”
Dar voz aos estudantes e buscar, sempre, o que mais fazia sentido para eles, era um dos destaques das práticas pedagógicas. De acordo com Regina Machado Steurer, as crianças trabalhavam por projeto, pesquisavam e, com isso, chegavam em casa cheias de novos saberes e queriam conversar sobre aqueles conhecimentos que tinham descoberto, e não só escutado do professor. “Eram descobertas que faziam sentido, porque tudo tinha que fazer sentido. Não era para engolirem determinado tema”, comenta Regina.
Fabio Zsigmond, cofundador do Mundo Maker e educador, integrante do conselho e diretor estatutário do Projeto Âncora durante sete anos, explica que, para alcançar essa autonomia, os estudantes deveriam percorrer um caminho composto por três núcleos: iniciação, desenvolvimento e aprofundamento. Se na iniciação entendiam as bases da metodologia do Âncora, seus princípios e conteúdos pedagógicos de base, no desenvolvimento continuavam a entender um pouco mais sobre planejamento dos aprendizados em parceria com tutores e podiam desenvolver um projeto de acordo com seus interesses.
“O projeto deveria ser algo que partisse do estudante, de algo no qual ele tivesse interesse genuíno. Isso era muito importante porque, quando realmente é um assunto que te toca, a motivação intrínseca aparece e a resiliência vem junto, porque aprender é algo difícil. O maior desafio era identificar o que realmente tocava cada aluno”, explica.
Princípios do Âncora
A construção de todos os espetáculos do circo Vagalume, por exemplo, contavam com envolvimento dos estudantes e professores desde a etapa de pesquisa a partir de livros, textos, vídeos e também viagens que eram promovidas pelo projeto, algo que o ex-aluno Cleriston carrega até hoje.
“No ano que o tema do espetáculo foi Brasil, o meu grupo de alunos viajou para Manaus. Nós passeamos, mas também pesquisamos muita coisa sobre a cultura brasileira, o que se tornou material de estudo para os espetáculos. Esses passeios faziam parte não só da formação cultural, que é fundamental, mas também de projetos mais amplos, que envolviam educação, cultura e arte, algo que sempre esteve presente na proposta do Âncora. Viajei com amigos e uma professora querida, a Penha. Foi uma experiência muito enriquecedora”, conta Cleriston.
Para Fabio, uma das facetas mais interessantes do projeto era o fato de que propunha um formato de educação no qual todos se conscientizassem sobre seus direitos e responsabilidades, por mais desafiador que isso fosse. Ele cita casos com o do banheiro da quadra, que vivia mal cuidado e, quando foi decidido em Assembleia Geral (composta por todos os funcionários do Âncora, estudantes, educadores e demais colaboradores) a medida de trancar o banheiro da secretaria, todos passaram a cuidar melhor do sanitário principal. E também a zelar pela cantina, que começou ali a contar com um grupo encarregado de organizar, limpar e cuidar do local, que sempre estava bagunçado depois das refeições.
“A cantina virou um local super bem cuidado. Não sobrava mais comida no prato e a nutrição passou a ser balanceada. Tudo isso a partir dos grupos de responsabilidade, que eram um artefato pedagógico. Todas as questões de gestão acabavam se tornando formas de gerar aprendizagem e incentivar o desenvolvimento de habilidades de resolução de problemas”, explica Fabio.
Educação que inspira
Falar sobre a história de Cleriston é falar sobre o potencial de inspiração das propostas e modelo do Projeto Âncora. Depois de sua vivência na iniciativa até os 17 anos, Cleriston prestou vestibular para cursar pedagogia. Desde então, soma creditações na área da educação, com mestrado, doutorado e pós-doutorado na área. Hoje professor de pós-graduação da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), integra grupos de pesquisas em culturas infantis no Brasil e no exterior, entre uma lista extensa de outras atividades curriculares às quais se dedica.
Hoje, ele recorda que sua experiência no Âncora é uma das grandes responsáveis por seu interesse pela educação. Ao mesmo tempo em que teve a oportunidade de participar da instituição como aluno, em determinado momento Cleriston também contribuiu voluntariamente nas oficinas e na instituição de educação infantil do Projeto Âncora, bem como em projetos sociais que Regina Steurer desenvolvia.
Enquanto atual formador de professores, ele fala sobre sua vontade de contribuir para uma reflexão sobre crenças cristalizadas na educação e a possibilidade de construir outras pedagogias a partir de leituras, estudos e pesquisas, sempre usando o Âncora como inspiração, com seu trabalho pautado no viés lúdico, artístico e literário enquanto elementos da cultura, formas de linguagem e de comunicação humana.
Desafios trazidos pela inovação
Apesar de muito inspirador, o modelo do Projeto Âncora trouxe consigo questões de diferentes naturezas. Um deles foi a formação de professores. Se Cleriston, por um lado, reforça que os educadores eram sempre muito acessíveis com uma relação de proximidade e afetividade, Regina pontua que a formação dos educadores foi uma grande dificuldade, uma vez que eram formados da maneira tradicional, “em universidades que ensinam a dar aula e dizem que o aluno deve ficar quieto e copiando, não participando”.
A formação docente e de todos os adultos aconteceu durante o próprio trabalho. As famílias também precisaram ser sensibilizadas para a proposta, diferentemente do que estavam acostumadas. “Ao mesmo tempo em que falávamos que faríamos a melhor escola que podíamos imaginar, onde a criança aprenderia com alegria, isso encantava. Mas gerava receio nas famílias, que não entendiam como seria possível não ter livro ou dever de casa. Aos poucos foram entendendo e vendo a mudança que acontecia nas crianças.”
Além disso, Regina comenta sobre a importância de todos os processos – não só dentro da sala de aula, mas também a gestão do Âncora – estarem de acordo com a pedagogia que pregavam, caso contrário seria um ‘contrassenso’, mesmo que os gestores estivessem acostumados com uma gestão vertical, não horizontal. Esse modelo de decisão conjunta e compartilhada também rendeu bons aprendizados e horas de conversa.
“Desde o início queríamos todos envolvidos. Tínhamos assembleia de alunos e com todos os adultos. Depois de passar a vida inteira em um jeito de ser, era uma mudança realmente cultural. Além disso, havia uma dificuldade de comunicação entre as famílias e os educadores, que nem sempre faziam um esforço para serem compreendidos”, aponta.
Memórias que ficam
Mesmo depois de mais de duas décadas, Cleriston guarda com carinho todos os ensinamentos e inspirações do tempo que passou no Projeto Âncora. “Acredito que se você perguntar para qualquer aluno que passou por uma oficina ou atividade do Âncora, certamente terá uma lembrança muito boa, seja pelas pessoas que conheceu, educadores e educadoras, mas também outros que lá estudavam, pelos passeios, atividades culturais, oficinas e por tudo que essas atividades propiciavam do ponto de vista educativo.”
Fabio, por sua vez, reforça que toda a experiência do Âncora foi a ‘prova viva’ de que é possível fazer uma educação oferecida por pessoas comuns, não necessariamente especialistas. “Quando olhamos para uma escola, a primeira coisa que se nota é o prédio, as quadras, os espaços, as salas. No Âncora, a estrutura é dada por artefatos não físicos. O que faz e estrutura a escola são as pessoas e esses artefatos criados para fazer com que o aprendizado aconteça. O projeto mostrou que dá para fazer uma educação de qualidade por qualquer grupo que tenha como objetivo proporcionar um projeto de educação com bases, valores e uma preocupação muito grande com o que está sendo feito.”
Já Regina resume toda a experiência em uma palavra: alegria. Sem se esquecer, claro, dos inúmeros percalços. Até hoje, ela acredita que a inteligência coletiva é muito melhor do que a individual e, por isso, o mundo precisa de construções e espaços inclusivos para todos, onde o diálogo acontece.
Esses são os princípios, inclusive, da Cidade Âncora, que deu continuidade ao Projeto Âncora, com o fechamento da escola em 2019 em razão da crise política e econômica do país e a situação financeira da iniciativa.
O Pau Brasil no terreno do Âncora, onde estão as cinzas do fundador Walter Steurer, havia sido atingido por um raio em 2018, e, desde então, estava seco. No Almanaque, Regina conta que estavam considerando vender o imóvel; contudo, as mais de 30 mudas de Pau Brasil que brotavam ao redor da árvore morta mostraram que deveriam continuar com o projeto.
A partir desse simbolismo, surge, então, a Cidade Âncora, local que abriga a organização social do projeto e negócios de impacto socioambiental, trabalhando empreendedorismo, educação, esporte, saúde, arte e cultura, sempre exercendo o princípio da parceria e inclusão.
“Ao mesmo tempo que sabemos para onde queremos ir, o como vamos fazer vamos descobrindo no dia a dia. Agora, sei coisas que mudariam, porque toda essa experiência nos ensinou algumas. Mas vale muito a pena. Eu começaria tudo de novo”, celebra Regina.
Como parte das atividades de celebração aos 10 anos do Porvir, a mostra interativa e multimídia “Encontro com o Porvir: trajetória de educadores que transformam o presente e constroem o futuro” é realizada até 3 de fevereiro, no Museu Catavento – instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, localizado na região central de São Paulo (SP). Além das 148 contribuições recebidas em uma campanha de financiamento coletivo, somam-se aos parceiros e apoiadores oficiais do projeto: Camino School, Faber-Castell, FTD Educação, Fundação Educar, Instituto Ayrton Senna e Red Balloon.