Projeto transforma mulheres refugiadas em professoras de pré-escola - PORVIR
Crédito: Little Ripples

Inovações em Educação

Projeto transforma mulheres refugiadas em professoras de pré-escola

Little Ripples identifica líderes dispostas a aprender um novo ofício para ensinar sua cultura e habilidades às crianças que fogem da guerra no Sudão

por Carolina Lenoir ilustração relógio 20 de setembro de 2016

A crise dos refugiados na Europa mostra ao mundo os horrores do maior fluxo migratório da história desde a Segunda Guerra Mundial. As guerras civis que assolam países da África, porém, já duram décadas e forçam cidadãos a buscarem a sobrevivência em campos levantados por organizações humanitárias. Em um cenário em que falta tudo, não é de se surpreender que a educação, especialmente a infantil, seja negligenciada. Essa é uma história que o projeto Little Ripples, criado pela organização norte-americana iACT, quer mudar, mesmo que em “pequenas ondulações”, como sugere o nome em inglês. A iniciativa é finalista da edição 2016 do WISE Awards, prêmio da Fundação Qatar que dá visibilidade a práticas inovadoras desenvolvidas no mundo inteiro.

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Iniciado no campo de refugiados Goz Amer, localizado no Chade – um dos 12 campos que abrigam mais de 360 mil refugiados da guerra no vizinho Sudão –, o Little Ripples oferece um programa de desenvolvimento da primeira infância que, além de implementar uma educação inspirada na cultura local e baseada no brincar, promove também o emponderamento das mulheres refugiadas, que são capacitadas para se tornarem professoras. Mais do que isso: elas participam como coautoras do currículo implementado.

little_ripples_capa2Crédito: Little Ripples

Em entrevista ao Porvir, o fundador e diretor-executivo do iACT, Gabriel Stauring, explica que a premissa do projeto é fomentar o desenvolvimento socioemocional, cognitivo e físico de crianças entre 3 e 5 anos que vivem em campos de refugiados. A necessidade de se oferecer a pré-escola nesse ambiente foi relatada pelos próprios líderes locais. “Andávamos pelo campo ao longo do dia e víamos dezenas de crianças pequenas nos seguindo, segurando as nossas mãos. Nos explicaram que isso acontecia porque não tinham uma escola para crianças dessa idade e falaram sobre os perigos que elas corriam por ficarem sozinhas enquanto os pais saíam à procura de lenha, comida ou algo suficiente para que eles pudessem sobreviver.”

A partir dessa urgência, a equipe do iACT começou a pesquisar intensamente as melhores práticas relativas ao desenvolvimento na primeira infância. “Recrutamos alguns especialistas nos EUA, com décadas de experiência nesse campo, e os desafiamos a pensar em qual seria, sem considerar as limitações de um campo de refugiados, o melhor modelo educacional para crianças”, afirma Stauring. “Depois dessa reflexão, pedimos também que eles pensassem de que forma esse modelo poderia contribuir para a recuperação de traumas emocionais e para promover a paz nos campos.”

Entre 2010 e 2013, quando a primeira escola foi inaugurada, um esqueleto de currículo foi desenvolvido, com foco no aluno, nas possibilidades de aprendizado a partir do brincar e no estímulo à não-violência. A base do currículo é dividida nos módulos Desenvolvimento Infantil (aprendizado socioemocional, empatia, ensino do alfabeto e dos números e desenvolvimento físico), Tempo de Paz e Silêncio (meditação, cantinho da paz, conversas sobre sentimentos e emoções), Aprendizado por meio do Brincar (jogos e brincadeiras para ensinar números, linguagem, cores etc), Linguagem Transformadora (uso de palavras e gestos específicos para o reforço positivo); Gestão de Sala de Aula e Estratégias Comportamentais (ações não-violentas para disciplinar ou orientar as crianças, atenção individualizada), Construção da Paz (discussão de valores básicos, atitudes e comportamentos pacíficos) e Saúde e Higiene (cuidados importantes como lavar sempre as mãos, cobrir a boca quanto tossir, usar as latrinas etc).

De acordo com Stauring, boa parte do currículo foi deixada aberta para que os principais recursos fossem inseridas pelas professoras, como canções, brincadeiras, histórias e jogos. “Queríamos que elas contassem histórias a partir das suas experiências, como um veículo para ensinar o básico. As músicas que elas ouviram quando crianças, por exemplo, precisavam ser levadas para a aula.”

lideres_littleripplesCrédito: Little Ripples

Para isso, era preciso encontrar jovens mulheres refugiadas dispostas a aprender um novo ofício. Espalhou-se a notícia da chegada do Little Ripples e do processo de seleção. O primeiro grupo interessado, formado por mulheres de 16 a 26 anos, tinha o ensino primário completo, mas apenas algumas haviam terminado ou estavam cursando o ensino secundário. “A partir de um treinamento bastante interativo, começamos a selecionar aquelas que aprendiam mais rápido, eram boas líderes, tinham uma boa combinação de personalidade e conhecimento. Elas não chegaram com um treinamento formal, mas foram selecionadas por seus pontos fortes”, explica o diretor.

Segundo Stauring, se a educação formal das mulheres refugiadas era aquém dos padrões, por outro lado, elas eram especialistas em seus próprios contextos e cultura. “Elas trouxeram outras habilidades sobre como cuidar da sua própria comunidade que superam o que nós sabemos. É lindo ver como elas enriqueceram o currículo de uma forma muito maior do que havíamos imaginado. É um currículo vivo e que cresce com as experiências das professoras e da comunidade.”

Inicialmente, a ideia era que o Little Ripples fosse realizado em um modelo de escola grande e tradicional. Porém, quando a construção foi finalizada e o projeto pronto para ser lançado, a situação humanitária começou a mudar drasticamente nos campos do Chade. “Todos os recursos começaram a ser cortados, tanto alimentação quanto saúde, educação. Passamos a sofrer uma resistência das organizações humanitárias, pelos investimentos serem considerados caros. Tivemos então que pensar em como fazer o projeto acontecer sem termos que construir essas escolas”, conta Stauring.

Foi assim que surgiu a ideia do Little Ripples Ponds (lagoas), que transformou as próprias casas dos refugiados em ambientes escolares, com custo muito mais baixo. “Conversamos com os familiares e comunidade e eles amaram a ideia. Felizmente, a partir de uma situação negativa, descobrimos um modelo melhor. O treinamento é o mesmo, o princípio do projeto também, mas dentro da comunidade, aproveitando o estilo de vida da comunidade, com as crianças sentadas sob as árvores.”

little_ripples_4Crédito: Little Ripples

Atualmente, o projeto está em expansão. Em outubro, outras cinco ponds serão abertas no campo Goz Amer e, até 2017, o Little Ripples deve ser implementado em pelo menos quatro campos de refugiados no Chade. “Acabamos de visitar campos em Camarões e na República Centro-Africana e queremos iniciar o projeto também nesses países”, diz o diretor.

A vontade de expandir aumenta com os resultados das avaliações anuais, mesmo os aparentemente muito simples, como criar o hábito de lavar as mãos em um ambiente em que é comum ter doenças gastrointestinais. “Em toda a nossa pesquisa, vimos que se questões de saúde, como a má nutrição, e psicossociais, como o comportamento agressivo, não forem abordadas nessa faixa etária crítica, esses indivíduos terão que lidar com elas pelo resto da vida. Entendemos que é um investimento muito, muito pequeno para evitar algumas das crises que estamos vendo”, finaliza.


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educação infantil, inclusão, wise

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