Quando a prática muda crenças sobre liberdade curricular
Pesquisador inglês, que já acreditou que currículo é arbitrariedade, mudou de opinião e agora defende dois padrões: nacional e escolar
por Carolina Lenoir 3 de outubro de 2014
Quando um país se propõe a estabelecer um base nacional comum curricular é natural que haja algum tipo de resistência ou embate entre diferentes correntes ideológicas até que se chegue a um consenso que viabilize a sua implantação. Ao longo desse processo, alguns argumentos são colocados à prova. Um exemplo emblemático é o do especialista em sociologia do conhecimento Michael Young, professor emérito do Instituto de Educação da Universidade de Londres e um dos principais teóricos em educação do mundo, que reviu as ideias que defendia ao se deparar, em campo, com um cenário diferente do traçado por suas teorias.
Em 1971, Young publicou o livro Knowledge and Control, em que se posiciona a favor da liberdade curricular e endossa a visão de que o currículo se trata de uma arbitrariedade cultural, em que as decisões envolvem relações desiguais de poder. Porém, no início da década de 1990, ao trabalhar na África do Sul quando Nelson Mandela foi eleito presidente, o especialista foi forçado a mudar de opinião. Para se livrar da educação do tempo do apartheid e tudo o que ela representava, o primeiro governo democrático do país passou por uma construção curricular muito abrangente e generalista. Os professores, tão acostumados com um currículo hierárquico e ditatorial, não souberam o que fazer. Ao ver os padrões educacionais caírem quando se esperava o contrário, Young percebeu que dar aos professores e às escolas total liberdade não é a única resposta para se melhorar as oportunidades para todos os alunos.
Foi então que o especialista começou a desenvolver os principais conceitos que permeiam a sua visão atual sobre o currículo, resumidos no artigo O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um pensamento curricular centrado em disciplinas. Um deles é o do conhecimento poderoso. Em todas as sociedades, em qualquer área, há um conhecimento que é melhor, mais importante para ser aprendido e aplicado. Na educação, é desse conhecimento poderoso que todos os alunos precisam para irem além de suas próprias experiências.
Para Young, crianças e jovens vão à escola para aprender aquilo que não alcançam por meio de suas vivências cotidianas – ou seja, o conhecimento poderoso tem uma característica emancipatória. Ele compreendeu que somente um currículo nacional, centrado em disciplinas definidas a partir do saber posto à prova por especialistas ao longo dos anos – e não em temas derivados de opiniões e preferências pessoais de alunos e professores –, podem garantir que todos os estudantes, em todas as escolas, tenham assegurado o seu direito ao conhecimento mais confiável disponível em cada área, que será essencial para o seu desenvolvimento pessoal, profissional e acadêmico.
A experiência sul-africana ensinou que é o currículo nacional que irá determinar quais são os principais conteúdos que devem ser contemplados em sala de aula. “Como em qualquer profissão, os professores necessitam de orientações sobre o que é o conhecimento importante ao qual todos os alunos precisam ter acesso”, explicou Young em entrevista por e-mail ao Porvir. Porém, ainda que afirme que fornecer essas orientações é o papel de uma base curricular nacional, o especialista acredita que o documento não deve especificar como os professores ensinam. “Os profissionais precisam de autonomia para interpretar as diretrizes para o contexto de suas escolas. Portanto, um currículo escolar é tão importante quanto um currículo nacional.”
O currículo escolar incorpora o que Young chama de pedagogia, que é a forma como o professor interage com os alunos e os permite acessar os conceitos do currículo. Essa é uma das principais distinções feitas pelo especialista em suas obras. Enquanto o currículo traça as metas do professor e da escola, é por meio da pedagogia que os profissionais irão motivar os estudantes e transformar os conceitos em uma realidade para os alunos. “Os professores precisam desenvolver o conhecimento especializado adequado à sua disciplina e à sua pedagogia não só em seu desenvolvimento profissional inicial, mas também de forma contínua”, afirma.
Essa pode ser a resposta aos receios existentes – inclusive no Brasil, que discute a construção e a implementação de uma base nacional curricular – em relação à autonomia do professor. Para Young, a chave é a capacitação. “Além de uma orientação nacional, também é necessário o desenvolvimento do conhecimento profissional dos professores por meio, por exemplo, de associações e links com universidades, que são um recurso tanto para reforçar a sua autonomia – que não é sinônimo de ‘vale tudo’ –, quanto, principalmente, para tornar o ensino uma profissão mais madura.”
Assim como o debate brasileiro, o processo de desenvolvimento de uma base comum é uma experiência intrincada mesmo em países com um sistema educacional tradicional como o da Inglaterra. Implantado pela primeira vez em 1988, o currículo nacional inglês já passou por várias revisões – sendo a última em outubro de 2013 – e a discussão tem sido muito polarizada, com confrontos entre governo e comunidade educacional. De acordo com Young, as disciplinas representam um forte elemento do currículo das escolas de elite no país, tanto públicas quanto privadas, mas ainda há um pressuposto de que esse currículo é apropriado apenas para uma minoria. “No entanto, como uma sociedade democrática, o currículo deveria ser para todas as crianças até, pelo menos, até o fim do ensino básico. Trata-se de um desafio pedagógico e alguns professores com recursos limitados e classes muito grandes são inclinados a desistir de alguns alunos e descrevê-los como ‘não-acadêmicos’.”
Para o especialista, seja na Inglaterra ou em qualquer outro país, outro desafio é entender o currículo com o propósito do desenvolvimento intelectual dos estudantes, e não como um meio para resolver problemas sociais e econômicos. Para ele, quanto mais o foco for esse, menos provável é que os problemas sejam tratados onde de fato se originam. “É importante se entender como verdade o fato de que nenhum currículo pode superar as desigualdades que têm origem na economia, mas isso não deve ser um argumento contra um currículo nacional. Se um país realmente quer estender o acesso ao conhecimento para todos, é necessária toda uma série de mudanças sociais na economia e na sociedade que não são apoiadas atualmente pelos principais partidos políticos. Um currículo para todos os alunos, baseado no conhecimento, deve ser um objetivo a ser alcançado a longo prazo”, diz Young.