Socióloga defende papel do professor e propõe mais momentos de reflexão durante pandemia
Em transmissão online do LIV (Laboratório Inteligência de Vida), Lourdes Atié reforça importância do contato entre professores e estudantes e da desaceleração das tarefas escolares durante quarentena.
por Redação 24 de abril de 2020
Um dos pontos fundamentais na condução da educação em tempos de crise como a instaurada pelo coronavírus (COVID-19) é dar suporte e atenção às necessidades dos professores, incentivando que utilizem o momento para repensar suas práticas e se reconectar com o que realmente faz sentido no processo de ensino-aprendizagem. É isso que defende Lourdes Atié, socióloga e educadora.
Lourdes participou recentemente de uma transmissão online do LIV (Laboratório Inteligência de Vida), programa que promove o desenvolvimento de habilidades socioemocionais para crianças e jovens em escolas e é parceiro do Porvir na cobertura “Educação em Tempos de Coronavírus”.
Confira abaixo os principais trechos da conversa.
LIV: Por que você escolheu o tema ‘Cuidar de quem ensina em tempos de coronavírus’ nesta live?
Lourdes Atié: No meio do ano passado, escrevi o livro “Cuidar de quem ensina”, que foi lançado, em 2020, pelo programa LIV+. Penso que, em tempos de novo coronavírus, nada melhor do que debater este assunto. No Brasil, os colégios são muito acelerados. Por conta disso, os professores, antes mesmo do novo coronavírus, já estavam muito estressados. Portanto, a escolha deste tema foi super oportuna. Quanto mais aumenta a reclusão das pessoas e quanto mais tempo elas passam em casa, mais alucinadas as escolas ficam, preocupadas em enviar lição, trabalhos e informações para os alunos. E os professores que estão trabalhando em casa, muitas vezes sem as condições satisfatórias de trabalho, estão absolutamente enlouquecidos. Todo mundo está pensando muito no aluno que não pode ficar à toa em casa. Já o diretor da escola pensa que o colégio não pode parar. A família com filho matriculado na rede particular, por sua vez, reflete sobre o problema porque está pagando a mensalidade. No entanto, ninguém pensa no professor que está mudando radicalmente sua forma de trabalhar. O docente deixou de ensinar presencialmente, como domina bem, para lecionar exclusivamente de forma digital, sem ter sido devidamente preparado e sem ter tido tempo para refletir melhor o que valeria a pena ensinar e o que seria melhor eliminar. Temos, então, mestres que estão em um nível de esgotamento igual ao dos profissionais da saúde, que estão lidando com mortes. Isso é muito grave!
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LIV: O que a situação está gerando em termos de estresse para alunos e professores, dois grupos muito envolvidos no processo educativo?
Lourdes Atié: O coronavírus gerou angústia e uma mudança nas formas de viver, atingindo também as escolas. O que me preocupa é que estamos reproduzindo o mesmo modus operandi que tivemos a vida toda. A escola brasileira tem uma característica peculiar que é do muito: muito conteúdo para ensinar, muito planejamento, muita avaliação, muita festa, muito de tudo, o que tem gerado estresse em duas pontas. Os alunos entram na escola e começam a escolaridade muito encantados, gostando e curtindo. À medida que vão crescendo, o estresse vai aumentando e chegam ao ensino médio dizendo ‘graças a Deus estou saindo’. Do outro lado, os professores se sentem com menos autonomia e cada vez mais cobrados. Estamos vivendo momentos de muita frustração no que diz respeito à forma como trabalhamos. Tenho falado com professores que viraram máquinas de produzir exercícios, aulas online e material para inúmeras plataformas. Isso vai gerando uma ansiedade porque é preciso dar conta de tudo. Outro desafio é que muitos docentes têm dificuldades em transitar em outro ambiente que não o presencial, com o qual está acostumado.
LIV: O que professores podem fazer diante dessa situação?
Lourdes Atié: Eu queria dizer que os professores respirem. Se eles não se cuidarem, não vão conseguir ensinar. Escuto pessoas preocupadas com o que será do currículo sendo que não sabemos o que vai acontecer no mês que vem. Vamos pensar que o que estamos vivendo é uma grande oportunidade para fazer diferente, não vamos deixar passar. É outro tempo, um dia de cada vez, vamos focar agora na nossa saúde mental. Estamos vivendo uma nova forma de existir, uma nova forma de viver.
LIV: É possível dizer que, assim como para as professores, também há uma sobrecarga nas crianças e jovens nesse momento?
Lourdes Atié: Uma triste realidade que estamos constatando nesse furor de muita atividade é que aquela autonomia que colocamos no projeto político pedagógico da escola ainda não foi atingida. Na verdade, nesse monte de coisas que estamos mandando para as crianças fazerem, tenho escutado que tem gente usando estratégias do mundo corporativo para controlar o tempo dos estudantes. Devemos pensar que as crianças não são máquinas e que está difícil para elas também. Antes, elas só paravam por dois motivos: férias ou adoecimento. Agora, estão atoladas de tarefas para serem realizadas em casa e ainda com um prejuízo: sem a presença dos colegas. Se a escola já tinha pressão, em casa é muito pior. Então vamos desacelerar e buscar esse tempo justo, que respeita o tempo de cada um.
LIV: Falamos muito sobre incentivar o desenvolvimento da autonomia entre os estudantes. Mas como é possível que professores sejam mais autônomos?
Lourdes Atié: O professor não deve ter pudor em estabelecer o que sabe e o que não sabe. Então que ele aproveite esse momento e não faça as coisas só por outros, mas por si também, estude, pense no que significa aprender e como é possível potencializar que alunos aprendam mais se ensinarmos de outra forma. Não é simplesmente dominar aplicativos e plataformas. Isso é uma visão da sociedade de consumo, das fórmulas prontas. Os professores precisam ser humildes e aproveitar o momento para ensinar, aprender, estudar e trocar mais com os colegas.
LIV: Qual é o papel dos professores nesse contexto de planejar o conteúdo e como as atividades serem ministradas a distância?
Lourdes Atié: Tenho ouvido que famílias deixarão de pagar mensalidade porque já encontraram uma forma de as crianças ficarem em casa. O ensino domiciliar está querendo provar que, se é ‘só’ uma questão de receber tarefa em casa, não precisa de professor e a escola pode deixar de existir. Está mais do que na hora de professores que sempre se sentiram desvalorizados assumirem essa liderança e provar sua relevância mesmo numa sociedade que não os valoriza. São os professores que mostrarão aos alunos que, mesmo sem sair de casa, eles podem se encantar pelo conhecimento, que aprender é uma coisa absolutamente fantástica e que, sem ele, vamos cair na ignorância e na intolerância que o mundo está vivendo. Temos que lutar porque sem uma escola relevante não é possível aprender.
LIV: Se você pudesse dar uma dica de ouro para o momento, qual seria?
Lourdes Atié: Ninguém tem a resposta para isso. Devemos analisar qual caminho é melhor para a nossa realidade. Teremos perdas e prejuízos, mas como estamos vivendo um tempo de imprevisibilidade absoluta, devemos focar em nos conectar com nós mesmos e com o que nos faz bem. Fique do lado do seu filho, veja como ele aprende, não queira explicar tudo. O pulo do gato é sabermos o que é do nosso tamanho e o que podemos fazer. Além disso, quero deixar a dica para que professores nunca duvidem da representatividade que têm na vida de seus alunos e do papel relevante da escola. É preciso frear a ansiedade porque ninguém aprenderá nada dessa forma. Mais do que o currículo, iremos aprender com a vida nesse momento.
Na próxima semana, programe-se para participar das seguintes transmissões no Instagram @laboratoriointeligenciadevida:
Terça dos educadores 28/4
“Ensino a distância para quem” – O coronavírus e o acirramento das desigualdades entre alunos
Com a professora Gina Vieira Ponte e Caio Lo Bianco, idealizador do LIV
Quarta das famílias 29/4
“O papel das redes de apoio no isolamento social”
Com Monique Santiago, pedagoga e educadora parental