TaRL: metodologia indiana que ensina alunos pelo nível real, não pela série
É possível simplificar a personalização do ensino. Entenda como o TaRL usa avaliações lúdicas para identificar o nível exato de aprendizagem do aluno e oferece atividades interativas que constroem a confiança e o conhecimento em leitura e matemática.
por Ruam Oliveira
29 de setembro de 2025
Ensinar no nível certo para que todas as crianças aprendam. Essa é a proposta do Teaching at the Right Level (TaRL, ou “Ensinar no nível certo”, em tradução livre), metodologia desenvolvida pela organização indiana Pratham. Em sânscrito, Pratham quer dizer “primeiro”. O nome marca sua trajetória como pioneira em mudanças duradouras e de grande alcance na educação indiana.
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A abordagem já beneficiou mais de 60 milhões de crianças na Índia e em países africanos ao reorganizar turmas de acordo com o nível real de aprendizagem dos estudantes e garantir que todos dominem as habilidades básicas de leitura e matemática. No Brasil, a iniciativa está em fase de testes.
A lógica por trás do TaRL é simples e transformadora: assegurar que cada criança aprenda o essencial antes de avançar para etapas mais complexas, de maneira individualizada e próxima da realidade.
Matemática e outros aprendizados
“Na matemática, evitamos termos técnicos logo no início. Em vez de falar em unidade, dezena ou centena, partimos do que faz sentido para as crianças”, exemplifica Meera Tendolkar, diretora de conteúdo e treinamento da Pratham. “Na minha língua, chamamos dez de ‘feixe’ e as unidades soltas de ‘palitos’. Usamos canudos ou gravetos: cada dez juntos vira um feixe. Quando ensino empréstimo na subtração, mostro que é preciso desfazer um feixe para emprestar palitos. As crianças entendem concretamente e só depois passamos a chamar de unidade, dezena”, conta.
Meera esteve no Brasil a convite do Instituto Unibanco para o V Seminário Internacional de Gestão Educacional. Leia mais aqui.
A metodologia TaRL consolidou-se em parceria com o Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL, na sigla em inglês), centro de pesquisa global sediado no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), nos Estados Unidos, que atua na redução da pobreza com foco em educação e políticas públicas.
Em 2019, os economistas Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer receberam o Prêmio Nobel de Economia justamente pelo impacto de pesquisas que comprovaram a eficácia do TaRL e mostraram como soluções baseadas em evidências podem transformar a vida de milhões de crianças em situação de vulnerabilidade.
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Durante sua passagem pelo Brasil, Meera Tendolkar conversou com o Porvir. Em mais de uma hora de conversa, compartilhou aprendizados, exemplos práticos e perspectivas sobre como essa experiência vem sendo adaptada e ampliada para diferentes contextos. “O trabalho da TaRL é justamente transformar essa familiaridade em conhecimento real e aplicação prática”, reforça.
Confira a entrevista
Porvir: Poderia contar um pouco sobre o surgimento da Pratham?

Meera Tendolkar: O Pratham começou a trabalhar no setor da educação entre 1995 e 1996. Naquele momento, a atuação era restrita a cidades como Mumbai, em especial nas áreas mais vulneráveis, com foco na pré-escola. O governo até oferecia espaço físico, mas não assumia a responsabilidade pela educação pré-escolar.
Mais de 50% das crianças ingressavam na escola sem ter passado por qualquer experiência de educação infantil. Por isso, o Pratham decidiu mobilizar comunidades e famílias para criar programas de pré-escola em nível comunitário. Mas surgiu a grande questão: quem ensinaria essas crianças?
Porvir: Como criaram os testes de níveis?
Meera Tendolkar: Percebemos que muitos não sabiam nada e tinham perdido o interesse em aprender. Nossa estratégia foi criar vínculos e dar atenção individualizada. Para entender melhor as dificuldades, elaboramos uma ferramenta de avaliação simples de leitura: letras, palavras, parágrafos e histórias curtas (de cerca de 70 a 80 palavras, equivalentes ao 2º ano).
O teste era individual, não em papel, justamente para observar o nível real de cada criança. A partir daí, identificávamos se estavam no nível de iniciante, letras, palavras, parágrafos ou histórias. Fizemos algo semelhante para a matemática: reconhecimento de números de um ou dois dígitos, subtração com reagrupamento e divisão.
Essa avaliação rápida nos dava um diagnóstico claro. Descobrimos, por exemplo, que muitos alunos do 5º ano não conseguiam ler uma história de nível de 2º ano, e mais de 70% não conseguiam resolver subtrações que deveriam dominar desde o 3º ano.
Em 2005, transformamos essa metodologia em um levantamento nacional: o ASER (Annual Status of Education Report, ou Relatório Anual sobre a Situação da Educação). A cada ano, voluntários visitavam aldeias, avaliavam crianças do 1º ao 7º ano em leitura e matemática, e apresentavam os resultados à comunidade, diante dos pais. Foi um choque: ficou evidente o tamanho do desafio da aprendizagem no país.
Porvir: Esse foi o começo do Teaching at the Right Level?
Meera Tendolkar: Sim. O programa ganhou o nome de “Ensinar no Nível Certo” (Teaching at the Right Level), porque se baseia em avaliar a criança não pela série em que está matriculada, mas pelo nível real de aprendizagem em que se encontra, oferecendo atividades específicas para ajudá-la a avançar.
As atividades são interativas, incentivam a participação de toda a turma, mas também funcionam em pequenos grupos e até em atendimentos individuais. A ideia é criar progressão: à medida que uma criança avança, ela pode mudar de grupo e alcançar novos níveis.

Em alguns lugares, os agrupamentos são homogêneos (crianças de níveis semelhantes com um professor). Em outros, por falta de professores, as turmas são heterogêneas, com múltiplos níveis em uma só sala. Mesmo assim, os resultados mostram progresso, porque a metodologia foca no que cada criança realmente precisa aprender.
Porvir: Como a metodologia se expandiu?
Meera Tendolkar: Apesar das críticas iniciais, os governos estaduais passaram a levar o problema a sério. O modelo de ensino criado pelo Pratham, simples e comunitário, passou a ser estudado e replicado. O economista Abhijit Banerjee, Prêmio Nobel em 2019, conduziu pesquisas de campo mostrando sua eficácia.
Esse é o coração do trabalho do Pratham: identificar o nível de aprendizagem de cada criança e garantir que receba atividades adequadas para avançar, em vez de simplesmente seguir o currículo da série em que está matriculada.
Porvir: Vocês colaboram com outros países do mundo?
Meera Tendolkar: Nossa primeira experiência foi na Zâmbia. Representantes do Ministério da Educação viajaram até a Índia, visitaram o programa tanto nas comunidades quanto nas escolas e disseram: “É exatamente isso que queremos no nosso país. Nossas crianças enfrentam os mesmos problemas e o que vocês estão mostrando é simples e eficaz.”
Em 2016, foi feito um piloto em 80 escolas, em duas províncias: Sul e Leste. Depois disso, o programa ganhou velocidade e hoje já está em escala nacional. O ponto positivo é que, mesmo com as mudanças nas autoridades do Ministério da Educação ao longo dos anos, o programa vem sendo mantido.
Porvir: O quão fundamental foi essa experiência para vocês conseguirem expandir para outras áreas?
Meera Tendolkar: Graças à experiência na Zâmbia, outros países da África Subsaariana também nos procuraram. Passamos, então, a trabalhar em parceria com governos ou organizações locais para apoiar essa expansão.
Na Costa do Marfim, por exemplo, o governo também se interessou. É um país de língua francesa, com ministério centralizado. Decidiram, em nível nacional, adotar o programa. Primeiro, começaram na região do cacau, com apoio da Fundação Yakub (ligada às fábricas de chocolate). Agora, planejam expandir este ano para diferentes províncias, em escala nacional.
O Marrocos também adotou a iniciativa. A diferença é que, na Zâmbia e na Costa do Marfim, o programa acontece fora do horário escolar: depois das aulas, os professores oferecem turmas extras de TaRL. Já na Costa do Marfim, foi incluído no horário: 45 minutos de língua francesa e 45 minutos de matemática.
No Marrocos, decidiram por um formato intensivo: nos dois primeiros meses do ano letivo, toda a escola trabalha apenas com TaRL, a fim de reduzir o número de crianças com níveis muito baixos de aprendizagem. Depois, continuam com quatro horas semanais para os que ainda precisam de apoio.
Em países como Botsuana e Uganda, apoiamos organizações locais que, por sua vez, trabalham junto com os governos.
Porvir: E aqui no Brasil, como será?
Meera Tendolkar: Estamos atuando com a Motriz, organização parceira. Em coordenação com a Motriz, a organização local chamada Elos é quem implementa o programa nas escolas públicas. A Elos criou uma equipe de “líderes de prática”, que são formadores e mentores principais.
Eles realizam a formação de professores, e os professores aplicam o programa. O trabalho está acontecendo por fases. Começou em 2022 com cerca de 13 escolas. Hoje, já se expandiu para algo em torno de 13 redes.
Porvir: Como funcionam essas formações e parceria entre as escolas?
Meera Tendolkar: Não entregamos planos de aula prontos. Dizemos: vocês precisam aplicar a avaliação. E a nossa avaliação é muito importante porque é individual, feita um a um. E quando professores, mentores ou formadores realmente aplicam essa avaliação, entendem a situação concreta de suas turmas.
Antes, o professor dizia apenas: “Na minha turma há algumas crianças que não estão aprendendo.” Mas o que exatamente não estão aprendendo, ele só descobre com a avaliação. Ela mostra não apenas o que não aprenderam, mas em que ponto estão com dificuldade.

Dou um exemplo: numa subtração simples como 47 – 22, o resultado pode até sair certo, mas o processo pode estar incorreto. No momento em que o professor faz a avaliação individual, percebe os pontos exatos onde elas erram.
Na leitura acontece o mesmo. Há uma linha tênue entre ler palavras e ler parágrafos. Às vezes a criança parece estar lendo palavras, mas na verdade está apenas juntando letras isoladas: “ma… la…”. O professor percebe: “enquanto eu ensino história ou ciências, essa criança ainda não consegue ler uma palavra inteira.”
Uma vez que entendem isso, as atividades são pensadas para serem interativas, fazendo com que as crianças se envolvam mais, seja em língua ou em matemática. Não falamos diretamente em aprendizagem socioemocional, mas ela acontece indiretamente: ganham confiança, aprendem a conviver, trabalham em pares, aprendem a respeitar os outros.
Porvir: Poderia exemplificar?
Meera Tendolkar: Isso aparece em atividades simples, como o “mapa mental”. A professora escreve uma palavra no quadro e pede: “Digam tudo o que vier à mente com essa palavra.” A professora não diz “cale-se” ou “não fale isso”. Tudo pode ser dito, os alunos não se sentem inibidos. Depois, ela vai anotando as palavras e organizando o pensamento da turma.
Em outras atividades, escreve frases incorretas no quadro e pergunta: “Vocês encontram algum erro aqui? Qual?” Em vez de falar de gramática de forma abstrata, deixa que os alunos descubram. Eles gostam disso.
Porvir: Vocês atuam em vários países. Como funciona a adaptação para diferentes línguas locais?
Meera Tendolkar: Trabalhamos com materiais muito simples de conseguir. Na Índia, por exemplo, usamos muito os quadros silábicos. Nos anos 1990, o governo tentou retirá-los do currículo, defendendo apenas a abordagem de linguagem integral. Mas percebemos que os quadros silábicos são muito úteis. Usamos para ensinar a formar palavras. Foi tão bem-sucedido que, quando começamos em outros países, sugerimos que também os criassem.
Na Zâmbia, trabalhávamos em duas línguas locais, o Sinanjo e o Chitonga. Como a maioria desses países usa o alfabeto latino, como o português, não foi difícil. Pedimos que escrevessem as vogais, depois as consoantes, e combinassem as sílabas. Em seguida, pedimos: “Encontrem o seu nome.” Eu dizia: “Meu nome é Mira. Dá para escrever com essas sílabas?” As pessoas percebiam a utilidade e adotavam.
Introduzimos o quadro silábico em várias redes de ensino. No caso do francês, foi mais desafiador, porque a língua é muito diferente. Mas tivemos apoio de uma linguista francesa, que ajudou a criar um quadro silábico para o idioma local. O governo aprovou e começou a usá-lo.
O quadro silábico funciona como uma tabuada ou um quadro de adição: com ele, as crianças formam sílabas, criam palavras e depois conectam ao que encontram em parágrafos e histórias. Isso ajuda a entender como as palavras se formam.
Porvir: O Brasil e o mundo enfrentam problemas quando se trata do ensino e aprendizagem de matemática. Do seu ponto de vista, qual seria a raiz do problema?
Meera Tendolkar: Construir o conhecimento numérico é fundamental. Notamos que não basta reconhecer números. Muitas crianças que têm dificuldade em reconhecer o número escrito conseguem contar oralmente de 1 a 100 sem erro. Mas, se você mostra o número 14 escrito, elas não o reconhecem imediatamente. Em vez disso, voltam a contar: 1, 2, 3, 4… até chegar a 14. Ou seja, não reconhecem aleatoriamente, apenas por sequência. Também não compreendem bem o valor posicional. Por isso cometem erros nas operações.

Na resolução de problemas, a dificuldade é outra. Uma criança pode ter boa compreensão de leitura e ainda assim não conseguir resolver um problema matemático escrito, porque o nível de compreensão exigido é diferente. Muitas vezes, a mesma operação que consegue resolver isoladamente, não entende quando aparece em forma de enunciado.
Porvir: Qual a orientação da metodologia?
Meera Tendolkar: Nossa estratégia é ir do concreto ao abstrato, tanto nos números quanto nos problemas. Trabalhamos com palavras da vida cotidiana antes de introduzir a linguagem matemática. Em vez de falar de “adição” ou “subtração”, usamos termos como “juntar”, “tirar”, “remover”. Depois, fazemos a ponte para a linguagem formal.
O que percebemos é que, quando dizemos que uma criança está no nível iniciante, isso não significa que ela não saiba nada. Ela já é familiarizada com alguns conceitos, ouviu palavras como “adição” ou “valor posicional”, mas não domina seu significado nem sabe aplicar.
Porvir: É como se elas estivessem chutando?
Meera Tendolkar: Elas estão apenas adivinhando e isso, às vezes, é uma questão de comparação. Por exemplo: na Índia, em Mumbai, as crianças que vendem coisas nos trens ou nas ruas sabem negociar. Se você pedir para dar 10 rúpias (R$ 0,60), elas fazem a conta imediatamente e ainda garantem lucro. Mas, se a mesma conta for apresentada na forma de algoritmo, elas cometem erros, porque não entendem o formato escrito. Já na escola é o contrário: as crianças estão em um ambiente formal, mas não conseguem aplicar o conhecimento no cotidiano. Por isso, é essencial combinar as duas coisas. E isso é uma necessidade da vida diária, certo?





