'Temos resistência em trabalhar questões de gênero na escola' - PORVIR
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Diário de Inovações

‘Temos resistência em trabalhar questões de gênero na escola’

#AgoraÉQueSãoElas: professora cria projeto que conta história de mulheres inspiradoras

por Gina Vieira Ponte de Albuquerque ilustração relógio 4 de novembro de 2015

Eu já estou em sala de aula há 25 anos e notei uma certa dificuldade de me aproximar dessa geração conectada de nativos digitais. Fiz alguns cursos de atualização e entendi que eu precisava usar as novas tecnologias. Então, criei uma página no Facebook para estreitar os laços com os meus alunos.

Fiquei muito assustada com a incidência do sexting, prática cada vez mais recorrente entre os adolescentes, onde eles postam conteúdos com apelo sexual. O que me chamou atenção, especialmente, foi um vídeo postado por uma aluna de 13 anos, que dançava de forma totalmente erotizada. A coreografia e a letra da música chamavam muita atenção pelo forte apelo sexual.

Tentando entender aquele comportamento, fiz algumas pesquisas e me dei conta de que essa menina estava reproduzindo o referencial feminino celebrado na mídia, que mede a mulher pelo quanto ela é sexualmente desejável e corresponde a um determinado padrão de beleza. Faltava uma discussão na escola sobre isso.

Criei o projeto Mulheres Inspiradoras com as turmas do 9º ano do ensino fundamental. Ele partia de um principio básico: se os nossos alunos e alunas estão se inspirando em referenciais femininos estereotipados, a alternativa seria trazer outros modelos, onde a mulher é vista por outra perspectiva.

Para isso, propus a leitura de seis obras de autoria feminina. Tive o cuidado de colocar duas obras de autoras com idade similar a deles (“O Diário de Anne Frank” e “Eu sou Malala”). Eles também leram Carolina Maria de Jesus (“Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”) e três livros de Cristiane Sobral, que tratam da condição feminina, identidade negra e ressignificação do cabelo.

profe Gina - DiárioArquivo Pessoal

Depois disso, estudamos a biografia de dez grandes mulheres. Selecionei jovens e idosas, acadêmicas e com pouca escolaridade. A ideia era que eles percebessem que onde quer que a mulher esteja, ela pode desempenhar um papel decisivo.

Em outra etapa, levamos para a escola quatro mulheres de Ceilândia (região administrativa do Distrito Federal). Eles entrevistaram e conheceram a história de uma escritora, uma médica e duas professoras que têm feito a diferença na nossa comunidade.

Para fechar o projeto, os alunos tiveram que escolher mulheres inspiradoras em suas vidas. Eles foram preparados para entrevistá-las, oferecendo escuta ativa, sensível e de qualidade. Além disso, gravaram as entrevistas, transcreveram o material e produziram um texto autoral, em que contavam a vida dessa mulher e o que a torna inspiradora.

A maioria escolheu entrevistar a mãe, avó, bisavó ou uma tia. Foi uma experiência muito legal porque eles redescobriram a própria história e voltaram impactados. Eu li mais de 150 entrevistas e fiquei surpresa em perceber como as mulheres dessa comunidade são o sustentáculo de suas famílias.

Com esse trabalho, os meninos passaram a verbalizar que, muitas vezes, eram machistas e não sabiam. O machismo é tão forte na nossa cultura que, para desconstruir isso, você tem que fazer um trabalho detalhado, envolvendo muito diálogo e reflexão.

Durante as entrevistas, foram recorrentes as situações onde os homens abandonavam a mulher quando descobriam que ela estava grávida. Falamos sobre essa característica do machismo que costuma responsabilizar apenas a mulher por um filho. Outro traço marcante foi a questão da violência. Algumas mulheres entrevistadas mal conseguiram falar, em função do forte histórico de violência que viveram.

Eu não imaginava que para elas era tão importante ter recebido essa escuta. Foi um processo de reorganização da própria existência. Um menino disse, inclusive: “professora, eu não entendi porque a minha avó pediu para ficar ouvindo aquela gravação”.

Percebendo que havia muita beleza naquelas histórias, decidimos transformá-las em um livro. São mais de 100 histórias que devem ser publicadas em breve. Embora o livro seja lindo, eu sinto que o mais importante de tudo foi o processo.

Eu não tinha dimensão de como era desafiador trabalhar essa temática. Descobri que temos um machismo institucionalizado e uma grande resistência em trabalhar questões de gênero. As pessoas temem as repercussões, existe uma estrutura muito conservadora. Precisamos levar esse debate para sala de aula. Mas, ele tem que ser uma coisa permanente, não pode ser algo esporádico.


Gina Vieira Ponte de Albuquerque

Gina Vieira Ponte de Albuquerque é professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. É licenciada em Letras pela Universidade Católica de Brasília. Tem especialização em Educação a Distância e em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar pela Universidade de Brasília. Pela realização do Projeto Mulheres Inspiradoras conquistou o 8º Prêmio Professores do Brasil, o 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos e o 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero. É a única brasileira finalista do Prêmio Ibero-Americano de Educação em Direitos Humanos de 2015.  

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ensino fundamental, gênero

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