Violência de gênero na sala de aula: raça, classe e diversidade não podem ficar de fora do debate - PORVIR
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Inovações em Educação

Violência de gênero na sala de aula: raça, classe e diversidade não podem ficar de fora do debate

Escola é fundamental para rever o olhar da sociedade sobre o tema e rediscutir estereótipos que ainda contribuem para mortes por feminicídio e homofobia, dizem especialistas

por Agnes Sofia Guimarães ilustração relógio 8 de março de 2023

Quando foi vítima de violência doméstica, Karinny Lima de Oliveira escutou muitos comentários de questionamento e de surpresa diante de suas denúncias. Como uma mulher que era pesquisadora da área do direito poderia ser vítima do crime? 

Angustiada, ela passou a buscar mais referências sobre a Lei Maria da Penha. A partir de um curso livre do Instituto Maria da Penha, localizado no Recife (PE), entendeu que, ela mesma, carregava uma formação machista, a partir de um trabalho que realizou com colegas no qual trabalhavam com a identificação de padrões de gênero em músicas e novelas.

“Na área jurídica a gente não discutia gênero, foi algo que encontrei na área da educação. A gente fez o trabalho, e eu percebi quantas de nós ainda reproduzimos a violência a partir de nossa formação pessoal”, conta. 

A experiência levou Karinny ao mestrado em educação na UFPE (Universidade Federal da Pernambuco), e por lá pesquisou o projeto “Maria da Penha vai à Escola” na cidade de Caruaru. A iniciativa é baseada no programa federal de mesmo nome, e consiste na elaboração de atividades curriculares sobre violência de gênero nas escolas públicas e privadas da cidade. São abordados temas como Lei Maria da Penha, direitos humanos, objetificação do corpo da mulher, redes de proteção, entre outros.

O trabalho resultou na dissertação de mestrado “Marias também têm força: a emergência do discurso de enfrentamento à violência contra a mulher na rede pública de ensino de Caruaru”, que pode ser lida aqui

Para a pesquisadora, o estudo só reforçou a importância da escola como um ambiente de prevenção à violência, e de perspectivas que trabalham com gênero nos componentes curriculares. 

“A violência de gênero vai ser vivenciada em primeiro lugar na escola, porque é o maior espaço de interação social dos jovens, por muitas até mais do que a própria família, do que a própria igreja. Se a gente não tiver na escola uma estrutura com uma escuta acolhedora e com uma equipe multidisciplinar trabalhando essa pauta, não vamos conseguir lidar com a complexidade da violência”, afirma Karinny. 

A Lei ganhou este nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu agressor preso. Crédito: Gil Ferreira/Agência CNJ

Escola como um ambiente de prevenção

O Brasil ainda vive uma grande contradição que afeta a vida de meninas e mulheres – e também de meninos e homens que não estão sob as normas de gênero. 

Instituída em 2006, a Lei Maria da Penha, que trouxe mais rigidez às penas contra crimes de violência doméstica, é considerada pelo Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher) uma das três leis mais avançadas do mundo, entre 90 países que têm legislação sobre o tema. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo – 4,8 para cada 100 mil mulheres, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). E é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a organização Transgender Europe. 

Mas de que forma o tema pode aparecer nos currículos escolares, e o que está em pauta quando pensamos em violência de gênero para o público estudantil do ensino fundamental e médio? 

Além do programa “Maria da Penha vai à Escola” em 2021, a lei federal 14.164 criou a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, em que escolas públicas e privadas devem propor atividades para conversar sobre violência de gênero. No entanto, ainda não há índices para acompanhamento mais preciso de como a lei saiu do papel. 

Analista de políticas públicas do Ministério das Mulheres e responsável pelos acordos do governo federal com as secretarias interessadas pela implementação do programa Maria da Penha vai à Escola, Anita Monteiro destaca, como caminhos para a implementação de ações focadas no combate a violência de gênero na educação, a importância da intersetorialidade, em que pastas de áreas temáticas diversas podem contribuir para uma discussão mais ampla do assunto nas escolas. 

Anita pontua, no entanto, que o maior desafio é na articulação entre as instâncias municipais, estaduais e federais para que o projeto chegue, de fato, às escolas do país. 

“Esse tema exige uma luta coletiva, e é um grande desafio articular as políticas diversas que estão relacionadas ao combate a violência de gênero sob uma perspectiva da educação. Hoje o governo federal tem responsabilização direta sobre o ensino fundamental, e o ensino médio já está sob responsabilidade das secretarias sob os estados. Já é um grande exemplo dos desafios que temos quando pensamos sobre como trabalhar o tema a partir das políticas públicas”, explica.

Karinny também lembra que a educação pode ser um campo estratégico para o combate às altas estatísticas, e pode ser uma aliada à Lei Maria da Penha e a outras políticas públicas que atuam no combate e na punição da violência. 

“As políticas públicas de enfrentamento não conseguem dar conta de acolher todas as vítimas da violência, já que elas chegam, muitas vezes, depois que a violência aconteceu. Na escola, a gente trabalha na perspectiva preventiva, e consegue trabalhar com uma proposta de formação emancipatória, ou seja, uma feminilidade autônoma no caso de meninas e, para meninos, uma masculinidade não autoritária”, reflete. 

Crédito: Elza Fiúza/Agência Brasil

Formação para professores

Resultado da parceria entre a organização Serenas, de Direitos para Meninas e Mulheres, e a Seduc-SP (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo), o programa “Violência Contra a Mulher Não é Normal” é um exemplo de adoção de tais perspectivas em uma rede pública de ensino. Realizado de janeiro a julho de 2022, e trabalhou com a capacitação de profissionais da educação que atuam na rede pública de ensino do estado paulista. 

Foram realizadas formações presenciais, que contaram com a participação de 340 profissionais – incluindo integrantes do gabinete, equipes de gestão escolar, além de responsáveis pela redação de material didático e pelas ações da Escola de Formação da rede estadual. O programa também ofertou cursos online para estudantes e profissionais da educação, o que já resultou em mais de 29 mil professores da rede acessando os conteúdos, além de alunos.

Coordenadora do projeto, cofundadora e diretora-executiva da Serenas, Amanda Sadalla conta que a demanda da Secretaria Estadual surgiu com a retomada das aulas após os anos de isolamento social da pandemia, quando gestores observaram o aumento de casos de violência doméstica e sexual contra as alunas. 

“Eles observaram que as meninas voltaram para a escola pedindo ajuda, e foi o momento de perceber que a escola não tinha as ferramentas necessárias para acolhê-las, que havia dúvida sobre como receber os casos, para onde encaminhar. Também era a oportunidade de identificar as violências sofridas pelas meninas dentro da própria escola, em situações em que eram excluídas de atividades, sofriam assédio sexual de colegas e professores. Por isso,tivemos que construir a formação a partir dessas duas demandas”, explica.

Amanda ainda destaca os dados que a equipe coletou dos participantes durante a formação: 33% dos profissionais que realizaram o curso online já acompanharam um caso de violência de gênero com uma aluna e/ou colega profissional, 62% indicam ter sentido necessidade de receber suporte sobre o tema, mas apenas 22% afirmam ter sido amparados. Da formação online, 70% dos professores participantes relataram que nunca tinham passado por uma formação especializada sobre o tema.

O debate pelo olhar dos estudantes
Há 15 anos, o Projeto Curta Maria leva a temática de violência de gênero para a escola por meio do audiovisual. São promovidas jornadas de produção de vídeos e, ao final, os alunos podem realizar curtas que concorrem a prêmios. Criado por Maria José Rocha, o trabalho é realizado pela Casa da Educação Anísio Teixeira, e já atingiu cerca de 2 mil jovens. O projeto já foi reconhecido pelo Banco Mundial e, em 2016, contemplado pela Casa da Mulher Brasileira como exemplo de boas práticas. 
Coordenadora-geral da iniciativa, a professora Jacira Siqueira acredita que a boa recepção das escolas se deve ao convite que os alunos recebem para realizar suas próprias produções. 

“O projeto usa estratégias muito atrativas para os estudantes, com recursos audiovisuais que mais alimentam e atualizam o universo cognitivo, sensorial, afetivo e ético desses jovens que pertencem a uma geração midiática. É a promoção do protagonismo juvenil, já que os vídeos são feitos e editados nos celulares dos próprios alunos”, explica Jacira.

Combater a violência a partir da desconstrução, e dos recortes

Em sua dissertação de mestrado, Karinny acompanhou alunos que passaram por oficinas que faziam parte do programa “Maria da Penha vai à Escola”. Em muitos relatos, meninos compartilharam suas próprias experiências como vítimas de situações de machismo e de homofobia – e o debate que começou a partir das relações de violência contra meninas e mulheres passou a ser uma conversa sobre quebra de estereótipos e de construções de masculinidade mais saudáveis. 

Para a pesquisadora, a situação é um exemplo da abordagem que ativistas e especialistas em violência de gênero defendem para o tema: um olhar transversal que vá além do debate sobre situações vividas por meninas e mulheres cisgênero, e também jogue luz sobre violências também vividas por meninos LGBT+ e pessoas trans. 

“Aqui queremos derrubar a ideia de masculinidade que media conflitos a partir da violência, e observamos que isso ultrapassa a escola quando alunos meninos pedem pra gente levar o programa da Maria da Penha para o seu grupinho de futebol, por exemplo. E ampliar o debate também amplia o reconhecimento para violências enfrentadas por pessoas trans, já que aqui não falamos do gênero do ponto de vista biológico, e sim social, a partir de um olhar de dignidade humana”, defende. 

Crédito: FG Trade/iStock Crédito: FG Trade/iStock

Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência, Veridiana Parahyba Campos atua no PODHE (Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas). Entre as ações, o projeto já realizou debates sobre violência de gênero para escolas públicas de São Paulo, algumas delas localizadas nas regiões mais vulneráveis da cidade – com altos índices de violência contra mulheres cis e de mortes motivadas por transfobia. Os dados, segundo Veridiana, reforçam a importância de abordar a violência de gênero a partir de um recorte de raça e classe, e que também consiga conversar com identidades que vão além das cisgeneridade (o olhar do gênero a partir do sexo biológico).

“Nas escolas, conversar sobre violência de gênero também é acolher aquela aluna trans que não é chamada pelo seu nome social na lista de chamada. E muitas vezes essa aluna é uma travesti negra, então temos aí um recorte de raça que não pode ser ignorado, pois também é o que encabeça as maiores estatísticas de violência de gênero no país. Escolas são um pedacinho da sociedade, o que aumenta ainda mais nossa responsabilidade”, destaca a pesquisadora. 

Pesquisadore, feminista não-binária e ativista autônoma do movimento trans e lésbico, do movimento gordo e do movimento feminista em saúde, Alê Mujica destaca que ao ampliar diversas questões de gênero para o debate, o tema contribui para repensar nas referências de escola e de educação, que para elu, ainda reforça um olhar branco, masculino, magro e cisgênero, o que restringe as oportunidades de bem-estar de alunos que fogem do padrão. 

“Pensar sobre gênero pode ser um caminho para pensar nas outras identidades de corpo, étnico-raciais de alunes, identificando fissuras que vão ser oportunidades para que crianças se encontrem mais no ambiente quando não fazem parte do padrão, principalmente entre alunes LGBT+, que enfrentam mais violência e a sensação de que a escola e o ensino formal não são lugares a serem ocupados”, opina. 

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Para além de atividades que possam contribuir para o debate sob um ponto de vista de prevenção, professores também devem estar preparados para uma situação que pode ser comum quando a escola conquista a confiança dos alunos para falar sobre o tema: o momento em que o aluno ou aluna procura a alguém para compartilhar que sofreu uma violência. 

O que fazer nesses casos? Amanda destaca que o momento pode ser desafiador, mas que honestidade e empatia são os principais componentes para uma verdadeira acolhida. 

A diretora-executiva da Serenas lembra que a Lei 13.431/2017, de Escuta Protegida, pode ser uma aliada para que professores e gestores entendam melhor o seu papel diante das situações de denúncia, uma vez que estabelece as condições de acolhimento para pessoas sobreviventes de violência dispostas a realizarem denúncias. 

“Esse primeiro acolhimento tem que ser a partir de uma escuta cuidadosa e sem julgamentos. Uma escuta em que a aluna não escute algo como ‘a, mas por que que você não me falou antes? ou ‘a, mas tem certeza que aconteceu?’. Porque são perguntas que trazem mais violência para a aluna. Aqui a professora escuta, agradece a aluna pela confiança, conta os próximos passos para que ela se sinta confortável e segura”, recomenda.

Veridiana também enfatiza a importância de utilizar a temática do dia da mulher para conversar sobre desigualdades de gênero, destacando as diversas formas em que ela ocorre.

“A escola é importante para reforçar que 8 de março não é dia de dar flores para mulheres. É o dia de entender uma sequência de violências e de conversar com os alunos. Tem que ser um dia para refletir com a turma por que as mulheres são muito mais assassinadas pelos seus companheiros, por que elas recebem menos e quais são as outras violências que acometem mulheres que não possuem o sexo biológico, mas são do gênero feminino. Também explicar que mulheres trans são mulheres, e que gênero não é definido pela biologia, e sim por uma construção social”, reforça. 

Como dicas de atividades para abordar o tema em diversas disciplinas, Veridiana destaca o uso de dados que trazem a realidade das mulheres, ou a celebração de histórias de personalidades femininas ignoradas pela história ou pelos estudos literários.

“É algo que a gente luta muito dentro da educação: a violência de gênero é um tema interdisciplinar, que atravessa todas as experiências da comunidade escolar. Você pode usar até na matemática, medindo, por exemplo, qual é o maior percentual de meninas formadas em um curso como engenharia naval e comparar isso com os dados dos meninos, entre outras situações que destaquem desigualdades entre os gêneros”, recomenda.


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ensino fundamental, ensino médio, gênero

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