Corresponsabilidade e participação ativa dos alunos fortalecem o currículo e transformam a escola
No Novo Ensino Médio, ouvir as temáticas dos jovens e criar espaços para que atuem criticamente tira o protagonismo do papel, colocando o currículo em prática e incentiva direitos e deveres na rotina escolar
por Ana Luísa D'Maschio 28 de junho de 2022
As portas da sala da direção da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Clóvis Borges Miguel, em Serra, município da região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo, estão sempre abertas. E não se trata de mera expressão: mesmo quando há reunião, pendura-se um aviso, mas não se tranca a maçaneta. O acesso, livre e organizado, é um dos destaques da gestão, que partilha o gerenciamento com a família e chama os alunos de parceiros. “Parceiros e salvadores da pátria, principalmente durante a pandemia”, brinca a diretora Elaíse Soneghetti, referindo-se à equipe de mídias, formada por alunos interessados em tecnologia, que terminavam de ajustar a conexão para receber a videoconferência com a reportagem do Porvir na manhã da sexta-feira, 24 de junho.
Para contar como o currículo aborda as temáticas da juventude, Elaíse convidou a coordenadora pedagógica Daniela Delpupo, a pedagoga Magda Luiza Totola e os “estudantes-parceiros” Jeniffer Berto, Ian Pereira, Gustavo Monteiro, Lenin Santos e Kaio Alves para o bate-papo com o Porvir. Uma roda de conversa que bem exemplifica o modelo horizontal das decisões tomadas na escola.
“Uma de nossas palavras-chave é articulação. A outra, corresponsabilidade. Ninguém faz nada sozinho e nossos alinhamentos são fruto de diálogos compartilhados”, define Daniela. “Toda ação que acontece na escola nasce do currículo. Acreditamos que a atividade prática é um meio para trabalhar o currículo prescrito, construído no chão da escola. Os caminhos didáticos devem envolver toda a organização”, complementa Elaíse.
Os alunos têm parte fundamental nesse processo e refletem o protagonismo juvenil defendido tanto pelo Novo Ensino Médio quanto pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular). O desafio, no entanto, é manter o documento em prática, com uma escola interessante, aberta e disposta a um relacionamento que os mantenha como protagonistas.
“É importante ver como a escola trabalha com a questão da responsabilidade. Não é só o trabalho em equipe, mas sim saber trabalhar em equipe. Aqui, aprendemos a socializar, a nos prontificar para ajudar com o que sabemos. Extrair esse interesse nos ensina a falar com as pessoas e até a melhorar nosso caráter, algo importante para o futuro fora daqui”, explica a estudante Jennifer.
Centralidade e protagonismo
De acordo com Gabriel Medina, gestor de implementação do Instituto Unibanco, o Novo Ensino Médio reconhece o jovem como sujeito a partir de suas identidades, partindo tanto do protagonismo quanto da escuta desse estudante. “Isso faz com que você acolha as diferentes perspectivas com as quais cada jovem chega à escola, com seus valores, sua cultura. O Novo Ensino Médio pressupõe a ideia de competências e de conhecimentos que todo jovem, independentemente de onde mora, da cor, da classe ou do gênero, precisa alcançar. É preciso perseguir essa ideia de equidade a partir de uma base comum para todos os jovens”, afirma Gabriel, também ex-secretário nacional de Juventude.
Para Anna Penido, diretora do Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação, o protagonismo acontece quando os alunos integram ativamente o processo de ensino-aprendizagem, ao dialogar, questionar e intervir no cotidiano da escola. “Esse estudante se corresponsabiliza pelo que acontece na sua escola, no seu processo formativo, tomando decisões, assumindo também alguns deveres, como liderança das turmas, dos conselhos de classe, dialogando com o conselho de educação do município, nas associações de estudantes. Falamos desse estudante não só como recipiente, mas como ator do processo, seja individual, seja nas decisões tomadas no âmbito político da própria escola”, ressalta Anna, que também integra o conselho editorial do Porvir.
Na escola Clóvis Borges Miguel, seja na rádio instrumental educativa, seja no festival de música, dança e teatro intitulado “CBM no Ar”, que já completa 11 anos, ou ainda nas reuniões dos professores com os representantes de classe, os estudantes se reconhecem nas ações internas e externas. São 12 as disciplinas eletivas e 26 temáticas desenvolvidas e indicadas por eles, que passam por educação ambiental, alimentação saudável, teatro, literatura. “Na parte diversificada do currículo, há um esforço para dialogar e interagir com aquilo que a juventude traz para a escola. São assuntos contemporâneos, atuais”, comenta a pedagoga Magda Luiza. A interação do dia a dia também amplia o processo de escuta informal, conta a diretora Elaíse. “Continuamente, buscamos trazer as temáticas deles e ampliar essa escuta.”
O estudante Lenin Santos, do 3º ano, exemplifica o processo: “Trabalhamos recentemente com temas polêmicos, como linchamento social, cancelamento na internet, racismo epensamento político, que é sempre um assunto delicado. Mas isso nos ajuda a formar nossas opiniões”.
Falando em política, partiu dos estudantes a ideia de montar, no meio do pátio, entre os meses de março e maio, um estande com um computador e um representante da turma, a fim de ajudar os colegas entre 16 e 18 anos a tirar o título eleitoral. Daniela, coordenadora pedagógica, explica que os alunos criaram o plano de trabalho e levaram a proposta para a direção, contemplando toda a organização: escala de trabalho, hora de chegar e sair, além das demandas de divulgação.
Formação para formadores
Outro tema presente no cotidiano da escola, e de toda a rede pública do Espírito Santo, é o debate racial. Por meio do Caderno Gestão Escolar para Equidade Racial, do Instituto Unibanco, os gestores escolares receberam, em maio, formações voltadas à promoção do letramento racial e à necessidade de fortalecimento os marcos legais, como a Lei 10.639/2003, que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira.
“Considero a escola como um lugar social e de formação cidadã. Na escola, todas as especificidades surgem e precisam ser potencializadas para um protagonismo de jovens e adultos. O debate racial é presente e constante”, avalia a gerente de educação do campo, indígena e quilombola, Valquíria Santos Silva. “No entanto, precisamos compreender que lutar contra o racismo precisa ser um projeto de sociedade não só necessário como também urgente”, destaca. “Investir na juventude como parte desse processo é um caminho. Se crianças e jovens são um futuro, precisamos inseri-los cada vez na proposta de uma sociedade sem racismo.”
Valquíria acredita que o contexto da pandemia trouxe uma nova configuração nas relações sociais. Além das questões antirracistas, luta contra a homofobia e outras formas de discriminações, bem como o debate político, a juventude, neste retorno presencial, quer ainda mais ser ouvida. E aprender.
À lista dos temas caros aos jovens, Gabriel Medina adiciona crise climática, aumento da violência urbana, extermínio da juventude negra, falta de oportunidades de trabalho dignas. “São questões postas na sociedade, e não é só um papel da escola. Há grande dificuldade de resposta da escola às expectativas desses jovens”, diz. “Por isso, precisamos de uma escola mais conectada com os desejos dos jovens, mais moderna, mais tecnológica, que incentive a curiosidade científica, mais preocupada com os desafios da vida, fornecendo conhecimentos e competências que permitam o jovem responder esses desafios”, reforça o gestor de implementação do Instituto Unibanco, também autor, ao lado de Maria Clara Wasserman, do “Manual do professor – Jovem protagonista” (disponível para download).
Links do Parceiro
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Conexão juventudes | Filmes mostram diversidade das juventudes brasileiras
Jovem de Futuro | Programa ganha Prêmio Evidência e Troféu IMDS-Mobilidade Social
Futuro profissional
Um quarto da população brasileira é jovem: são, atualmente, 48 milhões de pessoas. Dos quase 14 milhões de desempregados no quarto trimestre de 2020, cerca de 70% eram pessoas na faixa-etária entre 14 e 24 anos, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O mercado de trabalho, cada vez mais competitivo, é outra preocupação dessa juventude, foco do currículo e das eletivas da rede de escolas do Rio Grande do Sul. Para Sonia Lopes dos Santos, superintendente interina e Frederico Cesar Matias Guedes Cardoso, ex-superintendente da Suepro (Superintendência de Educação Profissional do Estado), refletir sobre o mundo de trabalho, nos dias de hoje, vai além de se conseguir um emprego: há um conjunto de relações socioemocionais que interferem diretamente na constituição das relações e opções profissionais.
“Na perspectiva do ensino médio, o mercado de trabalho se interconecta com a juventude e com arranjos capazes de refletir, no Projeto de Vida desses jovens, o papel do trabalho, na tentativa de aumentar as chances de sucesso em suas vidas”, afirmam os especialistas.
Para Sonia e Frederico, às secretarias de educação de todo o país cabe o amplo estudo de matrizes e readequações alinhadas ao potencial pedagógico e econômico das regiões, para que dialoguem com ofertas de eletivas, cursos técnicos e formações alinhadas às necessidades dos jovens. “A secretaria poderia atuar como uma espécie de ‘mantenedora’ de cursos e qualificações que aumentem as chances no projeto profissional dos jovens, sucesso este, que por vezes, impulsiona o sucesso nos outros âmbitos.”
Participação ativa
Com seus temas e urgências, o protagonismo jovem ganha força quando o estudante aplica o conhecimento da escola na vida real, define Anna Penido. “O empoderamento acontece quando o conhecimento deixa de ser apenas um um ativo subjetivo e passa a ser uma uma competência desses estudantes, algo que realmente fortalece sua capacidade de dar conta dos desafios pessoais, sociais, profissionais e culturais que vão enfrentando ao longo de sua existência.”
Para tanto, é preciso que a escola abra, de fato, processos de participação autênticos, efetivos, enfatiza Gabriel Medina. E, nesse cenário, o jovem deve se organizar: mais do que demandar esses espaços abertos, é preciso colaborar para que a escola se transforme. “Ele pode ajudar a empurrar as mudanças que a escola precisa. Algumas escolas públicas conseguem fazer trabalhos incríveis mesmo estando na periferia. Claro, faltam recursos, precisamos investir mais na educação, mas ter gestores escolares, professores e uma comunidade estudantil ativa pode fazer muita diferença para transformar essa escola.”
Os desafios são diários, “tensos e intensos”, como comenta a equipe escolar da Clóvis Borges Miguel. São 975 alunos, divididos entre o turno regular da manhã e o período integral, das 12h20 às 19h20. Nem sempre o sistema apoia o que a escola tem a dizer – por isso, é preciso persistência. “Estamos inseridos em uma comunidade complexa, dentro de uma periferia, e a escola vem dando certo porque investimos no clima organizacional que colabora para a aprendizagem. Isso implica em todos nós (das famílias aos funcionários) cumprindo suas obrigações e deveres”, ressalta Elaíse.
“Quando se fala em protagonismo, pode-se pensar que as coisas aqui são soltas, pode-se perder a noção da organização escolar. Temos desafios diários e constantes, uma equipe perseverante. Uma escola organizada não burocratiza o espaço. Uma casa organizada precisa de normas para funcionar, e com a escola não é diferente. Convivemos bem em grupo, e a comunidade está ciente das obrigações que todos nós temos. Estamos em um ambiente coletivo e não perdemos nunca a referência disso”, finaliza a diretora.