Itinerários Formativos: estudo contínuo e estratégias apoiam o trabalho docente
Nesta primeira reportagem da Série "Formação de professores para o Ensino Médio", especialistas comentam as especificidades do planejamento para os Itinerários Formativos
por Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira 16 de fevereiro de 2023
Ao completar 50 anos de idade, Natalino Soares Marques viu seu nome na lista dos aprovados para ser professor da educação básica da rede pública da Bahia. O ano era 2015. Formado em artes pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pela Universidade de Coimbra (Portugal), Natalino, também artista plástico, tem um histórico acadêmico ligado ao dinamismo das tecnologias, ao pensamento computacional e à aprendizagem criativa. Não foi essa a realidade, porém, que encontrou em sala de aula ao ingressar na profissão. “Tive uma certa dificuldade porque eu vinha exatamente nessa vibração do que é hoje o ensino médio, que trouxe contemporaneidade, atualidade e modernidade para a escola”, afirma.
A legislação, que começou a ser implantada no ano passado e segue, de forma escalonada, até 2024, trouxe, por exemplo, o ensino da arte (e as expressões regionais) como componente curricular obrigatório da educação básica. Também marcou a chegada dos Itinerários Formativos para o aprofundamento em áreas do conhecimento (matemáticas e suas tecnologias, linguagens e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas), além da formação técnica e profissional. Os itinerários são divididos em três partes: Projeto de Vida, Eletivas Orientadas e Trilhas de Aprofundamento, que devem considerar os anseios dos estudantes e o contexto no qual estão inseridos.
“O Novo Ensino Médio trabalha com a perspectiva dos projetos, que eu sempre abordei. Com os itinerários, citando Paulo Freire, a gente sai da percepção da educação bancária, de que só o professor centraliza a informação, e passa a ouvir os desejos dos estudantes, levando em consideração o contexto escolar. Eles escolhem as disciplinas eletivas que querem estudar. Eles estão no centro da aprendizagem”, comenta Natalino, ressaltando que 40% do currículo é composto pela parte flexível, ou seja, os itinerários, que contemplam disciplinas eletivas escolhidas pelo aluno.
Para não confundir Itinerários Formativos com Eletivas Orientadas |
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De acordo Katia Smole, diretora do Instituto Reúna e fundadora do Grupo Mathema, ao planejar a parte da escolha, a rede de ensino não pode achar que um conjunto solto de componentes curriculares vai formar o itinerário. Os Itinerários Formativos são o aprofundamento do conhecimento em uma ou mais áreas, e isso significa que é preciso selecionar o mais relevante da formação geral básica, ou o que vai além da formação, mas que tem a ver com aquela área do conhecimento. “O que pode ajudar nesse processo é pensar nos eixos estruturantes”, sugere Katia. Tais eixos são formados por processos criativos, empreendedorismo, intervenção sociocultural e a investigação científica. Ela exemplifica: “Se vamos trabalhar um Itinerário Formativo sobre Ciências da Natureza e nos aprofundaremos no estudo da energia, vamos trazer física, química, questões mais profundas sobre a questão ambiental. Posso organizar isso de tal forma que o itinerário se articule aos eixos estruturantes: faço investigação científica, depois penso em algo relacionado ao empreendedorismo (não no sentido financeiro, mas para que possa ser levado para mais gente). Essa é uma organização que ajuda a entender que a eletiva não pode ficar sozinha, mas estar articulada ao Itinerário Formativo, com componentes que se aprofundem em uma ou mais áreas do conhecimento.” |
Mudança em processo
Tanto para professores quanto para as redes de ensino, ainda há desafios no que diz respeito à formação para os itinerários, comenta Katia. “Apesar de nós termos, desde meados dos anos 1990, as Diretrizes Nacionais do Ensino Médio falando sobre áreas do conhecimento, ninguém de fato trabalhou com isso. Não temos uma tradição de escola da escolha no Brasil em nenhuma etapa do conhecimento. São poucas as licenciaturas por área de conhecimento, os livros didáticos continuam muito específicos. Isso é muito desafiador para o professor. Precisamos não só da formação, mas de materiais de apoio pedagógico para os aprofundamentos.”
Uma outra crítica bastante recorrente é que os Itinerários Formativos ainda são entendidos como algo descolado da educação básica. “Os itinerários são vivos e as disciplinas eletivas precisam estar articuladas com a formação geral básica. A diferença é que agora poderemos atuar com quem está mais interessado em aprofundar determinados conhecimentos”, explica Katia.
Para tanto, é preciso que as secretarias de educação tenham um sistema de acompanhamento, sugere a especialista. “Como é que se forma o professor? Como se estruturam os itinerários? Como fazer os processos de escolha? Se as secretarias deixarem isso solto, e se não houver planejamento para que professores estudem, vai ser muito difícil superar os desafios. É preciso um esforço coletivo. A tarefa não deve ficar só para os professores.”
Confira, ao final da reportagem, exemplos de redes que estão estruturando seus Itinerários Formativos de maneira criativa e inspiradora.
Primeiras conquistas
“Neste primeiro ano de Novo Ensino Médio, ganhamos conhecimento da estrutura”, comenta Leandro Holanda, diretor da Tríade Educacional e especialista na área. “Os professores começaram a estudar mais, entender as propostas de cada estado. Vimos bastante movimento para a formação de professores, bem como as redes se organizando para criar jornadas de formação. Sabemos que é um caminho longo a ser percorrido: não dá para dizer que em um ano todo mundo vai estar conectado com as propostas, com um conhecimento amplo do currículo, mas é o início de um trabalho”, pontua.
Alguns reflexos já começam a ser percebidos. No caso do professor Natalino, sua experiência com aprendizagem criativa, bem como o mestrado em curso em inovações tecnológicas na educação, somam-se aos saberes e às iniciativas da comunidade escolar do Colégio Estadual do Campo Anna Junqueira Ayres Tourinho, no município baiano de São Francisco do Conde, onde atua. Mesmo recente, as práticas implementadas pelos docentes transformaram a escola em referência de formação para o ensino médio.
“Enquanto a maioria das escolas ainda têm dificuldade na implantação do NEM, somos convidados a falar sobre as nossas experiências, formando educadores e gestores. Os profissionais do colégio são convidados para projetos na Bahia e no Brasil. Somos uma comunidade de aprendizagem”, define Natalino. Inclusive, o colégio oferta residência pedagógica aos alunos de letras e pedagogia da Unilab (Unidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), com duração de um ano e meio.
Um exemplo da metodologia compartilhada é o projeto “Tábua das marés”, disponível neste link. Surgida do contexto real da comunidade litorânea, reúne sugestões sobre competências e habilidades da etapa de ensino, passando por assuntos como protagonismo juvenil, metodologias ativas e competências socioemocionais. “Nós identificamos as necessidades da escola e de formações dos educadores por meio de uma escuta ativa. A partir daí, selecionamos quem pode apoiar nessa construção e implementamos o debate”, explica o professor, que também atua no Instituto Anísio Teixeira como formador.
Ampliando aprendizagens
Brasileiros aprovam as mudanças no ensino médio |
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Uma pesquisa do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e do Sesi (Serviço Social da Indústria), divulgada em 14 de fevereiro, aponta que 70% dos brasileiros aprovam a mudança no ensino médio e suas diretrizes, incluindo a escolha dos Itinerários Formativos e o novo modelo de currículo. Além disso, 83% dos entrevistados acreditam que as escolas brasileiras irão formar jovens mais preparados para o mercado de trabalho. Contudo, 55% das 2.007 pessoas ouvidas pelo levantamento dizem que estão pouco ou nada informadas sobre a implementação da proposta. “Temos um ensino de baixa qualidade, com altos índices de evasão e distorção idade-série, que não engaja nem dialoga com os anseios da juventude e os desafios do século 21. Mesmo pouco informada sobre a reforma do ensino médio, a sociedade concorda que as mudanças são necessárias”, afirmou à imprensa o diretor-geral do Senai e diretor-superintendente do Sesi, Rafael Lucchesi, na divulgação do estudo. |
O documento curricular do Novo Ensino Médio também contempla as chamadas Trilhas de Aprofundamento, que focam na ampliação de aprendizagens exploradas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), como robótica ou programação.
Um ponto de atenção trazido neste primeiro ano é que a escola não consegue oferecer um cardápio dessas trilhas: faltam carga horária e professores. Neste ponto, há quem diga que a mudança nas regras do ensino médio acaba ampliando o abismo entre as escolas públicas e privadas.
Para o professor Natalino, a problemática também esbarra na formação adequada. “Não adianta você pegar um professor tradicional de matemática e colocá-lo para ensinar para além dos números sem oferecer uma formação específica. A nossa formação acadêmica ainda é tradicional. Tive a sorte de ter uma formação diversificada, com processos criativos, mas isso ainda não atinge a maioria”, comenta.
Leandro Holanda reforça as limitações em termos de estrutura e todo o desenho que ainda está sendo feito para implementar a reforma, algo ainda processual. “Estamos trazendo uma opção para que os estudantes de escolas públicas possam ter escolhas de componentes diversificados. Para isso, é preciso, no meu ponto de vista, entender a estrutura da escola e o que pode ser criado a partir dali”, comenta. O especialista reforça que é preciso ter espaço para a escuta dos docentes, como fazem o Reúna e o Instituto iungo em suas formações. “Onde está o espaço da autoria docente dentro do Novo Ensino Médio? Precisamos pensar nisso para tornar o processo mais engajador.”
Neste 2023, em que todos os estados começam a implementar a parte flexível do currículo, é preciso o aprofundamento nas competências do trabalho por área, por eixos de trabalho. “É necessário apoiar professores, gestores, diretores e coordenadores para construir uma formação que ano a ano vá permitindo entender mais e com mais profundidade o modelo”, reforça Katia Smole.
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A voz dos estudantes no ensino médio
Há componentes curriculares dos Itinerários Formativos que não fazem parte da formação original dos professores e, muitas vezes, são baseados em construções dos estudantes. Nesse sentido, ressalta Leandro, é mais importante entender o processo pedagógico de mediação dessas construções do que necessariamente dominar o conteúdo.
“Como docente, como eu apoio o que o estudante está construindo? Costumo pensar nesses componentes como se o processo fosse uma orientação de projeto: os alunos vão escolher alguns temas para trabalhar e não necessariamente o professor tem que ser especialista, mas ele precisa saber como conduzir o processo. A mediação para que o aluno construa algo é realmente importante”.
Quem concorda com a afirmação é o professor de geografia da Escola Estadual Ruy Araújo, em Manaus (Amazonas), Dilson Nascimento.
Sua eletiva curricular, projetos integradores, já é um convite para trabalhar de forma interdisciplinar e a partir da vivência dos estudantes. “Eles têm muita curiosidade em saber como vai ser sua vivência e como vão sair do ensino médio. Chegam com muita vontade de ter uma saída diferente das gerações anteriores, mais preparados”, explica.
Dois de seus projetos aplicados em 2022 trazem a dimensão do protagonismo juvenil de suas quatro turmas do ensino médio. Um deles, ligado ao papel educacional da robótica na resolução de problemas, contou com a criação de um robô para fazer a recepção das pessoas que chegavam à escola em busca de informações, para um atendimento inicial.
A outra proposta, ligada à mediação de conflitos, foi uma peça de teatro. “Percebi que estavam ansiosos, que qualquer coisinha os levava a uma discussão mais acalorada. Por trás disso, cada um queria mostrar o seu posicionamento, o seu ponto de vista. Criamos uma peça sobre uma modelo que teve problema no salto do sapato e o caso vai parar em um júri. A escolha dos personagens era aleatória. Meu objetivo era que eles entendessem que pessoas diferentes reagem a situações de maneiras diferentes, e nós temos de estar preparados porque nossa sociedade é assim”, conta Dilson.
“Hoje, o professor deve ser mais mediador, mais curador de conteúdos, mais orientador dos estudantes que são protagonistas. Isso não diminui o trabalho do professor, pelo contrário. Há quem critique o modelo, mas temos a convicção de que precisamos trabalhar de uma forma diferenciada, permitindo a formação integral do estudante”, finaliza o educador.
Formação para itinerários: 5 destaques nacionais |
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A pedido do Porvir, Katia Smole destaca experiências Brasil afora que podem servir como inspiração 1 – A rede de Sergipe desenvolveu um processo para pensar as adaptações dos Itinerários Formativos ao contexto de ensino médio de tempo integral, articuladas com o tempo parcial, para que cada modelo de escola não deixe de ter aprofundamentos alinhados. A construção foi feita com professores e estudantes. 2 – Mato Grosso do Sul prepara escolas pequenas e municípios distantes com um estudo bem aprofundado, discutindo a carga horária de uma maneira interessante. 3 – São Paulo criou MAPPAs (Materiais de Apoio ao Planejamento e Práticas dos Aprofundamentos), ampliando a carga horária, articulando a questão do transporte, por exemplo. 4 – Pernambuco construiu itinerários envolvendo comunidades indígenas. 5 – Itinerários Amazônicos, que estão sendo criados pelo Reúna em parceria com o Instituto iungo, envolvem especialistas para discutir além de questões ambientais, o uso da ciência, da tecnologia e dos conhecimentos locais para formar o jovem da Amazônia a partir da sua realidade. |