Minissérie revela como as crianças veem e explicam o mundo
Por meio da escuta sensível, projeto multimídia "O mundo que sei" dá voz a meninos e meninas de 6 a 12 anos, com debates em podcast e documentário online com acesso gratuito
por Ana Luísa D'Maschio 22 de janeiro de 2024
Imagine a seguinte cena: você está em uma sala, com um sofá e um aparelho de televisão dos anos 1970. Ao ligá-lo, escuta a voz de Solo, uma inteligência alienígena que fala português, viajou 50 mil anos luz para conhecer a Terra e quer contar com a sua ajuda para descobrir o que acontece no nosso planeta. O que você responderia? O cenário faz parte da minissérie “O mundo que sei”, que escutou respostas, perguntas e reflexões de 23 crianças, de 6 a 12 anos, de diferentes classes econômicas e de seis territórios de São Paulo.
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Ao todo, o projeto reúne um documentário online com seis episódios gratuitos e uma temporada de podcast. E a ficção fica apenas com a personagem Solo. Por meio de brincadeiras e dinâmicas, a turma debate assuntos sensíveis, como saúde mental, diversidade e meio ambiente. De maneira muito espontânea, meninos e meninas contam como as questões do mundo contemporâneo afetam diretamente a infância.
Escuta sensível em “O mundo que sei”
Antes de ganhar as telas, os conteúdos do projeto já estavam sendo divulgados pelo Instagram. Tudo é baseado em uma pesquisa da antropóloga e pedagoga Adriana Friedmann, criadora do Mapa da Infância Brasileira e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento.
Durante dois meses, ela e sua equipe ouviram 170 crianças de diferentes contextos, com visitas aos seguintes endereços: Comunidade Indígena Guarani Tekoa Pyau (Pico do Jaraguá), EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Amorim Lima e espaço ekoa (Zona Oeste), Wish School Tatuapé (Zona Leste), Comunidade Horizonte Azul e o Lar das Crianças (Zona Sul). Durante o contato com esses meninos e meninas, foi abordada a metodologia da escuta sensível, que respeita o espaço e o lugar de fala de cada criança.
“Venho aplicando o processo de escuta sensível há bastante tempo. Ele foi criado a partir de muitos estudos ligados às ciências sociais e à antropologia da infância, a partir de pensadores como Manuel Sarmento, William Corsário e Clarice Cohn, entre outros. Nós compreendemos que as crianças são protagonistas e autoras de suas vidas, e o tempo todo estão se expressando, se manifestando. Só que os adultos, sejam educadores ou gestores, acabam tendo uma postura de pensar por elas, de tomar decisões sem considerar o que estão sentindo e vivendo”, explica Adriana.
Muito mais do que um conceito, pontua a antropóloga, a escuta sensível é uma postura ética e metodológica. “Trabalho há muitos anos com formação de pesquisadores antropólogos na infância justamente orientando qual é a atitude de quem escuta. Sejam educadores, gestores, pais ou mães, é preciso respeitar a diversidade, o jeito de se expressar de cada criança: não querer avaliar ou corrigir, mas sim acolher essa criança em sua singularidade.”
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Da pesquisa original, 23 crianças aparecem no documentário, produzido pela Social Docs, Bebok e Bergamota, com direção de Victor Ribeiro, roteiro de Gisele Mirabai e patrocinado pela escola espaço ekoa. “A pesquisa [conduzida por Adriana] foi o ponto de partida de ‘O mundo que sei’. Construímos todo nosso conteúdo com base no que as crianças nos disseram. Assim, selecionamos os temas que seriam abordados, descobrimos caminhos de linguagem e maneiras de abordar diferentes questões”, comenta Giuliana Bergamo, diretora de conteúdo do projeto.
Giuliana também apresenta o podcast da iniciativa, baseado em trechos de conversas da turma, que são o ponto de partida para o debate com psicanalistas e pedagogos. “As crianças que participaram do projeto falam não apenas sobre elas, mas sobre nós, adultos. No podcast, abrimos esse diálogo para pensar o nosso presente e o futuro do planeta e da humanidade”, diz.
Aprendizados e recomendações
Também idealizador do projeto, Fabio Guedes, sócio da Bebok, afirma que é preciso incentivar conversas mais horizontais entre as crianças e os adultos. “Queremos sensibilizar e mobilizar as pessoas interessadas no desenvolvimento das crianças e em temas sobre infância e futuro para a importância da escuta e da participação infantil nos diálogos cotidianos.”
Com a escuta ativa, vão surgindo outras questões mais sensíveis, como a saudade dos pais ausentes, a presença dos avós e o quanto sentem falta de tempo livre para brincar. “As crianças trazem segredos e é muito bonito quando um adulto ganha essa confiança. Quando fazemos um processo desses, a criança conta o que ela quer e, às vezes, pedem socorro de uma certa forma quando percebem que têm alguém aberto para escutá-las”, ressalta Adriana Friedmann.
Para a antropóloga, o projeto “O mundo que sei” deixa recados importantes. “Indiretamente, elas nos dizem: ‘Olha só o mundo que vocês, adultos, estão deixando para nós”. Elas estão preocupadas com violência, falta de segurança, com o lixo e com o clima. O ambiente e o entorno onde vivem têm influência muito marcante em suas inquietações.”
Algumas reflexões das crianças
- “Muitos ricos falam que é uma perda de tempo ajudar os outros. Eu não acho isso. Se a gente ajuda uma pessoa, essa coisa boa acaba voltando pra gente.” – Luis Fernando da Silva, 12 anos.
- “Família é uma pessoa que te criou. Quer dizer: não é uma pessoa, são várias pessoas, ou poucas pessoas, e eles estiveram lá quando você nasceu.” – Helena Marques, 9 anos.
- “Eu tiraria as armas do mundo, gostaria que todas as pessoas fossem iguais. Colocaria a aldeia e a cidade junto, ninguém brigaria pela terra.” – Kerrison Fernandes, 9 anos.
- “A escola mostra o que você precisa mudar para conseguir fazer as coisas, mas por que a escola não pode mudar para os alunos?” – Julia Benoit, 13 anos.
- “O meu pai me ensina um pouquinho de matemática, minha mãe me ensina sobre as plantas e a nossa Terra. Eu gosto de saber sobre o mundo porque me deixa feliz e me deixa triste também, porque tem muita má e eu meio que fico meio triste e meio bravo por isso.” – Jun Nishihata Arias, 8 anos.
- “Praticamente todo menino que eu conheço no meu círculo social é meio preconceituoso nessa questão [LGBTQIAP+]. “Eu acho que isso acontece porque eles têm a masculinidade muito frágil e se ofendem por qualquer coisa que envolve esse tipo de coisa.” – Hannah dos Santos, 11 anos.