“A geração ansiosa”: livro culpa smartphones e redes sociais pela crise de saúde mental. Seriam as únicas razões?
O livro do psicólogo Jonathan Haidt entrou para a lista dos mais vendidos e aborda uma das grandes preocupações dos tempos modernos: o papel das redes sociais e do smartphone na vida de crianças e adolescentes
por Ruam Oliveira 13 de novembro de 2024
Poucos são os temas atualmente capazes de unir pessoas de espectros políticos e identitários distintos. A presença do celular na sala de aula é um deles.
Recentemente, a deputada Marina Helou (Rede) apresentou o projeto de lei 293/2024, que proíbe o uso de celulares “e outros dispositivos eletrônicos pelos alunos nas unidades escolares da rede pública e privada de ensino” de São Paulo. O projeto teve como coautores membros do PT, PL e Republicanos, cada um em um partido distinto.
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A Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) aprovou o projeto em votação simbólica no dia 12 de novembro, que agora espera sanção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) para entrar em vigor já no próximo ano.
Em alguns estados do Brasil e em diferentes lugares do mundo, o dispositivo já teve sua proibição decretada, baseada em diferentes motivos, como o fato de influenciar a atenção dos alunos quando em sala de aula, e também apresentar outros impactos negativos fora do ambiente escolar.
Recente levantamento divulgado pela Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados mostra que, ao menos neste assunto, a população está de acordo com o banimento: 86% dos brasileiros são a favor de algum tipo de restrição ao uso de celular dentro das escolas. Pouco mais da metade dos entrevistados (54%) são favoráveis à proibição total dos aparelhos e 32% acreditam que o uso do celular deva ser permitido apenas em atividades didáticas e pedagógicas, mediante autorização prévia dos professores.
No dia 31 de outubro, a Comissão de Educação aprovou o projeto nacional que proíbe celulares tanto dentro das salas de aula, quanto nos recreios e intervalos de todos os alunos em todas as etapas de ensino. O projeto, que segue para debate na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), prevê o uso de dispositivos apenas em atividades pedagógicas.
Há uma parcela de professores entusiasmados com o uso da tecnologia em aula. Contudo, nem todos conseguem transformar essa vontade em ações de fato pedagógicas.
O guia Edutec de autoavaliação de competências digitais, desenvolvido pelo Cieb (Centro de Inovação para a Educação Brasileira), ouviu mais de 160 mil professores. Em uma escala de 1 a 5, a maioria se incluiu no nível 2 de competências digitais nas áreas pedagógicas, de cidadania digital e desenvolvimento profissional.
Com o assunto em efervescência, são muitos os educadores que estão ligados no tema. Seja porque diretamente a proibição – ou não – afeta suas rotinas, ou porque eles próprios sentem que o dispositivo está interferindo na aprendizagem dos estudantes.
Nas comunidades de professores do Porvir no WhatsApp, muitos foram os debates em torno do assunto. Há os que defendem o banimento dos aparelhos, há também os que acreditam que é possível ensinar usando esses dispositivos.
Esta é, de fato, uma preocupação dos tempos atuais. Hoje em dia, não é tão incomum que uma criança em seus 7 ou 8 anos já possua um smartphone e, ainda mais, um perfil em alguma rede social.
A pesquisa Tic Kids Online deste ano, que ouviu 2.424 crianças e adolescentes de 9 a 17 anos, mostrou que 63% deles possuem perfil no Instagram e 45% no TikTok.
Todas essas questões contemporâneas e que esbarram no cotidiano da escola fizeram do livro “A geração ansiosa – como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais” (Companhia das Letras, 440 páginas), do psicólogo norte-americano Jonathan Haidt, um sucesso estrondoso.
As pessoas querem respostas para o caos que pode se instaurar quando o celular está nas mãos de crianças e adolescentes. Quando o tópico aparece na escola, as opiniões ficam ainda mais acirradas. O sucesso do livro caminha na esteira dessa necessidade de respostas. Qual professor, com um problema diante de si, não procura logo uma maneira de resolvê-lo?
O texto de Haidt expande o universo escolar e analisa como os dispositivos e as redes sociais impactam a saúde mental da geração Z – pessoas que nasceram entre 1995 e 2012. Para ele, em linhas gerais, é o smartphone o culpado pelo aumento de crianças ansiosas e depressivas no mundo.
O livro pode ser dividido em duas partes: a primeira que analisa cenários e traz algumas pistas do papel dos smartphones na vida de crianças e adolescentes; a segunda, com sugestões pensadas pelo psicólogo para lidar com a questão.
Para introduzir o tema, Haidt faz uma analogia digna de ficção científica: crianças estão sendo recrutadas para viver em Marte, numa proposta de colonização. Essa vivência vai afetar drasticamente os corpos delas e é missão dos pais decidir se permitem que isso ocorra ou não.
Espelhando a imagem, ele quer dizer que as grandes plataformas de mídia estão recrutando as crianças para experiências que podem ser prejudiciais e poucos são os responsáveis que estão atentos a isso.
Não é espantoso que o livro tenha alcançado lugares muito altos – entre eles o posto número 1 entre os mais vendidos do The New York Times, prestigioso jornal norte-americano. No Brasil, os primeiros 25 mil exemplares foram vendidos rapidamente e a editora já preparou mais duas reimpressões de 15 e 10 mil.
A níveis comparativos, a tiragem média de livros no Brasil é de aproximadamente 3 mil exemplares, o que aponta o fenômeno de público de “A Geração Ansiosa”.
Celular como único grande vilão?
Tudo o que Haidt escreve, o faz com muita convicção. Desde o capítulo um, o professor da Universidade de Nova York apresenta uma tese e segue firme até a última página: o responsável pelo desequilíbrio emocional de crianças e adolescentes é o celular.
Por mais interessantes que sejam suas ideias e também que elas sejam válidas, o autor estica a corda ao reduzir a um item todas as dificuldades emocionais vivenciadas por crianças e adolescentes nos dias de hoje. Ele até mesmo cita a pandemia de Covid-19, vivida pelo mundo inteiro em 2020-2021, e apesar de apresentar um gráfico que mostra que a saúde mental de adolescentes teve uma piora a partir daquele ano, considera que o fenômeno apenas acelerou algo já em curso.
Alguns autores, colegas de Haidt inclusive, refutam a maneira como ele expressa suas ideias.
Em entrevista à newsletter Platformer, Andrew Przybylski, professor de psicologia na Universidade de Oxford, na Inglaterra, disse: “Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. No momento, eu diria que ele não tem isso”, em referência ao trabalho de Haidt.
O jornalista Blake Montgomery, em uma crítica publicada no jornal britânico The Guardian, cita outro professor de psicologia, que também refuta as ideias do autor de “A Geração Ansiosa”: “O professor Christopher Ferguson disse que o livro de Haidt estava fomentando o pânico moral em relação às mídias sociais, uma reminiscência do debate sobre videogames e violência no mundo real”.
Ferguson apontou que “no geral, como aconteceu com mídias anteriores, como videogames, as preocupações com o tempo de tela e a saúde mental não são baseadas em dados confiáveis.”
A principal crítica entre aqueles que não aderiram ao discurso de Haidt é que os dados apresentados são frágeis e, por vezes, anedóticos.
O quanto tudo isso é procupante?
Se a intenção é chocar e criar certo alarme, Haidt consegue. Existem outras passagens que apresentam relatos de pais desesperados, pois o filho ameaçou acabar com a própria vida caso tirassem seu celular.
Há muitas passagens no livro que são preocupantes. Um outro exemplo é a história de Isabel Hogben, no estado de Rhode Island (EUA), que em um artigo online escreveu que viu pronografia pela primeira vez aos 10 anos. Ela narra que sua mãe era muito obcecada, sendo vigilante e preocupada, “beirando o exagero”, com relação a tudo o que ela comia. Contudo, a deixava livre para navegar por quaisquer sites que desejasse, o que a levou a acessar um site de conteúdo pornográfico sem que ninguém a impedisse.
Com esse exemplo, o psicólogo tenta explicar que as crianças vêm sendo deixadas muito livres no ambiente virtual. Para ele, há um excesso de segurança no mundo físico – em que meninos e meninas mal podem andar ou brincar livremente – e um certo desleixo quando se trata de segurança online.
Jonathan Haidt escreve: “O texto de (Isabel) Hogben ilustra de maneira sucinta o princípio de que estamos superprotegendo nossos filhos no mundo real e não os estamos protegendo o bastante na internet. Se realmente queremos mantê-los seguros, é preciso adiar sua entrada no mundo virtual e deixá-los brincar no mundo real.”
Haidt é irredutível em seu pensamento. Em entrevista ao site Today.com, ele afirmou que os celulares são bloqueadores de experiências, porque uma vez que as crianças ganham um dispositivo como esse, ele vai sugar todo momento em que não esteja programada uma outra atividade. “É basicamente a perda da infância na vida real.”
Aos críticos de sua teoria, ele pede uma outra justificativa, então. Se não são os smartphones, o que poderia ser?
O livro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, tem mais de 400 páginas – aproximadamente 100 delas apenas com referências e links citados ao longo do texto, que é escrito em uma linguagem fácil e acessível.
A narrativa de Haidt passa por reflexões que envolvem as grandes empresas donas das redes sociais – como a Meta, detentora do Instagram, Facebook e WhatsApp – e suas táticas envolvendo a psicologia para segurar usuários por mais tempo nas plataformas. E também traz um olhar para como os dispositivos eletrônicos alteraram a maneira como as crianças crescem, brincam e se desenvolvem.
Infância (des)conectada
O psicólogo argumenta que os smartphones mudaram drasticamente as infâncias e, com relação a isso, não há dúvidas. A vida adulta também mudou e o texto também aponta, nas sugestões, que os pais devem prestar atenção no próprio uso desses dispositivos, principalmente na frente das crianças. Muitas vezes os viciados são eles.
No que concerne à escola, há um capítulo específico dedicado a isso, com mais casos e dados sobre a vida escolar e como os smartphones estão sendo removidos dela.
Para lidar com a questão, Haidt faz quatro sugestões macro:
- Nada de smartphones antes do nono ano;
- Nada de redes sociais antes dos dezessete;
- Nada de celular na escola;
- Muito mais brincar não supervisionado e independência na infância.
A parte final do livro explora detalhadamente como essas sugestões podem ser aplicadas.
O autor entende que essa é uma questão complexa, que não se esgota facilmente. Por isso, mantém um compêndio online com atualizações sobre suas pesquisas e onde também inclui correções de trechos do livro. Você pode acessar esse conteúdo, em inglês, aqui.
Por não ser de fácil resolução, o tema ainda permanecerá em ampla discussão. As reflexões propostas por Haidt podem servir como um estopim para iniciar algo, em um processo de remodelação da relação de crianças, adolescentes e adultos com a tecnologia.
Um olhar atento para a maneira como esses dispositivos entram na vida das crianças é fundamental, e em se tratando da escola, a educação midiática exerce um papel central nessa nova forma de lidar com celulares. Um estudo recente da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) apontou que 25% dos adolescentes brasileiros estão viciados em acessar a internet por meio de diversos dispositivos.
Ainda que muitas instituições optem pelo banimento dos aparelhos, eles permanecerão com as crianças em outras esferas da vida e é preciso educá-las para reconhecer perigos, potencialidades e possibilidades no mundo online.
De todo modo, há um valor importante na publicação de “A geração ansiosa – como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais”, que é forçar um debate que demorou para acontecer, mas que é inadiável.