O que são animes e qual seu potencial pedagógico? - PORVIR
Cena do anime "Cells at work!"/Divulgação

Inovações em Educação

O que são animes e qual seu potencial pedagógico?

Os animes (animações japonesas) ganham espaço na sala de aula como ferramenta de ensino e engajamento dos estudantes

por Ryan Nunes ilustração relógio 23 de abril de 2025

“Anime ou animê”, abreviação para animação, é o nome dado a desenhos produzidos no Japão, sejam feitos à mão ou por computação gráfica. Da comédia à ficção científica, as histórias são classificadas por gêneros e idades (shounen, para meninos de 12 a 18 anos, seinen, para o público entre 18 e 40 anos, shoujo, para meninas, entre outros) e contam com características peculiares.

➡️Leia também: Animes na educação: 11 animações japonesas para usar em sala de aula

Os personagens são cheios de brilho e cores, com olhos gigantes e expressões exageradas. As narrativas são repletas de onomatopéias (figura de linguagem que busca reproduzir sons e ruídos do mundo real). Assim como as tradicionais histórias em quadrinhos, os animes são boas ferramentas para apoiar planos de aula e debates na escola.

Mesmo que você ainda não seja iniciado em animes, pode ser que recentemente tenha se deparado com imagens de amigos e celebridades com traços característicos desse gênero. Em meados de abril, as redes sociais foram tomadas por imagens criadas via ChatGPT, modificadas no estilo anime do Studio Ghibli . Reconhecido mundialmente pela animação feita à mão com uma estética única, o estúdio japonês já produziu 24 longas de animação, entre eles os premiados animes “A Viagem de Chihiro” (2001) e “Meu Amigo Totoro” (1988).

O “estilo Ghibli” se destaca pela animação feita à mão, além do uso expressivo de cores e cenários ricos em detalhes. Destaca-se, também, pelas narrativas que unem folclore japonês e temas universais como natureza, identidade e resiliência.

Trailer oficial de “Meu amigo Totoro”, do Studio Ghlibi, de 1988


A OpenAi, desenvolvedora do ChatGPT, bloqueou os pedidos que tentavam replicar o estilo de artistas vivos. O assunto ganhou a imprensa internacional, pois a tentativa de replicar o “estilo Ghibli” vai contra a filosofia de seu criador. Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli e um dos nomes mais respeitados da animação mundial, hoje com 84 anos, sempre valorizou o desenho artesanal.

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Tornar o processo criativo mecânico, segundo ele, ameaça a essência da expressão artística que nasce do esforço humano, da emoção e da vivência. Como não poderia ser diferente, milhões de imagens replicadas sem autorização – a partir de fotos dos usuários ou salvas da internet – levantaram um importante debate sobre os limites éticos da aplicação de IA (Inteligência Artificial). Este já é um bom argumento para levantar a conversa com seus alunos.

Mais ideias para a sala de aula

Os roteiros dos animes trazem múltiplos pontos de contato com a sala de aula. Com histórias que podem tratar de assuntos da escola, desde a química e a física, como emDr. Stone” (sem tradução para português), até a biologia, destaque de “Cells at Work” (Células em ação, em tradução aproximada), por exemplo, as histórias dos animes também permitem atividades de interpretação de texto e análise de personagens, empatia e pensamento crítico.

Esta é uma das estratégias pedagógicas do professor Marcos Vitsil. Ele usa animes em suas aulas de ciências, biologia e química no Colégio Freinet, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ).

Sua conexão com esse universo começou ainda na infância, quando morava no Morro São João, comunidade na Zona Norte da capital fluminense. Devido à violência no bairro, sua mãe não o deixava sair de casa para brincar. Isso fez com que descobrisse animes pela TV, como Pokemón, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco e Digimon, dos quais não se esquece.

“Os animes se tornaram minha válvula de escape em um ambiente difícil”, comenta o educador formado pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), atualmente doutorando em ensino de ciências na Fiocruz, no Rio de Janeiro. Mais tarde, ele descobriu que essa paixão também teria influência em sua vida profissional.

Marcos sempre gostou de atividades ligadas a desenhos e música, tanto em sua época escolar quanto em sua formação universitária. Decidiu levar os animes para seu planejamento pedagógico em 2018: antes da aplicação de uma prova e com o objetivo de divertir os alunos, o professor entrou na sala caracterizado como um cosplay (prática em que as pessoas se fantasiam de personagens). 

A inspiração veio do anime “Naruto”, que narra a trajetória de Naruto Uzumaki, um jovem ninja órfão determinado a se tornar Hokage (o líder da Vila da Folha) para conquistar reconhecimento e respeito. Para entrar no clima, Marcos colocou a música tema da Akatsuki, organização vilã da série, e vestiu a icônica capa do grupo, criando um momento de descontração e tensão ao mesmo tempo.

Seus estudantes adoraram a ideia e registraram a entrada “triunfal” em vídeo. O conteúdo fez sucesso no TikTok, com mais de 200 mil curtidas. Ali, Marcos também entendeu o alcance dos animes como estratégia pedagógica.

“Agora, tudo mudou. Quando comecei a trazer animes pra sala de aula, percebi que criei um elo muito forte com os alunos. Eles pegam meu WhatsApp e mandam sugestão: ‘Professor, use o anime Solo Leveling na próxima aula!”, conta Marcos. Em tradução livre, Solo Leveling significa algo como “A ascensão de um só”. O termo faz referência ao protagonista que evolui suas habilidades sozinho, sem depender de um grupo.

O professor destaca que o uso de animes em sala de aula funcionou como uma porta de entrada para o interesse dos alunos pelo conteúdo. “Teve aula que parecia de educação física, de tanta empolgação. E foi aí que eu percebi: consegui construir uma conexão real com eles”, conta.

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Estratégia promissora

Os primeiros animes chegaram ao Brasil entre as décadas de 1960 e 1970, com transmissão pela extinta TV Tupi, com obras como “A princesa e o cavaleiro” (1967) e “Speed Racer” (1960).

Temporadas de Speed Racer estão disponíveis no YouTube

Entretanto, o primeiro “boom” ocorreu entre os anos 1990 e 2000, com desenhos que marcaram diferentes gerações. ”Cavaleiros do Zodíaco”, de 1985, ”Yu-gi-oh” (Rei dos Jogos), de 1966, ”Naruto”, de 1997, ”Dragon Ball”, de 1984 estão entre eles.

Essas produções conquistaram espaço na programação da TV aberta, despertando o interesse de crianças e adolescentes pela cultura japonesa. “Hoje em dia, a galera otaku (termo usado para se referir a um fã de anime, mangá ou pela cultura japonesa em geral) talvez represente a maioria das turmas. Nos anos 1990, a gente era minoria, era chamado de estranho”, conta o professor Marcos. 

Para os professores que se interessam no uso dos animes como ferramenta pedagógica, uma recomendação é conversar com os alunos, para entender o que estão assistindo e quais são suas preferências.

De acordo com a pesquisa ”Animes como ferramentas didáticas”, tese defendida por Mateus Souza Rabello em sua licenciatura em Cinema e Audiovisual pela UFF (Universidade Federal Fluminense), o uso de animações para o ensino é uma estratégia promissora, desde que seja aplicada de forma cuidadosa e planejada.

“À medida que avançamos em um mundo cada vez mais digital, é crucial explorar e adaptar as ferramentas disponíveis para promover uma educação mais envolvente e eficaz. Os animes desempenham um papel relevante nesse contexto, oferecendo novas possibilidades e ampliando as fronteiras do ensino tradicional”, comenta.

Não é preciso ser um grande entendedor de animes para utilizá-los em sala de aula. O professor Marcos reforça que o mais importante é compreender o enredo e o contexto da obra. Para isso, ele sugere que educadores interessados no tema escolham um anime com potencial pedagógico e assistam, ao menos, um episódio por dia no tempo livre.

Potencial pedagógico

Há também a possibilidade de usar apenas trechos específicos que ajudem a exemplificar um conceito, seja de física, biologia, história ou outra disciplina, como costuma fazer o professor de física Clementino Neto.

Clementino é outro entusiasta dos animes. No Instagram e no TikTok, o educador formado em engenharia mecânica faz análises sobre conceitos da física usando exemplos presentes neste universo, descrevendo conceitos reais que aparecem nessas animações para explicar cenas específicas, esclarecer dúvidas e destacar um aspecto marcante nos animes: a relação entre causa e efeito.

Segundo dados da Parrot Analytics (empresa de análise de dados e inteligência de mercado focada na indústria do entretenimento), a demanda global por conteúdo de anime cresceu 118% nos últimos dois anos, tornando-o um dos gêneros de conteúdo de crescimento mais rápido por essa métrica durante a pandemia. Impulsionado por streamings, como Netflix e Crunchyroll, o Brasil se tornou o terceiro maior mercado de animes fora do Japão e da China, atrás apenas de Estados Unidos e Índia.

Entretanto, os animes não são unanimidade entre os estudantes. “Não dá para utilizá-los de forma ampla, total e restrita, porque nem todos gostam. Também é necessário buscar outros contextos que alcancem diferentes públicos”, comenta Clementino Neto.

Para entender as preferências dos estudantes, sempre no primeiro dia de aula o professor Marcos pede que os alunos anotem seus hobbies e programas favoritos, sejam animes, séries ou esportes. Com base nessa lista de interesses, ele adapta suas aulas aulas para torná-las mais envolventes. 

Além disso, ele acompanha os animes em alta, como “Kimetsu no Yaiba” (algo como “Lâmina de destruição de demônios”)” e “Jujutsu Kaisen” (Batalha de feiticeiros, em tradução aproximada). Nota da redação: esses animes tem como foco as lutas e apresentam cenas de violências, por isso, o uso pedagógico deles deve ser muito bem analisado e não são necessariamente uma recomendação. 

Trailer de “Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba Castelo Infinito”, que chegou ao cinema

Marcos também observa os assuntos que os estudantes costumam comentar no dia a dia, usando essas conversas como inspiração para criar conteúdos alinhados com o que estão assistindo. 

“O uso de animações no ensino requer um planejamento cuidadoso e uma abordagem pedagógica adequada. Elas devem ser utilizadas como um complemento ao currículo, em conjunto com outras estratégias de ensino, e não como um substituto completo. Além disso, é necessário considerar a idade e o contexto dos alunos ao selecionar animações apropriadas”, aponta a pesquisa de Mateus Souza Rabello.

Mangás e light novels

Grande parte dos animes são originalmente baseados em mangás, que são as histórias em quadrinhos japonesas, ou em ranobes ou light novels (termo mantido em inglês mesmo nas novelas brasileiras, algo como novelas/romances leves). Elas se assemelham a um livro tradicional, mas que incluem ilustrações semelhantes a dos mangás. 

Ambos os formatos compartilham características visuais e de narrativas vistas nas obras audiovisuais. É importante reforçar que os mangás possuem características que os diferenciam das demais revistas em quadrinhos, como a forma de leitura, que é tradicionalmente feita da direita para a esquerda, com o começo da leitura sendo no canto superior direito. 

Além dos animes, o professor Marcos também vê nos mangás e nas light novels uma forma de levar os alunos à literatura. “Geralmente, são entregues a estudantes de 12 ou 13 anos clássicos cuja linguagem não entendem. Nessa idade, muitos ainda não têm a maturidade necessária para compreender grandes autores, como Machado de Assis, e a leitura se torna chata, pois a primeira impressão não é adequada para o momento”, pontua.

Cena de “Dr. Stone”

Marcos defende o uso de leituras mais acessíveis em um primeiro momento. “Eles vão se interessar muito mais e isso pode ajudar a adquirir o hábito da leitura, o que, com o tempo e mais maturidade, facilitará a entrada no mundo dos clássicos”.

Tradicional ou lúdico?

Muito se fala em inovar na hora de ensinar. Para Clementino, o problema não está em ensinar de forma tradicional, mas sim em fazer isso de maneira eficiente. “A educação, de uma forma geral, é uma área mais conservadora. E, por vezes, alguns professores não entendem que certos formalismos podem ser deixados de lado em prol da didática”, afirma.

A formação dos professores deveria permitir que eles transcendam o livro didático, explorando caminhos alternativos para tornar o ensino mais envolvente, reforça Clementino. Seguir o livro à risca pode funcionar para alguns, mas é improvável que seja eficaz para todos. O ponto central dessa discussão é a comunicação.

Uma comunicação eficaz em sala de aula envolve adaptar a linguagem, ajustar o comportamento docente, criar contextos imersivos e organizar o conteúdo de forma estruturada e envolvente para os estudantes, destaca o professor.

Nem sempre os alunos chegam com o conhecimento prévio esperado, e, por isso, retomar conceitos já trabalhados torna-se essencial. Um bom exemplo vem dos próprios animes, que frequentemente revisitam episódios anteriores para reforçar a narrativa, uma estratégia simples, mas poderosa, que pode ser adaptada para o ensino e contribuir para a consolidação da aprendizagem.


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cultura, ensino fundamental, ensino médio, metodologias ativas

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