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Inovações em Educação

Semana Emilia Ferreiro celebra legado da pedagoga e compromisso com a alfabetização crítica

Com participação de educadores, gestores públicos e pesquisadores de diferentes países da América Latina, a Semana Emilia Ferreiro reforça o debate sobre alfabetização como direito

por Ana Luísa D'Maschio / Ryan Nunes ilustração relógio 14 de maio de 2025

“Por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa.” O legado e a atualidade da pedagoga e psicóloga argentina Emilia Ferreiro (1937–2023), referência mundial no campo da alfabetização, foram celebrados no início deste mês de maio.

Entre os dias 5 e 8, a Rede Latino-Americana de Alfabetização promoveu a Semana Emilia Ferreiro. Reunindo representantes de governos, universidades e organizações da sociedade civil, mais de 9 mil pessoas de toda a América Latina participaram das 22 ações formativas online.

👉 Todos os debates estão disponíveis no YouTube. Confira:

“A escrita é um bem comum. Negar o acesso à cultura escrita é negar o direito de produzir sentidos sobre o mundo”, destacou Giovana Zen, presidenta da Rede. A abertura também contou com a presença de Valeria Garcia Ferreiro, filha de Emília e presidenta da Fundação Garcia Ferreiro, instituição mexicana responsável por preservar e difundir o legado da pesquisadora e de seu companheiro, o epistemólogo Rolando Garcia.

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Criada nos anos 1990 por iniciativa de Emilia Ferreiro, a Rede Latino-Americana de Alfabetização reúne profissionais que compreendem a alfabetização não como um treino de habilidades mecânicas, mas como um processo de inserção das crianças na cultura do escrito. Esse processo acontece quando elas pensam, criam, compartilham ideias e descobrem sua capacidade de aprender.

Emilia Ferreiro revolucionou a lógica tradicional de muitos educadores, que só se preocupavam com o processo de aprendizagem quando o aluno não apresentava resultados. Em vez disso, deslocou o foco da alfabetização para o sujeito que aprende. Suas conclusões influenciaram políticas públicas educacionais em diversos estados brasileiros a partir da década de 1980.

Teorias que baseiam práticas

Em torno da ideia central de que o processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende, a semana foi marcada por trocas de práticas pedagógicas, debates sobre formação de professores e defesa do direito à alfabetização sob a perspectiva construtivista psicogenética.

Formulada por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, a teoria da psicogênese da língua escrita estuda como as crianças organizam seu pensamento durante a aprendizagem da leitura e da escrita, colocando-as como protagonistas do processo. O evento também trouxe luz ao construtivismo, desenvolvido por Jean Piaget, que defende o conhecimento como algo construído ativamente pelo sujeito.

“É necessário primeiro entender que o construtivismo e a psicogênese não são métodos. Ao compreendê-los como tal, muitos professores passam a buscar receitas prontas de aplicação. No entanto, sem embasamento teórico, o profissional não consegue transformar, criar nem propor novas experiências para as crianças”, explica Gilmária Ribeiro da Cunha, professora e coordenadora pedagógica da Rede Municipal de Ensino de Salvador (BA).

O Porvir acompanhou a mesa “Alfabetização e Educação Infantil: desafios e possibilidades”, que contou, além de Gilmária, com a participação de Alexsandro Santos, diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC (Ministério da Educação) e Mônica Correia Baptista, professora e pesquisadora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Criança cidadã

A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) define que a alfabetização das crianças deve ocorrer até o 2º ano do ensino fundamental, como forma de garantir o direito de aprender a ler e escrever.

Na mesa, o questionamento “a educação infantil deve ou não alfabetizar?” foi considerado propositalmente uma armadilha para instigar o debate. “É necessário refletir qual é o papel dessa etapa em relação à alfabetização. Estamos construindo a compreensão de que a educação infantil tem um papel importante no processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças”, afirma Mônica Correia Baptista, coordenadora do programa LEEI (Leitura e Escrita na Educação Infantil).

Alexsandro Santos também reforçou que a educação infantil deve garantir o direito das crianças de participarem de práticas sociais de leitura e escrita desde o nascimento, por se tratar de um princípio ético e político. Contudo, esse processo deve ser conduzido com intencionalidade e respeito às especificidades da infância, evitando imposições curriculares que desrespeitam as diretrizes da etapa.

“A criança é cidadã desde o nascimento. Negar seu direito ao convívio com a linguagem escrita é negar sua cidadania”, pontuou. 

Os debatedores da Semana Emilia Ferreiro reforçam que não se trata de antecipar o aprendizado formal da leitura e escrita, mas de garantir o direito das crianças à inserção em práticas de linguagem desde os primeiros anos. Quando bem planejada e sensível às infâncias, a educação infantil tem papel decisivo nesse processo.

Brincar ao ar livre nunca foi tão urgente, dizem especialistas
Crédito: FatCamera/iStock Brincar é uma forma essencial de interação e integração

Resultados de aprendizagem e políticas públicas

Segundo os critérios do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), são consideradas alfabetizadas as crianças que atingem a nota mínima de 743. Isso significa que conseguem ler palavras, frases e pequenos textos do cotidiano, mesmo com eventuais desvios ortográficos.

Para Mônica, embora a educação infantil não tenha como finalidade principal a alfabetização formal, esse processo pode ocorrer como resultado das interações significativas no cotidiano escolar. “A apropriação da linguagem escrita se dá em um processo contínuo, e a escola tem papel fundamental nisso”, afirma.

Alexsandro Santos apresentou o Conaquei (Compromisso Nacional pela Qualidade e Equidade na Educação Infantil), uma nova política pública que prevê apoio técnico e financeiro a estados, municípios e ao Distrito Federal, com foco na universalização da pré-escola e na ampliação do atendimento em creches.

“Trata-se de uma política mais ampla, que vai além da formação, embora esta seja fundamental. É preciso também investir na infraestrutura das unidades, garantir materiais pedagógicos e assegurar boas condições de trabalho. A formação sozinha pode muito, mas não pode tudo”, destacou.

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Literatura desde o berço

Um dos principais instrumentos do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada é o Pro-LEEI, de 2025, programa já implementado em 15 estados e no Distrito Federal. Ele oferece formação continuada a professores da educação infantil, com o objetivo de implementar e promover a formação continuada de profissionais da educação infantil para fortalecer o planejamento e a implementação de práticas pedagógicas que desenvolvam a linguagem oral, leitura e escrita das crianças.

Nesse processo, a literatura infantil ocupa um papel central. “Ela não é um apêndice, mas algo constitutivo da infância. Se ainda não é, precisa ser”, defende Mônica. Segundo ela, a literatura contribui para uma educação estética e sensível. “Como nos ensina Antônio Cândido, a literatura, como expressão do humano, nos ajuda a construir sentidos, a nos emocionar e a abrir caminhos de alteridade.”

Formação continuada

Para que bebês e crianças estejam inseridos em boas práticas de leitura, escrita e oralidade, é essencial que seus professores também sejam leitores, destaca Alexsandro. “É preciso que educadores estejam envolvidos em práticas consistentes e significativas de leitura e escrita. Olhar o professor como sujeito de linguagem ainda é um desafio que avançamos mais lentamente do que deveríamos. E isso é crucial: não é possível formar leitores distantes da leitura e da escrita; não se formam pessoas letradas sem práticas reais de letramento.”

Ele também ressaltou a importância de fortalecer o papel da literatura infantil nas creches e pré-escolas. “O LEEI parte dessa concepção, compreendendo a literatura como um campo privilegiado de interação com a linguagem. Precisamos fortalecer essa perspectiva e ampliar seu alcance com urgência.”

Gilmária concorda que não basta apenas ler para as crianças. “É preciso planejar e intervir de forma qualificada. A leitura feita pelo professor desperta nas crianças o interesse pelo livro, mesmo aquele que já estava ao alcance delas, mas ainda não havia chamado sua atenção. É nesse movimento que a criança também passa a ler, criando situações e vivendo momentos próprios de leitura.”

O brincar como linguagem da infância

Outro aspecto central no processo de aprendizagem é o brincar. Mais do que diversão, o brincar é uma forma essencial de interação, imaginação e construção de sentido. “Reconhecer a centralidade do ato de brincar, não como uma atividade com fins pragmáticos, mas como forma de apropriação e transformação do mundo, é reconhecer o direito da criança de aprender em liberdade”, afirma Mônica.

Esse direito está garantido tanto na Declaração Universal dos Direitos da Criança quanto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que valorizam o brincar e o lazer como condições fundamentais para o desenvolvimento integral.

Gilmária complementa: “As poesias, parlendas, cantigas, trava-línguas e adivinhas tornam a palavra escrita um brinquedo. Essas experiências ajudam as crianças a explorar os sons, ritmos e sentidos da linguagem.”


TAGS

alfabetização, educação infantil, ensino fundamental, formação continuada

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