Alunos do Recife transformam o Rio Capibaribe em aprendizado vivo - PORVIR

Diário de Inovações

Alunos do Recife transformam o Rio Capibaribe em aprendizado vivo

Entre lendas, músicas e ciência, crianças do 4º ano redescobrem o Capibaribe como parte de sua identidade e apresentam propostas para cuidar do meio ambiente

por Karina Luiza dos Santos Azevedo ilustração relógio 29 de agosto de 2025

Quem mora ou já passou pelo Recife sabe que a espinha dorsal da cidade é o Rio Capibaribe. Nascido na serra de Jacarará, em Poção, ele percorre 248 quilômetros e corta o estado de Pernambuco de ponta a ponta, banhando 42 municípios e recebendo cerca de 74 afluentes até desaguar no Oceano Atlântico. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), seu nome vem da língua tupi e significa “na água de capivara” ou “dos porcos selvagens”, a partir da junção dos termos kapibara (capivara), y (água) e pe (em).

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Mais do que elemento natural, o Capibaribe foi fundamental para a história e economia de Pernambuco. Em suas várzeas de solo massapê, escuro e fértil, típico da faixa litorânea do Nordeste e ideal para a agricultura, surgiram os primeiros engenhos de cana-de-açúcar, que impulsionaram o desenvolvimento do estado e da região. 

Vem desse contexto a criação do projeto “O Recife que o Capibaribe viu” com minha turma do 4º ano da Escola Municipal Vila Santa Luzia. A proposta nasceu da percepção de que os alunos enxergavam o rio apenas como cenário, sem ligação com sua história ou com os desafios ambientais. Para eles, o Capibaribe parecia distante, e não uma entidade viva, protagonista da história, da cultura e das questões ambientais do Recife.

Vista aérea de cidade com rio central e ponte ligando áreas urbanas.
Divulgação Prefeitura de Recife O rio Capiberibe.

Atualmente, a situação do rio é preocupante: um estudo da Fundação SOS Mata Atlântica, intitulado “Observando os Rios”, mostrou que, entre 112 rios avaliados no bioma Mata Atlântica, nenhum apresentou qualidade ótima da água, e o Capibaribe foi o que registrou os maiores riscos à saúde e à fauna local, pelo excesso de esgoto sem tratamento.

Abordagem inicial

As atividades duraram cerca de três meses. A partir da metodologia STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática), transformei a sala de aula em um espaço de investigação e criação. Queria que as crianças tivessem uma experiência de aprendizagem significativa, na qual se percebessem como cidadãs capazes de pensar soluções para problemas reais do Recife.

A preparação foi imersiva e começamos pela Escola Flutuante Águas do Capibaribe, um catamarã que funciona como unidade de ensino ambiental da rede municipal. O barco-escola promove atividades de observação da natureza e reflexão sobre a preservação socioambiental. As aulas-passeio, com cerca de 50 minutos, têm como ponto de partida o Marco Zero, na Praça Rio Branco, no Recife Antigo, local histórico que marca o início das distâncias rodoviárias de Pernambuco e é um dos principais cartões-postais da cidade. 

Crianças com coletes salva-vidas sorrindo em um passeio de barco.
Foto: Arquivo Pessoal

No trajeto, acompanhados de diários de bordo, os estudantes aprendem sobre manguezais, história do Recife e impactos do lixo. Eles também conhecem o Rio Capibaribe, principal curso d’água que corta a capital, e a Bacia do Pina, área rica em manguezais, mas pressionada pela urbanização. Ao final, registram suas percepções sobre o rio e sua fauna.

Utilizamos recursos simples, como celulares e gravadores, para registrar fotos e sons da água e da cidade. Também recorremos ao Google Maps para identificar pontos de poluição e marcos históricos. Entre eles estavam o Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco, localizado às margens do rio, e diversas pontes históricas do Recife, que ligam as ilhas e bairros da cidade e fazem parte de sua identidade cultural e arquitetônica.

Em sala de aula, esse material foi o ponto de partida para pesquisas em livros e na internet, com mapas antigos e fotografias, que permitiram contrastar o Recife de ontem e o de hoje.

As quatro etapas do projeto

1) Investigação inicial

Após a saída de campo, promovemos um debate: “O que o rio Capibaribe representa para você?”. As respostas começaram tímidas, como apenas um rio, um lugar de mergulho ou de pesca, mas ganharam profundidade à medida que os alunos avançaram nas pesquisas históricas e geográficas. 

Compreenderam que o Capibaribe já foi o principal meio de mobilidade comercial na época dos engenhos de açúcar e que abriga uma fauna e flora ricas que necessitam de preservação. Assim, perceberam a relação entre o rio e o desenvolvimento urbano do Recife.

2) Pesquisa e coleta de dados

Esta foi a fase de maior protagonismo estudantil. Alguns alunos, por morarem na região, puderam entrevistar pessoas que vivem às margens do Capibaribe. Tornaram-se pesquisadores ativos, ouvindo histórias e memórias que não estão registradas nos livros. 

As conversas ganharam espaço na sala de aula, estimulando debates e novas reflexões. Perceberam que, à medida que o desenvolvimento urbano avançava de forma desigual, muitas famílias eram levadas a se instalar próximas ao rio, mesmo diante dos riscos que essa escolha implicava.

Maquete de embarcação feita com blocos de montar sobre mesa com teclado.
Foto: Arquivo Pessoal

Nesta fase, a turma também identificou o lixo como um dos principais problemas ambientais, com base em pesquisas feitas nos Chromebooks e em notícias da mídia local. Participaram, então, de uma oficina de robótica com kits LEGO, realizada na UTEC (Unidade de Tecnologia na Educação e Cidadania), espaço da Prefeitura do Recife voltado à inclusão digital e à cidadania. Ali, projetaram e construíram protótipos de um “barco coletor de lixo”.

3) Conexões culturais e sociais

A arte foi o principal meio para expressar os aprendizados. Entre os cartazes produzidos pela turma, um tratava das lendas ligadas ao rio, entre elas a  Mãe-d’Água, é descrita como uma linda sereia da mitologia tupi-guarani. Seu nome remete à guardiã das nascentes e, no imaginário local, conecta-se ao Capibaribe, rio que alimenta a identidade do Recife.

Outro homenageado pelos alunos foi Chico Science, grande ícone da música pernambucana que uniu diversos ritmos e criou o movimento “Manguebeat”. Em muitas de suas canções, denunciava a situação preocupante do rio e a expansão desordenada da cidade, ao mesmo tempo em que ampliava o olhar sobre a tradição local.

Ao final, as crianças construíram um grande cartaz em forma de painel que representava a evolução da paisagem do rio, reunindo arte, história e identidade cultural recifense.

4) Prototipagem e comunicação

Na etapa final, os alunos criaram produtos concretos. Com o apoio da inteligência artificial, construí um mapa colaborativo digital para que pudessem visualizar de forma integrada os pontos do Rio Capibaribe que necessitam de atenção, tanto positivos quanto negativos, além de localizar marcos históricos da cidade. O mapa, disponível online, poderá ser atualizado posteriormente pelos próprios estudantes. No entanto, muitos relataram dificuldades de acesso à tecnologia, seja pela ausência de celular ou computador.

Grupo de meninas trabalhando juntas com notebook e caderno em sala de aula.
Foto: Arquivo Pessoal

Como culminância das etapas anteriores, os alunos criaram uma maquete do Marco Zero do Recife, incluindo o protótipo do “barco coletor de lixo” como proposta de revitalização das margens do rio. A escolha desse local foi simbólica, pois além de marcar o início da história da cidade, está diretamente ligado ao Capibaribe.

Todo esse percurso será apresentado na Feira de Conhecimentos, em outubro, aberta à comunidade escolar. A iniciativa da Prefeitura do Recife incentiva a iniciação científica e convida todas as escolas da rede municipal a realizarem suas feiras, despertando nos estudantes o interesse pela investigação e pela aplicação prática do que aprendem. 

Cidade educadora

Acredito que quanto mais nos aproximamos da nossa própria história, mais nos reconhecemos nela. Recife é uma cidade de cultura e tradição muito fortes, e repassar isso às crianças é essencial para que desenvolvam um sentimento de pertencimento cultural. 

Preservar começa pelo conhecimento: quando você conhece sua história, ela deixa de ser algo distante e passa a fazer parte de quem você é. É se apropriar das próprias raízes. Nossa cidade pulsa tradição e cultura, e precisamos valorizar cada vez mais essa riqueza, reconhecendo a imensidão da nossa história.

Obstáculos e aprendizados

O desafio foi logístico, especialmente na organização das saídas de campo e das entrevistas. Houve dificuldade para conseguir ônibus da Prefeitura e, muitas vezes, as crianças que moravam próximas ao rio não conseguiam se deslocar ou esqueciam o compromisso. Além disso, a distância entre a escola e as áreas de pesquisa aumentou os obstáculos.

Ainda assim, o engajamento dos meus alunos superou as expectativas. A proposta contemplou competências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) — Ciências (EF04CI05), Geografia (EF04GE11) e História (EF04HI01), e se conectou com a Política de Ensino do Recife, que valoriza a relação com o meio ambiente e o uso da tecnologia como eixos de aprendizagem.

Turma de alunos apresenta cartaz azul com textos e imagens colados.

O impacto mais significativo esteve na transformação da percepção dos estudantes. O Capibaribe deixou de ser visto apenas como paisagem e passou a ser compreendido como símbolo de responsabilidade. Uma aluna destacou que o descarte correto do lixo não só mantém a cidade limpa, mas também previne alagamentos. Outro observou que a questão não pode ser tratada de forma individual, restrita à própria rua, pois cada atitude pode gerar consequências até para pessoas distantes.

No campo da aprendizagem, percebi avanços importantes, sobretudo no desenvolvimento de competências como a análise crítica, trabalhada em Geografia e História, e a resolução de problemas, explorada em Matemática e Engenharia.

Para mim, a conquista mais valiosa foi ver meus alunos assumindo o papel de protagonistas. Mais do que aprender conteúdos, eles passaram a enxergar-se como cidadãos capazes de transformar sua realidade e cuidar do futuro da nossa cidade.

Este projeto mostrou que, ao conectar o currículo à realidade local e dar voz ativa aos estudantes, a aprendizagem se torna significativa, crítica e transformadora.


Karina Luiza dos Santos Azevedo

Formada em Pedagogia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pós-graduada em Inovação e Tendências Educacionais, também pela UFPE. Atua como professora há mais de 10 anos e, atualmente, leciona para a turma do 4º ano do Ensino Fundamental da rede municipal do Recife.

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3ª edição - Prêmio Professor Porvir, ensino fundamental, Prêmio Professor Porvir

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