Educação sob sirenes: experiências da Ucrânia e o papel da escola na construção da paz - PORVIR
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Educação sob sirenes: experiências da Ucrânia e o papel da escola na construção da paz

Única representante do Brasil em um evento internacional dedicado à reconstrução da educação na Ucrânia, a educadora Débora Garofalo compartilha com o Porvir suas impressões diante de uma realidade marcada pela guerra

por Débora Garofalo ilustração relógio 23 de setembro de 2025

“Quando mantemos a escola aberta, mantemos o futuro aberto.”

A frase, dita pela primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska, ecoou fundo durante minha passagem pelo país neste mês de setembro de 2025. Ela resumiu tudo o que vi, ouvi e vivi em meio a um cenário de destruição e, ao mesmo tempo, de resistência.

Nunca imaginei viajar para uma nação em guerra, mas não pude negar o convite especial que recebi para participar da 5ª Cúpula das Primeiras-Damas e Cavalheiros (Summit of First Ladies and Gentlemen Global Platform), organizada pelo presidente Volodymyr Zelensky e da primeira-dama, Olena. O reconhecimento ao trabalho que desenvolvo no Brasil na área da educação, em especial a robótica com sucata, me colocou diante de uma experiência transformadora: testemunhar como a escola se reinventa para ser o alicerce de um país em reconstrução.

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A chegada à Ucrânia já carregava um simbolismo forte. Nas ruas da capital Kiev, os sinais do conflito se misturam com a vida que insiste em continuar. Barricadas improvisadas e prédios marcados por bombardeios em meio a uma cidade vazia. Em cada esquina, sirenes lembram que o perigo ainda ronda, mas também revelam a coragem de um povo que decidiu não abrir mão de aprender e ensinar.

Visita a uma escola ucraniana

Um encontro global pela educação

Entre os países convidados para a Cúpula estavam educadores de Áustria, Dinamarca, Estônia, Lituânia, Alemanha, Finlândia, Sérvia, Polônia e Reino Unido, além de delegações de organismos internacionais envolvidos com educação, paz e resiliência.

O encontro teve como tema “Educação que molda o mundo” e trouxe uma constatação clara: a guerra não destrói apenas prédios ou estradas. Ela ameaça sonhos, interrompe processos formativos e fragiliza o tecido social, inclusive quando sirenes soam e nos obrigam a buscar abrigo em meio às falas e debates.

As discussões colocaram os professores no centro: como garantir que continuem ensinando mesmo quando eles próprios também sofrem com perdas, deslocamentos e incertezas? Essa pergunta atravessou as falas de especialistas e líderes, e ganhou ainda mais força quando visitamos escolas locais.

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Arquivo pessoal Experiência com sucata em escola ucraniana

Vozes da escola em guerra

Em contextos de conflito, compreendi com clareza que a escola é muito mais do que um local de ensino. Ela é refúgio, espaço de pertencimento, território simbólico de resistência cultural. Em uma visita a uma escola de Kiev, estudantes compartilharam comigo um de seus maiores desafios: os blecautes, especialmente no inverno rigoroso, quando a falta de energia pode durar horas ou até dias.

Foi nesse contexto que propus uma atividade prática. Com fios, interruptores, resistores, baterias e um pouco de criatividade, construímos juntos lanternas sustentáveis. A cada lâmpada acesa, vi nascer um brilho diferente nos olhos dos jovens. Para eles, era mais do que luz. Era prova de que, mesmo em meio à escassez, é possível produzir soluções úteis para a comunidade. Para mim, foi uma metáfora poderosa: a educação como a chama que insiste em iluminar tempos de escuridão.

Campanha global “Cada geração deixa seu rastro. A educação define seu legado”, lançada durante a 5ª Cúpula das Primeiras-Damas e Cavalheiros

Histórias que marcam a educação na Ucrânia

Uma das narrativas mais impactantes que ouvi foi a da professora Irina, de literatura. Depois que sua escola foi destruída em um bombardeio, ela reuniu seus alunos em sua própria casa para seguir com as aulas. O gesto lhe custou caro, pois foi capturada e torturada. Após conseguir escapar, não desistiu e hoje leciona online para mais de dois mil estudantes.

Para ela, ensinar literatura e tradições ucranianas é um ato de resistência cultural. Sua voz, firme apesar da dor, transmitia a convicção de que preservar a língua e a cultura é garantir a sobrevivência de um povo.

Outra história inspiradora veio de Kate Hrenchka, professora que atua em hospitais. Em muitas manhãs, antes de iniciar o conteúdo formal, ela canta canções tradicionais com os alunos internados. Ela acredita que a música fortalece o elo com a história e dá coragem diante do medo. Essa prática simples mostrava como a educação não é só currículo, mas também afeto, memória e vida.

Arquivo pessoal Homenagem recebida durante o evento

Dados que não deixam esquecer

Durante o evento, organizações internacionais apresentaram dados que reforçaram a dimensão do obstáculo. A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) informou que mais de cinco milhões de crianças e jovens tiveram sua rotina escolar afetada desde 2022. Muitas frequentam escolas improvisadas em abrigos subterrâneos ou recorrem a plataformas digitais em condições precárias. O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) destacou que estudantes que mantêm algum vínculo educacional durante a guerra têm 40% menos chances de desenvolver traumas severos.

Relatórios do Banco Mundial lembraram que cada ano de escolarização perdido pode reduzir em até 10% a renda futura de um jovem, mostrando que a interrupção educacional deixa cicatrizes não só sociais, mas também econômicas.

Andreas Schleicher, diretor de Educação e Habilidades da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), trouxe outro dado marcante: 37% dos estudantes afirmaram que desenvolver empatia e respeito por opiniões diferentes é essencial para a cultura de paz, e 34% apontaram a educação em direitos humanos como pilar da reconstrução.

Arquivo pessoal Encontro entre professores de diversos países em uma praça de Kiev

Tecnologia e humanidade

Outro ponto em debate foi o papel da tecnologia. A guerra acelerou o uso da educação híbrida e da inteligência artificial. A pesquisa da OCDE revelou que 22% dos estudantes e 24% dos professores já utilizam inteligência artificial em seus estudos e práticas pedagógicas. Mas, mesmo nesse cenário, ficou evidente que o maior recurso ainda é humano: professores e comunidades que não desistem de ensinar e aprender.

Foi nesse contexto que compartilhar meu trabalho com robótica com sucata ganhou ainda mais força. Em um país onde a devastação deixou recursos escassos, a ideia de transformar o descartável em ferramenta de aprendizado foi recebida com entusiasmo. Para mim, foi a prova viva de que a criatividade pode florescer mesmo em meio à destruição e de que a educação é capaz de reinventar o futuro a partir do pouco que resta.

Arquivo pessoal O triângulo da educação mostra que o sucesso do estudante nasce da parceria entre quem aprende, quem ensina e quem apoia. Estudantes, professores e famílias juntos formam a base de um futuro melhor

O futuro que insiste em nascer

Voltei da Ucrânia profundamente transformada. Carrego comigo a dor de ver de perto os impactos da guerra na vida de professores, crianças e jovens, mas também a esperança de ter testemunhado a força da educação como instrumento de reconstrução. Cada porão convertido em sala de aula, cada canção entoada em meio ao medo, cada lâmpada acesa em tempos de apagão são sinais de que a escola continua sendo o lugar onde o futuro insiste em nascer.

Defender a educação em zonas de conflito não é apenas apoiar um país específico. É defender a humanidade. É reafirmar, como aponta a Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas), que a educação de qualidade é o alicerce de qualquer futuro possível.

Na Ucrânia, vi esse compromisso ser vivido no limite, em condições extremas, e justamente por isso, com uma força ainda maior. Ali compreendi que educar, em si, é um ato político e ético. É resistir contra a barbárie e afirmar que, mesmo em meio à guerra, a esperança continua acesa.


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Coluna Débora Garofalo, história, robótica

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