Farmácia Literária: alunos prescrevem bulas para despertar leitura
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Diário de Inovações

Farmácia literária: estudantes se tornam mediadores e curam resistência à leitura

Em Criciúma (SC), estudantes do 9º ano prescrevem leituras como tratamento, produzem bulas literárias e descobrem, nos livros, uma forma de cuidar da aprendizagem e das emoções

por Cristiane Dias ilustração relógio 26 de setembro de 2025

Tudo começou com uma inquietação. Nas minhas turmas de 9º ano, percebia que muitos estudantes tinham dificuldades de leitura e compreensão de texto, o que impactava diretamente a produção escrita. Além disso, quando íamos à biblioteca, a maioria optava por gibis ou obras infantis, raramente se arriscando em livros de literatura mais complexos.

Esse comportamento me deixou pensando: como criar um espaço em que a leitura pudesse ser vista como prazerosa, necessária e até mesmo “curativa”? Foi aí que me perguntei: e se os livros fossem remédios?

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A pergunta se inspira no livro “Farmácia Literária”, de 2016, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. A frase “Lido no momento certo, um livro pode mudar sua vida” se transformou no lema do meu projeto. As autoras defendem que a literatura pode ser prescrita para diferentes dores da alma e do coração. A partir dessa metáfora, decidi propor aos meus alunos que enxergassem cada obra lida como um “tratamento”, capaz de aliviar resistências, despertar imaginação e criar laços afetivos.

Assim, comecei a elaborar o projeto “Farmácia Literária”, realizado com três turmas do 9º ano (uma no período da manhã e duas à tarde) da Escola de Ensino Fundamental Professor Lapagesse, no centro de Criciúma (SC), envolvendo quase 90 estudantes.

No início, muitos estranharam a ideia. Comentários como “Professora, quem toma livros?” foram comuns. Mas, pouco a pouco, os estudantes foram entrando no espírito da proposta. Logo começaram surgiram falas como “esse livro foi um alívio para mim” ou “acho que essa história é boa para quem está triste”. Alguns passaram a recomendar obras espontaneamente, sem que eu pedisse.

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Fórmula pedagógica: o projeto que uniu BNCC, afeto e literatura 

Para dar consistência à proposta pedagógica, busquei apoio na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), documento que organiza e define as aprendizagens essenciais para toda a educação básica. No caso da Língua Portuguesa, a BNCC para o 9º ano apresenta habilidades que se alinharam diretamente ao que eu queria desenvolver. Trabalhei, em especial, com quatro delas:

  • EF09LP01 – Analisar fenômenos discursivos e desenvolver estratégias de leitura crítica em diferentes contextos.
  • EF09LP02 – Comparar diferentes enfoques e perspectivas em textos.
  • EF09LP03 – Produzir textos considerando o contexto e o propósito comunicativo.
  • EF09LP11 – Utilizar recursos de coesão sequencial para produzir efeitos de sentido.

Essas quatro habilidades guiaram o planejamento, garantindo que a prática fosse criativa, mas também conectada aos objetivos formais do currículo.

O planejamento se estruturou em três frentes:

  1. Seleção do acervo literário: obras variadas em gênero, autores e temáticas, para garantir representatividade e diálogo com diferentes realidades e interesses.
  2. Modelagem das produções: criação das três etapas do projeto (Bula Literária, Remédio Caseiro e Amostra Grátis), cada uma com foco em diferentes práticas de leitura e escrita.
  3. Momentos de socialização: rodas de conversa, Café Literário e exposição dos “remédios literários”, para que os alunos se sentissem autores e pudessem compartilhar suas produções com a comunidade escolar.

Prescrição literária em três doses: leitura, escrita e partilha

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Bula literária: alunos recomendam livros como tratamento

Começamos lendo coletivamente livros como “O encontro” (Michelle Iacocca, 2020) e “Telefante sem fio” (Adriano Messias, 2020). Após a leitura, em roda, propus as perguntas: “Para quem esse livro poderia ser indicado?” e “Para quem ele não seria?”.

As respostas demonstraram tanto humor quanto sensibilidade. Alguns estudantes disseram que a obra seria indicada para quem gosta de animais; outros concluíram que não serviria para alguém que tivesse perdido um cachorro recentemente.

Esse exercício os ajudou a refletir sobre a adequação da leitura e a exercitar a empatia. Em seguida, receberam orientações para escrever bulas literárias: resumos da obra em formato de medicamento, com indicação, contraindicação e composição temática.

Para auxiliar na leitura de obras mais densas, elaboramos um roteiro literário, que orientava a busca por informações relevantes.

Durante o recreio, os alunos assumiram o papel de “farmacêuticos literários”, usando crachás de identificação. Explicavam o projeto aos colegas, prescreviam livros e exibiam as bulas coladas nos murais do pátio da escola.

Remédio caseiro: histórias escritas com imaginação

Nesta etapa da Farmácia Literária, o desafio foi produzir literatura a partir da própria imaginação. Trabalhamos o gênero conto, já previsto no currículo do 9º ano. Tivemos a participação de Adriano Perin, professor e doutor em filosofia, que trouxe motes literários como pontos de partida para os textos. À época, ele cursava Letras (Português) e fez o estágio nas turmas participantes do projeto.

Revisei com as turmas os elementos básicos do conto (conflito, clímax e desfecho) e recorri a filmes, séries e livros conhecidos para ilustrar o processo narrativo. A partir dessas referências, cada estudante estruturou e escreveu sua história. Após a primeira versão, realizamos correções e reescritas.

Os contos foram compartilhados no Café Literário, um momento de celebração em que os estudantes liam uns para os outros, comentavam os temas e riam das situações inventadas. Foi emocionante ver um colega sugerindo que uma aluna transformasse seu conto em livro. Como escritora de contos e romances, aproveitei para compartilhar uma de minhas próprias produções, “As janelas e outros contos”, criando uma ponte afetiva com eles.

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Amostra grátis: trechos que funcionam como doses iniciais de leitura (em andamento) 

Na última etapa, inspirada nas amostras distribuídas por farmacêuticas, cada aluno selecionou um romance do acervo escolar e preparou trechos que funcionassem como “doses iniciais”, capazes de despertar interesse em novos leitores. 

A culminância prevista é um seminário aberto à comunidade escolar, em que os alunos vão compartilhar suas escolhas e “receitar” leituras a colegas, professores e familiares.

Efeitos colaterais: desafios superados com escuta, paciência e vínculo

Alguns desafios da Farmácia Literária surgiram ao longo do processo: leituras que exigiram mais tempo do que o previsto, ajustes para atender estudantes com necessidades específicas e o engajamento inicial dos mais resistentes.

No entanto, com paciência e acompanhamento, todos puderam participar. Os resultados compensaram: houve melhora significativa na produção textual, ampliação do repertório literário, maior autonomia e engajamento dos estudantes.

As rodas de conversa e apresentações fortaleceram habilidades como a oralidade, a escuta ativa e a argumentação. Além disso, o vínculo com a leitura tornou-se mais afetivo e espontâneo.

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O legado da Farmácia Literária

O projeto não se restringiu às turmas participantes. A direção apoiou com espaço físico e recursos; professores de outras disciplinas demonstraram interesse em integrar a proposta às suas áreas; colegas de outras séries visitaram os murais com bulas literárias e se encantaram com os “farmacêuticos” no pátio.

O Café Literário tornou-se um momento coletivo de orgulho e pertencimento, no qual a literatura se transformou em motivo de celebração.

O projeto Farmácia Literária deixou marcas duradouras na escola: movimentou o acervo, gerou metodologias criativas passíveis de replicação e consolidou um ambiente mais colaborativo e aberto à autoria.

Mas o maior legado foi humano: a convicção de que o remédio mais eficaz é a literatura, especialmente a ficção, que contribui não apenas para a aprendizagem acadêmica, mas também para o desenvolvimento das competências socioemocionais que sustentam a vida em comunidade.

E mais: percebi que os livros de ficção são especialmente potentes para fortalecer competências socioemocionais. Ao acompanhar personagens e conflitos, os estudantes exercitam empatia, aprendem a lidar com sentimentos, ampliam a escuta e constroem uma visão mais sensível do mundo. 


Algumas bulas da Farmácia Literária

📖 Pequeno herói – Fiódor Dostoiévski

Descrição: A história gira em torno de um menino russo de 11 anos que mora em uma fazenda. O enredo vai mostrar o quanto o menino aprecia as visões dos adultos e o que pensam dele.

Composição: Apresenta doses concentradas de amadurecimento, e medidas regradas de tristeza com as situações que o menino se envolvia.

Indicação: É indicado aos que buscam compreender as perspectivas infantis.

Contraindicação: Não indicado para pessoas que gostam de reviravoltas emocionantes.

Farmacêutico Literário responsável: Ana Clara

📖 Bicho carpinteiro – Roberto Athayde
Descrição: O livro conta a história de Rudá tentando descobrir o que é o bicho carpinteiro.

Composição: Este livro apresenta curiosidade, uma pitada de confusão e autodescobrimento.

Indicação: Para adolescentes e pessoas que estão se descobrindo.

Contraindicação: Pessoas que não gostam desses temas.

Farmacêutico Literário responsável: Henrique.

📖 Nós, os Deuses – Bernard Werber

Descrição: De homem para anjo, e agora, aluno-deus. Michael Pinson terá que enfrentar diversos desafios, incluindo Quimeras, baleias gigantes e até mesmo Deusas.

Composição: Concentrado em fatos sobre a Mitologia grega, incluindo altas doses de suspense e mistério.

Indicação: Indicado para pessoas extremamente curiosas e que gostem de aprender um pouco mais sobre culturas e mitos.

Contraindicação: Não indicado para pessoas que não gostem de livros longos ou livros que contém assassinatos.

Farmacêutico Literário responsável: Micaelli

📖 Frankenstein – Mary Shalley

Descrição: Um jovem cientista resolve criar um ser vivo a base de cadáveres de seres humanos falecidos, dando a vida a uma criatura.

Composição: Contém doses de curiosidade e suspense.

Indicação: É indicado para pessoas curiosas.

Contraindicação: Não contém nenhuma contraindicação, pois é um ótimo livro.

Farmacêutico Literário responsável: Lucas


Cristiane Dias

Professora efetiva na Rede Estadual de Educação de Santa Catarina, é graduada em Letras - Português/Inglês, tem especialização em Metodologia no Ensino de Línguas Estrangeiras Modernas e Mestrado em Educação. É escritora com seis livros publicados entre eles contos, literatura juvenil e novela.

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3ª edição - Prêmio Professor Porvir, ensino fundamental, leitura, socioemocionais

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Kátia Estevam

Como é bom ver o resultado harmonioso entre habilidade e realização com o profissional adequado a sua profissão. Que todos os profissionais possam ser felizes e respeitados em sua área de atuação. Parabéns a todos que apoiaram com boa vontade a execução do seu iluminado projeto.

Cristiane Dias

Muito obrigada pelo carinho!

Maria Zuleide de Assis da Silva

É uma ideia interessante na rotina diária no processo da leitura e da escrita

Cristiane Dias

Muito obrigada!

Karoline Duarte

Uau! Parabéns, Cristiane Dias!! Sou farmacêutica e apaixonada por literatura infantil. Que projeto maravilhoso!!

Cristiane Dias

Muito obrigada ❤️

Márcia de Paula Soares

Gostei muito desse projeto
Feliz pela iniciativa da educadora, pelo apoio dos colegas e a participação ativa dos alunos.
E parabéns a direção

Cristiane Dias

Muito obrigada ❤️

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