Até que ponto a educação deve se preocupar com a IA para ensinar de forma diferente?
Na Conferência Internacional PBL 2025, especialistas discutem como a inteligência artificial pode ampliar (ou limitar) a criatividade, a ética e o trabalho docente
por Vinícius de Oliveira
3 de novembro de 2025
Na ordem das prioridades, o que parece mais urgente para a educação? Romper com o modelo tradicional, no qual o professor detém todo o saber e o aluno ocupa um papel passivo, ou investir no uso da IA (inteligência artificial), já que o mundo todo deposita grandes expectativas nesta nova tecnologia?
A educação ainda é marcada por certo conservadorismo e cautela diante de grandes mudanças, o que, em muitos casos, não é necessariamente ruim. A chegada da IA, assim como de outras tecnologias digitais, tem sido apresentada como uma ponte para novas possibilidades de ensino. No entanto, sua eficácia não está em simplesmente levá-la para dentro das salas de aula. Evidências nacionais e internacionais mostram que o fator realmente decisivo é a capacidade de promover e implementar novas metodologias de aprendizagem, nas quais a tecnologia seja integrada de forma significativa e transformadora.
Durante a Conferência Internacional PBL 2025, realizado na última semana na PUC Minas, em Belo Horizonte (MG), pela PANPBL (Associação de Aprendizagem Baseada em Problemas e Metodologias Ativas de Aprendizagem), um painel multidisciplinar discutiu os impactos da inteligência artificial na educação.
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Entre os debatedores estavam Dora Kaufman, pesquisadora e professora da PUC São Paulo (Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital), especialista nos aspectos éticos e sociais da inteligência artificial, e Rejane Cantoni, artista e pesquisadora reconhecida internacionalmente por suas instalações interativas que unem arte, ciência e tecnologia. Ambas trouxeram perspectivas complementares sobre como a IA transforma não apenas as práticas educacionais, mas também a própria forma de pensar e criar.
A participação online ficou por conta de Paulo Blikstein, professor livre-docente e diretor do Centro Lemann de Estudos Brasileiros e da Iniciativa Paulo Freire na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Doutor em Ciências da Aprendizagem e mestre pelo MIT Media Lab, Blikstein também foi professor na Universidade de Stanford, onde desenvolveu pesquisas sobre inovação educacional, pensamento computacional e metodologias ativas.
A conversa abordou como a inteligência artificial está redefinindo a educação, ao mesmo tempo em que impõe dilemas éticos, criativos e metodológicos. Os participantes convergem na ideia de que o desafio central não é adotar tecnologia, mas garantir que ela fortaleça o protagonismo humano e o papel transformador da aprendizagem.
Educação precisa mudar a metodologia, não apenas adotar tecnologia
Dora enfatizou que a educação é imprescindível para o desenvolvimento nacional e que a inteligência artificial ocupa papel central em estratégias globais, especialmente nas políticas educacionais de países asiáticos como a China. Segundo ela, o futuro da educação depende da capacidade de repensar as metodologias de aprendizagem, e não apenas de incorporar novas ferramentas.
“As mudanças que estão acontecendo não são apenas tecnológicas, e muito menos restritas à inteligência artificial. Muitos dos desafios atuais já estavam colocados pela chegada das tecnologias digitais: levar a tecnologia para a sala de aula sem mudar a metodologia.”
Dora enfatizou que a educação é essencial para o desenvolvimento nacional e que a inteligência artificial ocupa papel central em estratégias globais, especialmente nas políticas educacionais de países asiáticos como a China. Segundo ela, o futuro da educação depende da capacidade de repensar as metodologias de aprendizagem, e não apenas de incorporar novas ferramentas.
“Ainda estamos aprisionados em um modelo educacional passivo, em que o professor transmite e o aluno apenas memoriza.”
Ela alertou que, assim como ocorreu com outras tecnologias digitais, a IA tende a ampliar desigualdades já existentes, principalmente pela falta de conectividade e pela complexidade técnica. “É impossível ter acesso à inteligência artificial se não há uma boa conexão com a internet. E isso ainda é um problema grave no Brasil, inclusive nas capitais.”
Só com a prática o professor vai descobrir os benefícios da tecnologia e entender como usá-la de forma positiva
Para Dora, o enfrentamento dessa desigualdade passa pela formação e experimentação docente. “Só com a prática o professor vai descobrir os benefícios da tecnologia e entender como usá-la de forma positiva em sala de aula.” Não é preciso ser programador, explicou, mas compreender a lógica da IA, assim como quem dirige um carro entende seu funcionamento básico.
Ela defende que o desafio é maximizar os benefícios e mitigar os riscos, o que exige políticas públicas sólidas e formação docente contínua. Dora citou como exemplo a rede estadual do Piauí, que oferece cursos para que professores de diferentes áreas possam se apropriar da inteligência artificial e integrá-la de forma significativa às suas práticas pedagógicas. “A transformação na educação depende da formação contínua dos professores. Se os educadores não estiverem preparados para mudar a metodologia, não há como alterar a educação.”

A arte como laboratório para o futuro da educação
Em linha com o propósito do evento, centrado nas metodologias ativas, a artista Rejane Cantoni explicou que sua prática é guiada pelo princípio do “aprender fazendo”: cada obra nasce de uma ideia, um problema e da busca por soluções, às vezes já existentes, às vezes inventadas. Como trabalha com arte pública e interativa, explicou que precisa compreender como as pessoas pensam, se comportam, e tomam decisões, o que aproxima sua prática das metodologias ativas de aprendizagem, baseadas em experimentação e construção coletiva.
A fala da artista foi precedida por uma provocação do mediador, Paulo Emílio Andrade, presidente do Instituto iungo, que relacionou o processo criativo na arte ao que se busca nas metodologias ativas de aprendizagem: um olhar investigativo e colaborativo sobre o mundo. Ele destacou que o artista, assim como o educador inovador, não apenas identifica problemas, mas atua ativamente na construção de soluções, cultivando a criatividade, competência importante que a escola precisa desenvolver.
Rejane respondeu lembrando que nunca parte da tecnologia, mas do problema, e é a partir dele que se desenha a solução. “Eu não começo pela ferramenta; começo pela pergunta”, contou. Essa postura, que coloca o ser humano como autor e não refém da tecnologia, nasceu de sua própria trajetória artística.
Ela relembrou seu início no jornalismo, motivado pela paixão pela poesia concreta, e o momento em que percebeu que pensava por imagens, e não por palavras. Ao comprar sua primeira câmera Super 8, descobriu um modo novo de traduzir ideias. “Quando olhei para a tela e vi o conteúdo do meu cérebro projetado fora de mim, tudo mudou. Entendi que aquela máquina tinha a capacidade de dar corpo às minhas ideias.”
As ferramentas têm a capacidade de expandir nossa percepção e a forma como trocamos informações com o mundo.
Migrou do cinema para a computação gráfica e a realidade virtual, ao perceber que essas ferramentas redesenham os limites da expressão humana. “As ferramentas têm a capacidade de expandir nossa percepção e a forma como trocamos informações com o mundo. A IA é uma dessas tecnologias. Ela amplia nossa relação com o universo.”
Essa perspectiva conecta sua arte às metodologias ativas de ensino, que propõem justamente aprender por meio da investigação e da experimentação. “O artista e o educador compartilham a mesma aventura”, disse. “Ambos olham para o mundo e perguntam: como posso transformar essa realidade?”
Rejane também relembrou experiências do MIT Media Lab, nos Estados Unidos, que nos anos 1980 desenvolveu projetos de educação ativa no Brasil em parceria com a Fundação Bradesco. Um deles envolveu adolescentes que, em vez de apenas ouvir o professor, identificaram um problema e construíram um ônibus com as próprias mãos. “Foi assim que aprendi que o papel do educador e do artista é criar condições para que o outro descubra e invente.”
À medida que nossa realidade se torna comunicável, ideias poderão ser trocadas sem a interferência das palavras.
Na sequência, apresentou as reflexões do músico e cientista Jaron Lanier, considerado o pai da realidade virtual, que propôs a ideia de uma comunicação pós-simbólica, um futuro em que pessoas poderiam compartilhar ideias diretamente, sem depender de palavras, criando mundos virtuais compartilhados em tempo real. “À medida que nossa realidade se torna comunicável, ideias poderão ser trocadas sem a interferência das palavras”, destacou Rejane ao citar o pesquisador.
Essa visão, segundo ela, antecipa o impacto da inteligência artificial e das interfaces digitais no modo como aprendemos e nos comunicamos. Se antes era preciso dominar códigos e linguagens para programar, hoje estamos cada vez mais próximos de uma relação direta e intuitiva com as máquinas, em que o humano cria, modela e aprende em fluxo contínuo.
“Se tivermos uma tecnologia capaz de transferir pensamentos e experiências diretamente, o que vira a educação?”, provocou. Para Rejane, arte e educação se unem na criação de novas linguagens. A arte interativa funciona como um laboratório de aprendizagem, onde prática, emoção e conhecimento se encontram. Diante das possibilidades trazidas pela inteligência artificial, ela propõe que educadores e artistas repensem o ensino e a aprendizagem em um mundo onde as ideias podem ser trocadas em tempo real.
Quem controla a tecnologia controla o futuro da educação
Paulo trouxe uma reflexão crítica sobre o papel da inteligência artificial na educação, e destacou que sua implementação deve ser feita com propósito, planejamento e supervisão constante.
Logo de início, ele alertou que a tecnologia não é neutra. “Hoje, a tecnologia não é mais feita por pequenas empresas artesanais. Ela é dominada por gigantes corporativos.” Paulo lembrou que empresas como a NVIDIA (empresa dos EUA, fabricante de chips gráficos e processadores usados para treinar sistemas de inteligência artificial), avaliada em mais de US$ 5 trilhões (R$ 27 trilhões), concentram o poder econômico e tecnológico global. Por isso, afirmou, é impossível discutir o uso de IA na educação sem considerar quem controla a tecnologia, quem decide seu uso e onde os dados são armazenados. “Não podemos nos dar ao luxo de ser ingênuos. Quando uma empresa oferece algo de graça para as escolas públicas, é preciso perguntar: o que está em jogo?”
Antes de abordar suas pesquisas mais recentes, Paulo comentou o projeto com uma escola em Hong Kong, onde, há mais de cinco anos, é consultor no desenvolvimento de programas de ciência da computação, cultura maker e, mais recentemente, inteligência artificial. Segundo ele, o uso de tecnologia educacional precisa ser profissional e cuidadoso, considerando seus altos custos e a complexidade de manutenção e formação docente. “A tecnologia é cara de comprar, de manter, e de capacitar professores. Por isso, não dá para simplesmente jogar um monte de aparelhos na escola e ver o que fica. É preciso propósito.”
Blikstein destacou que muitos tecnólogos cometem o erro de reduzir a educação à transmissão de conteúdo, ignorando que educar significa olhar para o desenvolvimento integral do estudante, algo que a tecnologia, sozinha, não consegue reproduzir. “Educação é formar caráter, aprender a trabalhar em grupo, comunicar-se, desenvolver empatia e autorregulação, dimensões humanas que a tecnologia, sozinha, não consegue reproduzir.”
A ironia, segundo ele, é que a IA, anunciada como a chave para revolucionar a educação, corre o risco de torná-la ainda mais tradicional. O perigo está em delegar à tecnologia justamente a parte mais barata e mecanizável do ensino, a transmissão de conteúdo, enquanto os aspectos mais humanos e criativos são deixados de lado.
“Se plataformas comerciais passarem a controlar os sistemas públicos, a eficiência algorítmica pode empobrecer a experiência do aluno e reforçar métodos passivos, sob o disfarce da inovação tecnológica.”
Apesar das críticas, Paulo ressaltou o potencial criativo da IA, capaz de ampliar a imaginação e a expressão dos estudantes. “A IA pode expandir a criatividade das crianças, ajudá-las a investigar o que desperta sua paixão e aprender o que antes era impossível. Mas tudo depende de quem está no controle dessa mídia.”
Ele também compartilhou experiências concretas de inovação educacional. Em Hong Kong, sua equipe vem transformando professores em pesquisadores de suas próprias práticas, estimulando o registro e a análise das aulas para melhoria contínua. “A escola publica um journal interno e realiza conferências formativas. O professor virou um pesquisador em ação.” No Brasil, o pesquisador colabora com Sobral (CE), em um programa de ciências baseado em aprendizagem ativa e construcionismo, que integra tecnologia de forma intencional e interdisciplinar ao currículo.
Tecnologia sem propósito vira brinquedo caro e ineficiente.
“As ferramentas só fazem sentido quando têm um papel pedagógico claro. Tecnologia sem propósito vira brinquedo caro e ineficiente.”
Paulo também criticou o discurso de que a IA “libertará” o professor de tarefas repetitivas. “Nunca na história do capitalismo o tempo ganho por produtividade foi devolvido ao trabalhador”, alertou. “É ilusório achar que, se a IA corrigir provas e planejar aulas, o professor terá mais tempo para o aluno. Esse tempo será apropriado pelos sistemas e gestores.”
Para ele, a introdução da IA não pode retirar do docente as partes criativas e intelectuais do trabalho, como planejar, avaliar e dar feedback (retorno avaliativo) ao estudante. “Quando o professor deixa de fazer isso e entrega para uma máquina que ele nem entende, perde o controle sobre o próprio ofício.” Ele concluiu a ideia reforçando que o debate sobre o uso da inteligência artificial nas escolas não é apenas técnico, mas político e ético. “Não é a tecnologia que define o futuro da educação. É quem a controla.”
Não é a tecnologia que define o futuro da educação. É quem a controla.
Ao final, defendeu que a IA deve ser vista como parceira ética e criativa, que apoia, mas não substitui o professor. “Eu mesmo uso IA no meu trabalho, mas sempre supervisionando o resultado. O problema é quando essa supervisão passa a ser vista como um luxo. Sem ela, perdemos o controle da qualidade e da integridade do que é ensinado.” Paulo considera que o desafio central é garantir que educadores e pesquisadores liderem as decisões sobre o uso da IA, assegurando que a tecnologia sirva à aprendizagem, à equidade e à criatividade humana, e não apenas a lucro corporativo.





