A proposta de Harvard para uma educação para compreensão
Conheça a metodologia que pretende preparar o educador para lidar com o ensino analiticamente e desenvolver novas abordagens para planejar a aula
por Claudio Sassaki 30 de julho de 2018
O que constitui uma experiência de aprendizagem eficaz e poderosa, capaz de preparar o aluno para as competências do século 21? Como encorajamos os estudantes a se apaixonarem pelo aprendizado? As perguntas, que parecem ser um questionamento recente, norteiam há 50 anos o Project Zero – iniciativa do filósofo Nelson Goodman, na Universidade de Harvard (EUA). Desafiado pelo propósito de construir na Geekie um projeto pedagógico ainda mais dinâmico, interativo e personalizado, estive em Harvard no início de 2017 para uma imersão com o psicólogo cognitivo e educacional Howard Gardner, cientista das inteligências múltiplas e diretor-sênior do Project Zero. Durante a minha estada, discutimos o fato de o processo educativo – sobretudo, o mais adotado no Brasil – comumente não incentivar os alunos a pensarem e construírem um aprendizado perene. Acredito que saber fazer uma prova é importante e não devemos menosprezar a capacitação adquirida pelo aluno no ambiente escolar, sobretudo por ser essencial ao desempenho do estudante em exames como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e vestibulares. Entretanto, o conhecimento – levado da escola para a vida – é fundamental. Na essência, ancorar o conhecimento adquirido na escola com a vivência prática.
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– O que acontece quando o professor dá chance às metodologias ativas
– Guia Educação Mão na Massa do Porvir
– Como é a aprendizagem baseada em projetos
As metodologias do Project Zero são inspiradoras. Com um grupo multidisciplinar, Gardner – que está à frente da iniciativa há 30 anos – pesquisa os processos de aprendizagem na busca de criar formas mais abrangentes e efetivas de educação. Como resultado, as metodologias desenvolvidas relacionam inteligências, compreensão e ensino – o ensino para a compreensão. Quem compreende pode pensar, agir e sentir a partir do que assimilou. Abraçando as individualidades do estudante, podemos alcançar aprendizados significativos e contribuir para a formação de um cidadão preparado para os desafios do presente. A experiência foi tão enriquecedora que voltei dos Estados Unidos motivado a disseminar esse aprendizado – e esse desafio – nas escolas parceiras. No final do ano passado, alguns colaboradores da Geekie participaram do Project Zero Classroom, modalidade do curso que traz vários frameworks (arcabouços) e ferramentas para a construção de um projeto de ensino mais significativo.
A proposta do Project Zero é preparar o educador para lidar com o ensino analiticamente, desenvolvendo novas abordagens para planejar a aula. No modelo tradicional, o professor pensa a aula com base em critérios mais convenientes ou de acordo com roteiros estabelecidos pelo livro. Dentro do conceito de pensar um design para a aula, o professor assume a lógica de priorizar a melhor experiência de aprendizagem para o aluno, ou seja, ele começa a pensar a aula, analisando quais são os objetivos de aprendizagem que deseja atingir. Estou falando do teaching for the understanding (ensinar para compreensão), que tem por alicerce o nível de aprendizado que se espera que o aluno tenha. Para isso, o professor precisa ter os objetivos de aprendizagem claramente definidos; a partir da definição clara, passa a pensar em qual será a melhor experiência de aprendizagem para o pleno entendimento do conteúdo por parte do aluno.
No Project Zero, o professor explora maneiras de aprofundar o envolvimento do aluno; encorajar os estudantes a pensar de forma crítica e criativa; e tornar o aprendizado e o pensamento visíveis. Ao pensar a experiência de aprendizagem há uma intencionalidade do professor. O novo modelo da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), por exemplo, traz um pouco dessa essência ao demandar que o aluno desenvolva habilidades de agir a partir do conhecimento adquirido. No entanto, defendo que esse aprendizado é impossível se o aluno está sentado, copiando. Para aprender é preciso ação prática. Nessa seara é significativo pensar em metodologias ativas para desenvolver habilidades de agir a partir do conteúdo adquirido como, por exemplo, a habilidade de identificar diferentes ecossistemas, analisar gráficos e comparar contextos históricos.
No cerne do conteúdo do Project Zero – que lança um olhar para o futuro da escola –, exploramos maneiras de aprofundar o envolvimento do aluno; despertar um desejo de pensar de forma crítica e criativa; e de tornar o aprendizado uma jornada de personalização. Esse caminho passa pela definição da melhor experiência de aprendizagem, que auxilia o professor a tornar visível o nível de conhecimento do aluno em determinado conteúdo; essa experiência cria engajamento, compreensão e independência. Esses são três pilares essenciais, porque o estudante realmente engajado, entende o professor e adquire autonomia. E, na minha experiência, a maioria dos alunos sentados e copiando – em um processo passivo de aprendizagem – não adquirem esse nível de compreensão. A proposta é tornar visível para o professor, em tempo real, se o aluno está aprendendo ou não. A forma tradicional só mostra a evidência desse suposto aprendizado na prova. Ao tangibilizar o nível de profundidade desse aprendizado, no momento em que o conteúdo é passado, o professor pode corrigir rotas, fazer ajustes com base em evidências e feedbacks (retornos avaliativos) reais. Nessa lógica, podemos trabalhar de forma individual e personalizada. Um dado relevante é que, na sala de aula do Project Zero, os educadores se tornam aprendizes que conduzem a própria curiosidade e o intelecto; exercitam a investigação interdisciplinar e colaborativa; e avaliam as dimensões éticas e estéticas da aprendizagem.
O direcionamento transversal do Project Zero defende que entender é um domínio aprofundado e conectado com a prática; com a capacidade de o aluno traçar relações com outros conhecimentos. Acredito ser relevante a leitura de dois livros que aprofundam esse conceito – “Making Thinking Visible” (Ron Richard, Mark Church and Karin Morrison) e “Teaching for Understanding Guide” (Tina Blythe and Associates). Essas são obras recomendadas pelos especialistas no Project Zero exatamente por nos trazerem uma real dimensão dessa transformação no mindset do professor. Ensinar para compreender não é nada trivial.
Segundo Tina Blythe, diretora do programa, a visão de desempenho da compreensão é consonante com o senso comum e com fontes da ciência cognitiva contemporânea. Na prática, a perspectiva de desempenho defende que compreender é uma questão de ser capaz de fazer uma variedade de coisas instigantes com um tópico: explicar, encontrar evidências e exemplos, generalizar, aplicar, analisar e representar esse tópico de diferentes maneiras. Em “The Teaching for Understanding Guide”, Tina define que os frameworks são importantes para ajudar a criar um conjunto equilibrado de metas de compreensão que abordará diferentes aspectos de um tópico de determinada disciplina. Para criar essa esquematização, o educador tem que atuar com quatro dimensões do entendimento: conhecimento (conteúdo), métodos, propósitos e formulários (comunicação). Em conhecimento, o professor tem que fomentar o questionamento sobre até que ponto ele compreendeu, em profundidade, o conteúdo compartilhado. Em métodos, o professor deve selecionar as estratégias e técnicas, tendo por inspiração as usadas por especialistas disciplinares (como historiadores, por exemplo) que se propõem a solucionar um problema – não estamos falando de métodos pedagógicos usados para os alunos, sim como o professor vai definir o próprio método –; em propósito, o motivo pelo qual o estudo do tópico é importante. Em formulários, a dimensão da comunicação, ou seja, como cada disciplina é comunicada ao público-alvo (tabelas e gráficos, por exemplo, no caso da matemática). O cerne da questão aqui é como o professor desenha o próprio processo de aprender – antes que ele possa ensinar; uma análise do ensino para a compreensão em ação.
A questão central é que na metodologia do Project Zero a atuação do professor não está focada na transmissão pura, mas do ensino com objetivos a serem atingidos – e claramente norteados pela compreensão. As evidências da compreensão do conteúdo possibilitam ao professor atingir o real conceito de personalização/diferenciação; o professor precisa saber se foi bem compreendido e se a metodologia que está usando está atingindo o objetivo. É importante notar que existe um protagonismo muito grande – tanto por parte do aluno, quanto por parte do professor. Há um diálogo permanente. Essa postura chega a ser uma novidade no ensino no Brasil; estamos acostumados a dar feedbacks aos alunos – não a receber. No entanto, dentro de uma ótica de que o professor deve ser o mediador do conhecimento, faz todo o sentido que ele receba algum tipo de avaliação vinda do aluno: o seu principal interlocutor. O questionamento de até que ponto o conteúdo foi assimilado de forma perene deve ser constante. Neste sentido, volto à questão de tornar o pensamento do aluno visível para o professor; somente dessa forma é possível introduzir o conceito de diferenciação. Ou seja, qual o nível de profundidade do conteúdo, de acordo com o que faz sentido para o próprio aluno. Ter feedback é crítico para que se possa tratar alunos de forma diferenciada e personalizada.
Metodologias inovadoras dentro da sala de aula
Uma metodologia bastante pertinente ao cenário das escolas brasileiras – e adaptada a partir das metodologias pelo Project Zero – é o “Pensar, Ouvir e Debater”. Nela, o centro são discussões de temas que costumam gerar posicionamentos bilaterais. A partir de uma pergunta, os alunos são encorajados a pensar, tomar nota dos argumentos a partir de uma reflexão individual; o professor pode fornecer textos-base para dar alicerce às opiniões. A segunda etapa, ouvir, é feita depois da reflexão individual; o momento é de criar dois círculos concêntricos na sala de aula, no qual cada um terá um argumento contrário ao outro. Em rodadas de dois minutos, um membro do círculo – de frente para o outro – vai expor os argumentos enquanto o interlocutor somente escutará. Na sequência, troca-se o papel de ouvinte. Em debater, após o processo de escuta na roda, a turma é convidada a se dividir em dois grupos – de acordo com a conclusão individual e agrupando-se em posicionamentos – para falar sobre as conclusões. Membros de cada grupo, eleitos pelos demais, farão a apresentação das conclusões e argumentos para a sala. Finalizado o debate, a turma se reúne para as conclusões.
Outra metodologia, já disseminada por diversas fontes e, na minha opinião, uma das mais brilhantes entre as metodologias ativas é a de rotações por estação. Ela consiste em montar equipes, por exemplo, de acordo com o nível de profundidade que o aluno tem sobre determinado assunto. Mas, vale ressaltar, que essa não é uma regra – é, antes, uma das possibilidades! A decisão do professor deve ser baseada em dados e evidências sobre esse conhecimento do aluno. No primeiro grupo, dentro da divisão por nível de profundidade, o professor mediará os alunos com mais dificuldade no tema; no segundo, os alunos que estão mais familiarizados com o tema e que devem se aprofundar via textos ou conteúdos como vídeos; no terceiro, os alunos que conhecem o conteúdo e têm a oportunidade, em grupo, de realizarem alguma atividade ou trabalho que demande a colaboração. Os grupos podem rotacionar e a dinâmica pode acontecer em uma aula ou em uma sequência de várias – dependendo do conteúdo, do nível de aprofundamento dos alunos e do interesse do professor no tema. A proposta é que, ao final da dinâmica, todos os alunos atinjam o nível de compreensão esperado – e alguns consigam ir além. A cada abordagem de temas diferentes, os alunos estarão em grupos diferentes.
É muito importante ressaltar que a proposta do Project Zero é usar metodologia adequada para o objetivo que se quer atingir; adequada ao objetivo de aprendizagem. O desafio proposto é mudar o mindset (mentalidade); repensar a forma de redesenhar a escola e a forma de ensinar. Convido cada educador a buscar conteúdos sobre o Project Zero (www.pz.harvard.edu) e a se aventurar nessa jornada de repensar a educação no Brasil.
Claudio Sassaki
É mestre em Educação pela Universidade de Stanford (EUA) e cofundador da Geekie, empresa referência em educação com apoio de inovação no Brasil e no mundo