Como enxergar ambientes da escola e da cidade como espaços educativos
Usar kits alfabetizadores em diferentes ambientes e promover experiências socioculturais de linguagem em praças e parques fortalecem o desenvolvimento integral
por Maria Victória Oliveira 15 de abril de 2022
Por mais que a escola seja um sinônimo de aprendizagem e estudo, adquirir conhecimento não é um processo que ‘liga e desliga’ quando o aluno entra na sala de aula. O aprendizado pode acontecer no pátio em contato com funcionários, educadores e colegas, no refeitório, na horta, no portão, na secretaria, nos corredores e diversos outros espaços fora da escola. Quem não se animava quando o professor anunciava uma excursão, por exemplo?
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Sair da sala de aula pode ser uma estratégia interessante, uma vez que, no caso de crianças em período de alfabetização, é necessário diversificar estímulos para despertar atenção e interesse e, com isso, engajá-las no processo de letramento, como abordado nesta reportagem.
“A alfabetização se caracteriza por dois processos: o alfabetizar e o letrar, que são processos distintos, mas indissociáveis”, como coloca Magda Soares, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Dessa forma, é preciso oportunizar aos estudantes práticas sociais que envolvam a leitura e a escrita, de forma que o alfabetizar tenha sentido e a criança consiga compreender sua função social”, explica Jucélia do Rocio, coordenadora pedagógica da escola Grande Aprendiz, de Curitiba (PR).
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Uma ferramenta, múltiplos estímulos
Para Ana Karine Chiquim, coordenadora pedagógica da Brink Mobil, uma das formas de promover esse aprendizado com sentido é a partir dos chamados kits alfabetizadores, formados por diversos recursos pedagógicos. Além de oferecer múltiplas possibilidades de aprendizagem, podem ser transportados para diferentes espaços, mudando o cenário do processo de ensino e aprendizagem das crianças.
Entre os recursos que compõem um kit, estão:
– Quadro de palavras: possibilita colocar o nome das crianças para a chamada diária, ou uma pesquisa de palavras;
– Calendário: marca a passagem do tempo, os dias da semana, o clima;
– Quadro de aniversariantes: ajuda que as crianças compreendam a quantidade de meses, o mês que cada uma faz aniversário;
– Alfabeto de parede: exposição das letras em caixa alta e baixa e em letra cursiva;
– Linha numérica: ajuda no trabalho com quantidades;
– Alfabeto concreto: alunos podem manipular as letras;
– Cantinho da leitura: organiza os livros que ficam fixos na sala de aula;
– Baú de rodinhas: biblioteca itinerante que pode ser transportada para diferentes espaços e ambientes da escola;
– Outras ferramentas, como jogos, mapa mundi e mapa do Brasil, teatro de fantoches.
Jucélia explica que, nesse caso, a estratégia dos laboratórios se encaixa em uma perspectiva de multiletramento, que busca desenvolver a multiculturalidade e multimodalidade textual. Ou seja, a diversidade de recursos contempla estímulos em diferentes formatos de textos e plataformas, com recursos digitais, por exemplo, como pesquisas, produção de áudios, vídeos, podcasts, publicação em redes sociais, entre outros.
Além da sala de aula
Biblioteca, quadra, corredor, sala de recursos. Qualquer espaço disponível no contexto escolar pode virar uma nova sala de aula a partir da perspectiva de kit alfabetizador. Entretanto, Karine chama atenção para a importância da intencionalidade pedagógica.
“É necessário ter todo um planejamento prévio do professor para que esse trabalho aconteça. Quando ele for montar um espaço, precisa ter bem definido quais recursos e materiais vai utilizar, quanto tempo tem disponível e quais grupos irão participar. Para trabalhar letramento e alfabetização, é sempre interessante pensar na diversidade de linguagem no ambiente e também na intencionalidade”, explica a coordenadora.
Com uma multiplicidade de recursos à disposição, Karine explica que cada criança poderá desenvolver atividades de acordo com seus interesses. Essas vivências em outros espaços permite aos educadores novas percepções sobre o estágio e desenvolvimento dos alunos.
“Propor atividades em diferentes espaços deve ser uma prática constante da escola como um todo. Fora da sala de aula, o professor pode ter uma observação muito mais ampla do viés pedagógico. Ele pode perceber em que ponto de desenvolvimento a criança está, quais são as estratégias de aprendizagem que ela utiliza naquele espaço e contexto, como ela se relaciona com seus pares e com o material disponível”, exemplifica.
Além da opção de transportar o kit alfabetizador, também é possível aproveitar diferentes formatos de textos de acordo com as características de cada espaço. Ao afirmar que todos os espaços devem ser explorados, já que a interação entre pares proporciona situações de letramento, Jucélia cita exemplos como atividades de culinária na cozinha, usando textos em formato de receita.
“Em uma atividade com horta, pode-se elaborar placas informativas sobre o cuidado com o espaço, uma prática voltada para a leitura e a escrita que está associada ao cuidado com o meio ambiente. Nessa mesma linha, pode-se usar o pátio, a biblioteca, o laboratório de informática, o refeitório. Todos os espaços, se utilizados com criatividade, oportunizam situações de aprendizagem.”
Fora dos muros da escola
Muitas correntes e especialistas defendem a importância de momentos fora dos muros da escola em uma perspectiva de cidade/território educador, ou seja, a crença de que o entorno da escola, com seus moradores, organizações, instituições, praças, parques e outros espaços também têm grande potencial de ensinar crianças e jovens.
“Eu acredito que é fundamental que qualquer pedagogo, professor e instituição de ensino compreenda a importância de ir além dos muros, ou seja, de levar o potencial de aprendizagem para fora da escola. Com isso, o bairro passa a ser visto como um grande laboratório de experiências educativas, com a escola enquanto elemento mobilizador a partir do momento que cria uma rede cidadã pronta para trocar conhecimentos, ensinar e também aprender”, explica Karine.
Jucélia completa ao defender que é no entorno que as crianças podem desenvolver uma aprendizagem completa, vivenciando a prática social da leitura e da escrita quando inseridas em seu contexto sociocultural. “O entorno é rico e deve ser utilizado como uma extensão da escola, de forma que as crianças se apropriem dos espaços e se relacionem com o meio.”
Quais espaços podem ser explorados?
– Praças: locais que possibilitam trocas e interação social a partir de contação de histórias, exposição de trabalhos, distribuição de panfletos desenvolvidos pelos estudantes para conscientização, trabalho com placas de sinalização.
– Mercados: pesquisas de preço, compras a partir de listas, trabalho com situações problemas.
– Passeios no entorno: estudo de aspectos culturais e geográficos sobre o meio que as crianças vivem.
Quais atividades podem ser desenvolvidas?
Um exemplo de atividade é a observação das estações em parques e praças próximas à escola. As crianças podem coletar elementos da natureza e, na escola, estudá-los, catalogá-los e fazer um acervo natural, indica Karine.
“Na perspectiva pedagógica, pode-se fazer um aprofundamento e criar um portfólio de elementos naturais, pesquisando a fundo a origem daquela determinada semente, por exemplo, sua nomenclatura adequada. As crianças podem fazer registros espontâneos, da forma como compreendem a escrita nesse momento.”
Observar a função social da escrita durante essas vivências também é um ponto de destaque. A leitura de textos de múltiplos formatos, como as imagens nas placas de sinalização, também são suportes importantes durante o processo de letramento e alfabetização.
Karine pontua ainda a potência da interação dos estudantes com as pessoas que estão no entorno. Ela recorda que, em uma proposta fora da escola, uma senhora ajudou os estudantes a entenderem, de forma poética, o que é a seiva da árvore.
“A senhora se disponibilizou a conversar com as crianças, que praticamente fizeram uma entrevista com ela. Tenho certeza que elas nunca vão esquecer a forma como a seiva foi contextualizada. Ela disse que o líquido – uma gosminha, como falou uma aluna –, era como se fosse a idade da árvore, que só solta depois que tem bastante idade, assim como ela mesma, que já era velhinha. Eu achei aquilo tão poético e verdadeiro ao mesmo tempo. Dentro da escola, não conseguiríamos ter essa experiência. A diversidade cultural que a cidade proporciona é fundamental para o desenvolvimento das crianças.”