A arte das metodologias ativas - PORVIR
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Inovações em Educação

A arte das metodologias ativas

A vida que surge nas fendas dos improvisos, nos momentos de protagonismo dos alunos, rompe com a nossa sensação de controle, com a lógica tradicional de pensar as sonoridades das salas de aula

por Renata Salomone ilustração relógio 8 de dezembro de 2020

Dar aula a partir de uma abordagem ativa é como tocar jazz com os alunos. O palco é de todos. Ora formamos juntos os acordes que nos levam ao tema central. Ora trilhamos percursos que nos permitem improvisar, desterritorializar, nos entregar ao imprevisível, às múltiplas possibilidades narrativas que os encontros nos trazem. Mas em nenhum momento esquecemos o fio condutor, a estrutura do acorde. Improviso não significa despreparo ou desamparo. Ao contrário, para que possamos realizar nossas potências criadoras, precisamos de técnica, repertório e capacidade de fazer conexões.

No jazz como nas aulas com abordagem ativa, os momentos de improviso, de desterritorialização, convidam o grupo a se colocar como base para que cada um componha seu solo e protagonize a cena, contando suas histórias. Nessa hora as subjetividades emergem, apontando caminhos emancipatórios. Não há nada mais bonito do que ver os espaços abertos para ouvir as sonoridades daqueles que se escondiam na última fila, debaixo do capuz do casaco. E, aos poucos, os que se empoderam, através do exercício do direito de se fazer ouvir, vão percebendo que não há protagonismo possível sem escuta. Não à toa, há uma expressão no jazz conhecida como “big ears” (orelhas grandes): os grandes músicos precisam saber fazer o som e o silêncio acontecerem juntos. Para solar, é preciso ouvir a base e saber o momento de retornar a palavra ao grupo. São habilidades que só se constroem na prática, de forma ativa, em processos que valorizam a construção coletiva.

“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”
Friedrich Nietzsche

Gilles Deleuze, filósofo francês, nos ajuda nessa reflexão com seu conceito de ritornelo, que se constitui através de três ênfases que se interpenetram: territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Nas aulas com abordagens ativas, como no jazz, passamos pelas três ênfases. Precisamos primeiro delimitar entre as infinitas combinações possíveis de objetivos de aprendizagens, avaliações, conceitos, habilidades e metodologias (ou entre harmonias, timbres, ritmos, acordes…) um lugar para chamar de território. Cada participante é também referência qualitativa para a sua construção. Estão formadas as bases para os nossos saltos.

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Somos então lançados à desterritorialização, onde as delícias e também as dores do insondável nos são ofertadas. Os músicos fazem seus solos. Os estudantes protagonizam seus processos de aprendizagem. São enunciadas suas referências, suas construções identitárias, suas memórias, tradições, culturas e histórias. Improvisamos, agenciamos, compomos, solamos, ressoamos e tornamo-nos alquimistas, modificando a cada instante a obra, a aula, as sonoridades, os planos e a nós mesmos. Como nos contou Deleuze: “improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele”. A potência da expansão acontece.

Por vezes, os momentos de desterritorizalização nos trazem a sensação de caos. Mas devemos lembrar que Khaos deriva do verbo Khaíno ou sua variante khásko (abrir-se, entreabrir-se),  evocando a ideia de cissura. Assim, a aparência de confusão e desordem é substituída por uma ideia de ruptura, de fenda, de espaço vazio primordial. Na mitologia grega, Caos foi considerado por Hesíodo o mais velho dos Deuses, a primeira divindade a surgir no universo, cumprindo um papel fundamental de manifestação da vida por meio da cisão dos elementos.

A vida que surge nas fendas dos improvisos, nos momentos de protagonismo dos alunos, rompe com a nossa sensação de controle, com a lógica tradicional de pensar as sonoridades das salas de aula. Acostumamo-nos ao retilíneo das carteiras enfileiradas, ao controle disciplinar dos corpos, ao professor-maestro de orquestra clássica, com enredo pré-moldado de participação, métricas bem delineadas e pouco espaço para o imprevisível e para os desvios.  Nesse modelo, centrado no maestro, as informações são vistas como fontes de poder, por isso, aumentam a necessidade de submissão e se estabelecem através de sistemas de performances individuais e competitivas, diminuindo as possibilidades de colaboração e interação lateral.

A ideia de aula como “jam session” (reunião de músicos para tocar e improvisar) nos traz o imponderável, nos tira da zona de conforto, desestabiliza a mente alicerçada pela soberania da forma e abre uma fenda nas estruturas verticalizadas de poder. Essa fenda é um convite para nos abrirmos para as contingências, compreendendo que os processos educativos também se fundam nelas. Os grandes mestres não precisam controlar tudo, saber todas as respostas, mas deve saber como navegar na complexidade e criar o campo para estimular a liberdade criativa e o protagonismo.

Chega então a hora da terceira ênfase do ritornelo: hora de voltarmos pra sala, pra casa, pro território comum, pro tema inaugural. Mas o lugar ao qual se volta já não é o mesmo. Nós e ele mudamos. Aqui acontece o processo de reterritorialização. Um retorno ao território que se estabelece na diferença, na ressignificação. Quando saímos de uma experiência ativa, de uma momento de improviso, expandimos e nos transformamos. Como nos contou Heráclito, em uma das suas citações mais conhecidas: “Nenhum homem toma banho duas vezes no mesmo rio, pois, quando volta a ele, nem o rio é o mesmo nem mais o homem o é”.

E, nesse processo de reterritorialização, chego ao final desse texto querendo sair do jazz pra falar do samba, da capoeira, do batuque, dos espaços labirínticos que fazem do nosso território terreno fértil para as aprendizagens ativas. Elas combinam com nosso gingado.

Mas ainda precisamos tropicalizá-las.

Criemos nossos próprios parangolés, balangandans e paranauês a partir delas.

Aulas são obras de arte.


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