A fotografia como suporte para o debate racial na escola
Experiência em escola pública de Porto Alegre (RS) coloca os estudantes no centro das imagens para revelar suas percepções sobre a valorização da cultura negra
por Lucas da Silva Ferreira 5 de junho de 2023
Sou negro, professor de geografia da EMEF Campos do Cristal, em Porto Alegre (RS). Também fui aluno da rede pública do município. Quando criança e adolescente, senti bastante falta de aulas e de materiais que valorizassem a cultura, a riqueza e as conquistas do povo negro. E vejo que meus estudantes passam por questões parecidas.
A possibilidade de ser educador e parceiro da minha turma me inspira diariamente na profissão. Como fortalecer a nossa identidade? Como a ausência de pessoas pretas nas revistas e nos livros didáticos seguem impactando os alunos? Trabalhar questões ligadas à autoestima e ao autoconhecimento, bem como dar luz ao combate ao racismo e ao preconceito, inspiraram a proposta pedagógica “Negritude em versos e imagens”, que construí com o apoio da turma do 9º ano do ensino fundamental.
Ao final das minhas aulas tradicionais de geografia, passei a reservar alguns minutos para o debate racial. Nesses círculos de conversa, falamos sobre questões relacionadas ao respeito e ao espaço de fala do outro, e também sobre os problemas sociais mais vivenciados pela população negra, como discriminação e violência. Nossa escola está localizada em uma comunidade com pontos de vulnerabilidade e muitos alunos, preocupados com o futuro no ensino médio, tinham dificuldade de enxergar outro mundo além do entorno escolar.
Infelizmente, a visão restrita ao sofrimento (legítimo sim, porém limitado) enfrentado pelo povo negro ainda está enraizada na memória coletiva dos alunos e provavelmente da comunidade em que estão inseridos. Eu precisava olhar para a estima desses meninos e meninas. Desconstruir essa visão única foi um dos objetivos desse projeto. Por isso, o passo seguinte foi abordar a contribuição sócio-histórico-cultural dos povos afrodescendentes pelo mundo.
Em uma segunda etapa, estimulei a pesquisa referente às contribuições negras para a sociedade. Os estudantes ficaram fascinados com as descobertas em diferentes áreas do conhecimento, principalmente na área científica. Assistimos a um trecho do filme “Estrelas Além do Tempo”, sobre uma equipe de cientistas da NASA (Agência Espacial Americana), formada por mulheres afro-americanas, e conversamos sobre o mural da escola que reúne fotos de cientistas negros.
Ali começava a ser desfeita a imagem de que ser negro está restrito ao sofrimento. Ser negro é luta que gera realizações. E, por meio de pesquisas na internet, os alunos passaram a se identificar em histórias que poderiam ser suas, como Arthur Zang (especialista em tecnologias da informação, que projetou e fabricou o primeiro tablet africano), Patricia Barth (inventora do tratamento à laser para catarata) e Anna McGowan (pesquisadora de aviões tão ágeis como os pássaros) e outras que estão expostas pelos corredores e também são debatidas por professores de outras disciplinas.
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Conversando com uma amiga, a professora de história Claudia Duarte, fui apresentado aos materiais do Projeto SoPapo Poético, um sarau afro-brasileiro realizado desde 2012 aqui em Porto Alegre pela Associação Negra de Cultura. O nome “SoPapo” é uma homenagem ao tambor que simboliza a identidade afro-gaúcha. Ela me emprestou dois livros: “Ponto Negro da Poesia” (Editora Errejota, 2015, esgotado) e “Pretessência” (Editora Libretos, 2016). Esse último reúne dezenove poetas, homens e mulheres, participantes frequentes do sarau. Resolvi levar os textos à sala de aula.
Nessa terceira fase do projeto, os estudantes deveriam analisar alguns desses poemas escritos por autores negros gaúchos. Teriam de refletir sobre o principal assunto tratado nos versos, apresentar a opinião do grupo sobre como essa questão é retratada e propor a representação desse poema por meio de fotografias. Como eu gosto muito de tirar fotos, propus a atividade para que pudéssemos expor algumas imagens na escola, no mês de novembro, no qual se celebra a Consciência Negra.
Como os poemas se tratavam exclusivamente das questões de negritude, era necessário convidar alunos negros da turma como modelos para essas fotos. Alguns hesitaram em aceitá-lo por se sentirem fora dos padrões estéticos pré-estabelecidos pela sociedade. Mais uma vez, notei a necessidade de debater mais a respeito, em uma conversa sobre as diferentes formas de beleza em contestação à ideologia da aparência perfeita e à conscientização da negação das próprias características raciais. Isso facilitou o acolhimento da proposta, pois na faixa etária da turma é comum que necessitem de reforços positivos.
A quarta etapa culminou com o ensaio fotográfico, realizado nas dependências da escola durante um turno inteiro, que consegui com o apoio dos colegas e da coordenação. Pensei em utilizar o celular como suporte principal para as fotos, mas a nossa diretora, Flavia Diniz, nos ofereceu uma câmera semiprofissional para os cliques.
Clique na foto abaixo e confira as imagens da exposição:
A sala de inovação foi o espaço escolhido como estúdio. Contamos com uma parede branca e a luz natural. Os estudantes vieram de roupas escuras, para dar o efeito cinza que eu buscava nas imagens, e trouxeram elementos da cultura e da religião afro-brasileira, como as guias. Usamos, também, um tambor disponível na escola.
Os modelos, inexperientes no ofício, estavam nervosos, mas nada prejudicou o resultado. As fotografias ficaram ótimas e se encaixaram perfeitamente no contexto dos poemas que retratavam.
Na aula seguinte, com mais de 200 imagens, fizemos a edição das fotos, confeccionadas em banners, com a inserção dos poemas correspondentes. Toda a turma apoiou nos bastidores do ensaio. Mesmo quem não esteve diretamente envolvido participou de atividades extras sobre o significado de racismo, xenofobia, preconceito e bullying.
O professor Lucas disponibilizou um arquivo com todas as fotos acompanhadas dos respectivos poemas
O que conquistamos?
Os resultados alcançados com as atividades desenvolvidas na proposta “Negritude em versos e imagens” vão além da exposição fotográfica. Foi uma proposta de grande importância para os alunos negros, que puderam ver um lado da história que muitas vezes não é valorizada. A elevação da autoestima gerada naqueles que se sentiam fora do padrão (imposto por uma sociedade que tem muito a aprender) já valeu todo o projeto. Os sorrisos, os olhares atentos e brilhantes diante das fotos expostas foram, de longe, os melhores resultados.
Sabemos que a escola é formadora por essência. Além da formação cidadã e da construção identitária, ela deve proporcionar a reflexão sobre a diversidade cultural e social do lugar onde está inserida. As adversidades, inerentes ao espaço que ocupa (por ser diverso) devem ser combatidas por meio do diálogo e com ações para uma real transformação. Essas foram as metas do projeto, para seguirmos na luta a fim de que preconceitos sejam rechaçados e estereótipos sejam desconstruídos.
Lucas da Silva Ferreira
Graduado em geografia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em pedagogia pela Uninter (Centro Universitário Internacional), pós-graduado em ensino lúdico pela Faculdade de Educação São Luís e em supervisão e orientação escolar pela Uninter. Atuo há mais de 10 anos na educação básica do estado do Rio Grande do Sul e atualmente integro a rede municipal de Porto Alegre.