Falar de alfabetização é falar de Emilia Ferreiro
Pedagoga e psicóloga argentina morreu aos 86 anos, três meses depois do relançamento da Rede Latino-Americana de Alfabetização, que fundou nos anos 1990
por Ana Luísa D'Maschio 27 de agosto de 2023
Em 5 de maio deste ano, quando Emilia Ferreiro completou 86 anos, viu renascer um de seus principais projetos: a Rede Latino-Americana de Alfabetização, que criou nos anos 1990. A proposta é reunir profissionais que acreditam na alfabetização inicial não como um treino de habilidades mecânicas, “mas sim como um processo de inserção das crianças na cultura do escrito, que acontece quando elas pensam, criam, compartilham ideias e descobrem sua capacidade de aprender.”
Emilia morreu neste sábado, 26 de agosto, no México, onde morava desde 1976, desde o exílio da ditadura argentina. “Ela partiu cheia de sonhos, acreditando na continuação dessa comunidade. Isso aumenta ainda mais o compromisso e a responsabilidade de manter seu legado”, diz Cybele Amado, especialista em educação, fundadora do Icep (Instituto Chapada de Educação e Pesquisa) e ex-diretora de formação docente e valorização da Secretaria de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação), que participou da live de relançamento da rede.
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“Nossa responsabilidade, que já era grande, com a partida da Emilia se tornou imensa: honrar o pensamento e os princípios da pessoa que mudou a nossa forma de olhar as crianças e de ver o mundo”, define Giovana Zen, professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e atual presidente da Rede Latino-Americana de Alfabetização.
Psicóloga e pedagoga argentina formada pela Universidade de Buenos Aires, Emilia Beatriz María Ferreiro Schavi fez doutorado na Universidade de Genebra (Suíça), sob orientação de Jean Piaget (1896-1980). Sua tese “Las relaciones temporales en el lenguaje del niño” (“Relações temporais na linguagem da criança”, em tradução livre) foi publicada na década de 1970.
Suas pesquisas levam à conclusão de que meninos e meninas têm papel ativo no aprendizado e constroem seu próprio conhecimento (como reforça o conceito de construtivismo, criado por Piaget no início dos anos 1920), e o aprendizado acontece por meio do professor mediador.
Ao longo da carreira, Emilia recebeu a Ordem Andrés Bello do governo da Venezuela e a Ordem Nacional do Mérito Educacional, do governo brasileiro, em 2001. Também colecionou títulos Honoris Causa de cinco universidades argentinas, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e da Universidade de Atenas, na Grécia. Em 1986, ganhou o Prêmio Konex, organizado pela Fundação Konex da Argentina, com o Diploma de Mérito por sua trajetória e suas contribuições na área da psicologia. Nos últimos anos, atuava como professora titular do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, na Cidade do México.
Emilia inverteu a lógica tradicional de educadores que se preocupavam com a aprendizagem apenas quando o aluno parecia não aprender, transferindo o foco da alfabetização para o sujeito que aprende. Suas conclusões inspiraram políticas públicas educacionais em diversos estados brasileiros, a partir dos anos 1980.
Por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. Essa criança que pensa não pode ser reduzida a um par de olhos, de ouvidos, e a uma mão que pega o lápis. Ela pensa no propósito da língua escrita. O processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende
Emilia Ferreiro, no livro “Reflexões sobre Alfabetização”
“Emilia nos ensinou que as crianças pensam sobre a escrita, sobre seus processos de aprender. Não são pessoas vazias de conhecimento, e sim capazes de construir com o apoio do professor”, diz Cybele. A educadora baiana se inspirou no legado de Emilia para criar o Instituto Chapada, que atende a 34 cidades baianas onde, em 2005, apenas 11% das crianças de até 8 anos sabiam ler e escrever. Em 2011, o índice alcançou os 80%.
Inspiração e aprendizado com Emilia Ferreiro
Extremamente reservada, Emilia não gostava de expor sua vida pessoal. Apreciava música clássica, acompanhava a política internacional e tinha orgulho do seu jardim, relembra Giovana, que foi uma de suas últimas orientandas no pós-doutorado. “Emilia era uma investigadora brilhante, e me interessava aprender com ela como se pode compreender o que pensam as crianças sobre a escrita. Isso tudo porque a sua contribuição para o campo da pesquisa psicolinguística é inestimável.” A psicolinguística pesquisa as conexões existentes entre questões pertinentes ao conhecimento e uso de uma língua, tais como o processo de aquisição de linguagem e o processamento linguístico, e os processos psicológicos que se supõe estarem a elas relacionados.
“Emilia tinha um antigo desejo, que era investigar as particularidades do processo de aquisição da escrita no português brasileiro a partir do marco psicogenético (campo de estudo que investiga os processos de pensamento, sua formação e suas características). Quando fiz a consulta para que me aceitasse em um pós-doc, ela prontamente concordou em me orientar e propôs a realização dessa pesquisa”, conta Giovana. “Em 2019 fui ao México para elaborar o projeto de pesquisa e em 2022 voltei para analisar os dados. Estar com Emilia e aprender com ela de fato foi uma das experiências mais extraordinárias da minha vida.” A pesquisa “Desenvolvimento da escrita em crianças brasileiras” pode ser acessada neste link.
O site Página 12, da Argentina, destacou trecho de uma entrevista publicada em 2017 na qual comentava a repetência escolar e grau de responsabilidade das instituições educacionais e dos professores. “É muito fácil colocar no aluno a culpa pelo fracasso. O professor deve assumir com convicção que todos na turma vão aprender. O problema é que, infelizmente, isso está comprovado que acontece em muitos países: o professor faz uma tipologia dos alunos em sua mente. Estes são os que estudam, aqueles são os mais atrasados, os outros são os agitados. O que um adulto faz diante de um aluno quando está convencido de que ele vai aprender não é o mesmo que faz com o preconceito de que o aluno vai fracassar”, disse Emilia à publicação.
Giovana Zen reforça que, na condição de pesquisadora psicolinguística, Emilia provocou significativas rupturas epistemológicas (marcas que caracterizam a evolução das ciências) ao defender que “a escrita não é um mero código de transcrição direta e linear entre sons e letras, mas um sistema de representação da linguagem apropriado pelo sujeito a partir de sucessivas reconceitualizações sobre seu funcionamento”. Outra ruptura, de acordo com a professora da UFBA, está relacionada com a opção metodológica de perguntar as crianças o que pensam sobre a escrita mesmo antes de serem ensinadas a ler e a escrever. “Isso permitiu compreender as ideias originais inerentes ao processo de construção da escrita. As pesquisas realizadas pela Emilia Ferreiro nos ensinaram a reconhecer o que pensam as crianças sobre a escrita.”
“Todas nós somos herdeiras do seu sonho e seguiremos por aqui, lutando por uma América Latina que assegura aos seus filhos o direito de aprender a ler e a escrever”, conclui Giovana.
Frases de Emilia Ferreiro
Em um artigo em homenagem a Emilia Ferreiro, o governo da Argentina selecionou algumas de suas ideias sobre educação. Abaixo, você encontra uma versão traduzida para o português:
- “A escrita é importante na escola porque é importante fora dela e não o contrário.”
- “Uma vez que a língua escrita não está distribuída democraticamente entre a população, o acesso à informação ligada à língua escrita também não é acessível de maneira equitativa.”
- “Nunca entenderemos o desenvolvimento da criança se partirmos de nossas hipóteses como usuários de um sistema alfabético.”
- “A criança piagetiana é aquela que tenta entender o mundo ao seu redor, que formula teorias tentativas sobre esse mundo; uma criança para quem praticamente nada é estranho.”
- “O sistema alfabético puro é uma espécie de ideal nunca alcançado.”
- “Ler não é decifrar. Escrever não é copiar.”
- “Estamos falando do futuro e as crianças fazem parte desse futuro. Essas crianças (todas as crianças) não precisam ser motivadas a aprender. Aprender é a ocupação delas.”
- “As crianças – todas as crianças -, eu lhes asseguro, estão dispostas à aventura da aprendizagem inteligente. Estão cansadas de serem tratadas como subdotadas ou como adultos em miniatura. Elas são o que são e têm o direito de serem o que são: seres naturalmente mutáveis, porque aprender e mudar é a sua forma de ser no mundo.”
- “A alfabetização não é um luxo nem uma obrigação: é um direito.”
Outras referências sobre Emilia Ferreiro
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– Magda Soares (1932-2023) e a luta pela educação pública de qualidade
– Carlos Rodrigues Brandão (1940-2023) e o sonho da educação popular