Alunas de centro socioeducativo escrevem livro sobre a história de luta das mulheres
Em Belém (PA), adolescentes que cumprem medidas socioeducativas são incentivadas a produzir obra que narra a atuação da mulher em diferentes processos históricos
por Helison Cavalcante 24 de setembro de 2019
Eu trabalho em uma escola diferente de todas as outras chamada Escola Antônio Carlos Gomes da Costa. Ela atende a alunos que cumprem medidas socioeducativas de internação – logo, encontram-se em privação de liberdade. A sede fica na cidade de Ananindeua, na zona metropolitana de Belém (PA), mas atende aos adolescentes de forma descentralizada, em oito anexos, nos quais os alunos se dividem por fatores como gênero, idade e compleição física. Eu atuo em um dos anexos, o CESEF (Centro Socioeducativo Feminino).
No CESEF atendemos a adolescentes do gênero feminino que possuem entre 13 e 21 anos. Ao longo dos nove anos em que leciono, notei que nosso público-alvo é composto por adolescentes que, em sua maioria, possuem um histórico de abandono escolar, abuso de álcool e de drogas e de ter sofrido ou presenciado práticas de violência doméstica. Muitas dessas alunas têm autoestima para estudar abalada e não se sentem capazes de produzir conhecimento, o que dificulta o seu processo de aprendizagem.
A maioria das alunas relata, durante as aulas e as atividades educativas, muitas vezes com naturalidade, já haverem sofrido violência física, psicológica e/ou sexual e, em alguns casos, revelam posicionamentos machistas, naturalizando a violência que alguns homens cometem contra suas companheiras, mas nunca os perdoando em caso de não arcarem com as despesas familiares.
Em virtude desta realidade, passei a acreditar que nossas alunas, do anexo CESEF, da Escola Antônio Carlos Gomes da Costa, necessitavam conhecer a história de luta das mulheres pela igualdade de oportunidades. Levar estes conteúdos até elas não foi uma tarefa fácil, pois notei que as mulheres permanecem silenciadas na maioria dos livros didáticos, apesar de haver uma extensa produção acadêmica sobre a sua atuação nos diversos processos históricos.
Neste sentido, em outubro de 2017, iniciamos o nosso projeto, que consistia na produção de um livro, de caráter paradidático, sobre a história das mulheres, que apresentasse a visão de historiadores(as) sobre a atuação das mulheres ao longo do tempo. Nosso livro se chama “Nossa História das mulheres: representações do feminino no cinema e na sala de aula”, e foi escrito a partir de uma parceria entre o professor de história e as alunas da escola Antônio Carlos Gomes da Costa.
Cada uma de nossas turmas responsável por pelo menos um capítulo. As duas turmas de terceira etapa ficaram responsáveis pela produção de um capítulo sobre a virgindade, a violência contra a mulher e o casamento na Idade Média. A quarta etapa se encarregou da produção de dois capítulos, um sobre a luta da mulher pelo direito ao voto, no contexto da Revolução Francesa, e outro sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho capitalista e sua relação com a Revolução Industrial e com as grandes guerras do século 20. A turma de primeiro ano do ensino médio escreveu um capítulo sobre o papel da mulher e seu silenciamento na Grécia Antiga.
Nossa metodologia se baseou em uma sequência de procedimentos. Em primeiro lugar, realizamos a aplicação de um questionário para compreender a visão das adolescentes sobre o universo feminino, o papel das mulheres na sociedade e o machismo.
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Em um segundo momento, eu pesquisei obras acadêmicas sobre a atuação das mulheres em diferentes contextos históricos e produzi um texto-base sobre cada um desses assuntos. Este conteúdo foi apresentado e discutido em sala de aula com as alunas, que respondiam a uma bateria de questões relacionando-o a seu cotidiano. As respostas eram adaptadas e incorporadas ao documento. Na aula seguinte, apresentávamos um filme, que também trazia novas reflexões e geravam ideias para a produção do capítulo. Por fim, apresentamos um segundo questionário, com o objetivo de compreender se o nosso projeto, de algum modo, mudou a visão de mundo das adolescentes sobre o papel das mulheres.
O livro foi produzido e lançado em 2019, na Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, o maior evento literário da região norte do país. Como resultado dessa publicação, as adolescentes perceberam que são produtoras de conhecimento e passaram a valorizar os estudos, o que contribuiu com a sua ressocialização.
O livro está disponível de forma gratuita no Repositório do Laboratório Virtual de Ensino de História da Universidade Federal do Pará.
Helison Cavalcante
É bacharel e licenciado em história e mestre em ensino de história pela Universidade Federal do Pará. Leciona história na Secretaria de Educação do Estado do Pará, desde 2008. Atualmente trabalha com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.