Alunos desbravam a cozinha da escola em projeto mão na massa
Professora conta como usou a culinária para trabalhar física, a matemática e a astronomia
por Ellen Regina Romero Barbosa 28 de junho de 2018
Em 2017, a escola em que trabalho adotou o modelo de ensino médio de tempo integral, ganhando novas disciplinas na matriz curricular, entre elas as eletivas (disciplinas ofertadas semestralmente pelos professores aos estudantes, que devem abordar a Base Nacional Comum Curricular de forma lúdica, com ações realizadas semanalmente durante duas horas). No primeiro semestre do ano passado, enquanto realizava uma atividade de fases da lua com biscoitos na eletiva de Astronomia, o estudante Carlos deu a ideia “… semestre que vem poderíamos estudar Gastronomia, né?”.
Aquela frase me chamou a atenção e fui para casa pensando em quantos outros estudantes teriam o mesmo interesse do Carlos. Na mesma semana comecei uma pesquisa informal na escola e, em paralelo, um estudo sobre ensino de economia doméstica e uso da matemática na cozinha. Com as pesquisas nos corredores, descobri que Carlos não era o único estudante com sonhos ligados à gastronomia e, após dois meses de pesquisas escrevi o pré-projeto da eletiva de culinária/gastronomia que iniciaria em agosto daquele ano. Antes das férias de julho, compartilhei a ideia com alguns professores e três deles embarcaram comigo nesse projeto: a professora Bárbara, de biologia, foi a primeira a aceitar o desafio, em seguida, a professora Jeyse, de pedagogia, entrou para o time e, por último, o professor Alex, de matemática. Foi assim que nasceu oficialmente o “Mãos na Massa – desbravando a cozinha da escola”.
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Nosso objetivo inicial era utilizar a cozinha da escola como temática principal para trabalhar a matemática (disciplina com maior defasagem em nossa escola), abordar biologia, química e física por meio dos alimentos e seus processos de preparação e digestão. Ao preparar pratos regionais teríamos a oportunidade de desenvolver aspectos de geografia e história, além da área de linguagens durante as atividades, fomentando o interesse dos estudantes pelas quatro áreas de conhecimento, com receitas simples e regionais, que eles pudessem replicar em casa sem grandes dificuldades, da mesma maneira que fazem arroz e feijão, macarrão de comitiva etc.
Nesse sentido, planejamos ações flexíveis que foram divididas em dois eixos temáticos: cozinha afetiva e cozinha regional. O eixo afetivo nos permitiu o desenvolvimento de atividades simples, mas que permitissem o desenvolvimento criativo dos estudantes. Na produção de pão, por exemplo, estudamos medidas e proporções, transformações químicas e físicas por meio dos processos de fermentação. A cozinha virou um laboratório: “se colocar mais água será que a massa cresce?”, “qual fermento devo usar, será que cresce do mesmo jeito?”, “formato e tamanho influencia no tempo do forno?”, “dá certo se rechear?”, “quanto custa para fazer o suficiente para servir a escola inteira?”. Essas ações afetivas buscam também abrir espaço para a participação de membros da comunidade externa, como avós dos estudantes, mães de professores e até a gestão escolar e, por fim, uma apetitosa degustação. No eixo regional, o contexto histórico e geográfico por trás dos pratos são os principais elementos de estudo da aula, oportunizando a participação de chefs da cozinha regional na escola, compartilhando o patrimônio imaterial gastronômico regional, suas experiências de vida e algumas técnicas da gastronomia.
Entretanto, os objetivos e sonhos que sustentavam todo o projeto só seriam úteis se fossem de interesse dos estudantes. A demanda sabíamos que existia e foi isso que motivou seu desenvolvimento. Propusemos aos estudantes da escola que colocassem esse interesse no papel e escrevessem uma carta contando suas motivações para participar das nossas aulas. Dessa forma, escolhemos os que em suas cartas compartilharam seus sonhos e projetos de vida relacionados a gastronomia/culinária que permeavam o âmbito pessoal, profissional e acadêmico.
Os resultados superaram nossas expectativas iniciais, o projeto foi crescendo e atualmente atende 30 estudantes com faixa etária entre 14 e 18 anos. Durante as atividades, eles desenvolveram a empatia e a alteridade pelos colegas e, segundo suas palavras, “o trabalho em equipe formou uma convivência que hoje pode ser chamada de respeito”, “nós somos uma família, a família Mãos na Massa”. Os estudantes começaram a valorizar e perceber a importância e a necessidade dos conhecimentos da matemática e da língua portuguesa, “pois grande parte da culinária envolve matemática e português, porque você tem que saber ler e administrar os ingredientes” (Giovanna Verão, estudante do projeto em 2017), bem como das outras áreas de conhecimento, melhorando seus desempenhos escolares.
Alguns descobriram seus projetos de vida pessoais e que poderiam se tornar profissionais depois das visitas dos chefs e a ida a espaços de ensino formal de gastronomia. As aulas começaram a ter reflexos nas casas dos estudantes, e uma hora ou outra, um pai/responsável contava que seu filho agora replicava as receitas em casa. Os estudantes começaram a modificar as receitas aprendidas. Mas, bem mais que isso, eles começaram a mudar junto, desenvolveram confiança e a segurança na execução de seus trabalhos, melhoraram a autoestima, aprenderam a trabalhar com a ansiedade – pois cada receita tem seu próprio tempo – assim como aprenderam sobre perseverança, trabalho em equipe e adaptação, pois nem sempre as coisas saiam como planejado. Precisaram aprender a lidar com responsabilidade e determinação quando foram desafiados a fazerem os bolos para comemoração do aniversário da escola em 2017 (9 bolos de chocolate com recheio de prestígio, que foi ensinado pela professora Jaqueline de língua portuguesa), cucas para um evento beneficente e dando continuidade, a festa junina da escola, ainda neste semestre.
O projeto não transformou apenas a vida dos estudantes, mexeu comigo também. Minha área de conforto envolve a física, a matemática, a astronomia, e não a gastronomia, mas aquela frase do Carlos me deixou inquieta, talvez pelas minhas inspirações na educação (Freire, Vygotsky, Gardner, meu orientador na universidade Hamilton Corrêa entre outros). Sempre acreditei que gerar oportunidades às pessoas poderia mudar suas vidas, hoje eu diria aos meus colegas de profissão: não desistam, se dêem a oportunidade de mudar, vocês são bem mais do que a zona de conforto permite ser, não tenham medo, acreditem, nossos meninos são capazes, eles só precisam de oportunidades para sonhar e de pessoas que acreditem nos sonhos deles, sei que juntos nós podemos propiciar isso à eles. Imaginem o que serão desses meninos se ninguém der à eles as oportunidades. Não será fácil, mas também não é impossível. Todos os processos farão sentido quando aquele estudante que não conseguia se relacionar com ninguém aprende a trabalhar em equipe e vencem seus próprios desafios, isso vai nos preencher e fazer todo esforço valer a pena.
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Ellen Regina Romero Barbosa
Graduada em física licenciatura pela UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) em 2016, membro do grupo de pesquisa do CNPq Ciências: Educação e Popularização - UFMS. Professora de física e coordenadora de área de ciências da natureza na Escola Estadual Maria Constança Barro Machado, em Campo Grande (MS).