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Valorização da agricultura familiar é foco de projeto com estudantes na Bahia

Guiados pela professora de geografia Laiane Souza, estudantes do fundamental 2 da cidade de Ibiassucê debatem o panorama agrícola do país por meio da valorização da produção local

por Laiane Michele Silva Souza ilustração relógio 1 de novembro de 2023

Quando olho para trás em minha jornada, vejo as raízes profundas que minha família cultivou na agricultura. Sou uma professora negra, e minha história é entrelaçada com o trabalho árduo daqueles que vieram antes de mim. Meus pais adotivos encontram sustento vendendo bolos caseiros, rapaduras, cereais. Foi assim que colocaram comida na mesa e possibilitaram que eu e meus irmãos tivéssemos acesso a uma educação de qualidade. Hoje, sou a primeira da minha família a conquistar um diploma universitário em três gerações, e isso só foi possível graças a essa base sólida.

Minha história me levou à sala de aula como professora de geografia para turmas de 8º e 9º ano no Centro Educacional de Ibiassucê, única escola de ensino fundamental 2, com cerca de 650 alunos, do município baiano de Ibiassucê, com população estimada em 10.429 pessoas, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ao seguir o plano de curso, deparei-me com temas que tocavam profundamente as vidas dos meus alunos: fome, agronegócio, revolução agrícola… Muitos dos meus estudantes têm raízes no campo, onde suas famílias dependem da agricultura familiar; outros residem na zona urbana e desconheciam esta luta.  

Assim surgiu a ideia de criar o projeto “Plantando a consciência sobre a fome, agronegócio e o impacto da agricultura familiar”, para trabalhar temas que ultrapassam a sala de aula e os conteúdos curriculares. Durante a primeira unidade letiva de 2023, entre fevereiro e maio, os alunos se dedicaram às partes teórica e prática da proposta. 

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Para aplicá-lo, eu me baseei nas metodologias ativas de autores clássicos e inspiradores da carreira docente, como Paulo Freire, Lev Vygotsky e Jean Piaget. Também me aprofundei nos estudos da professora Gabriela Silveira Rocha, da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), cujo trabalho se concentra em temas cruciais como capital social, agricultura familiar e pluriatividade. As metodologias ativas se alinham perfeitamente com o objetivo de promover a consciência sobre os temas do projeto, permitindo uma aprendizagem mais engajadora e contextualizada.

Com base nesses conhecimentos, criei materiais didáticos e planos de aula reunindo textos de fontes confiáveis e charges, como Brasil Escola e Tudo Sala de Aula. Também selecionei músicas e filmes com a temática.

Os debates tocaram em questões profundas e humanas, ultrapassando a discussão sobre agricultura e fome, explorando as lutas sociais. Lembro-me de uma das rodas de conversa, quando falamos sobre a música ‘Quem tem fome tem pressa’, tema da campanha Natal Sem Fome 2020, interpretada por Chico Buarque, Daniela Mercury, Maria Bethânia e outros artistas da MPB. Depois de ouvi-la, a turma falou sobre a fome de uma maneira que eu ainda não tinha imaginado, como a fome da alma, a luta contra a depressão e as cicatrizes da colonização no Brasil. 

Quando analisamos ‘Cidadão’, canção de Zé Ramalho, surgiu uma pergunta norteadora: em um mundo com tanta comida, por que tantos passam fome? Ganância, grandes fazendas e desigualdade estavam entre as respostas que gritavam por justiça e igualdade. 

Assistimos juntos ao filme ‘O Menino que Descobriu o Vento’, baseado na história real do engenheiro William Kamkwamba, do Malawi, que ainda garoto construiu uma turbina eólica para salvar seu vilarejo da fome. “Professora, ele não tinha nada para estudar e nós temos tudo”, disseram os alunos de uma turma do 9º ano, sem esconder a emoção.

Partimos, então, para os debates a partir das charges , recursos que oferecem uma linguagem acessível aos alunos, facilitando a compreensão de temas complexos (aqui, deixo os exemplos 1, 2 e 3). As ilustrações que criticam a falta de eficácia da chamada revolução verde (modernização da agricultura em escala global), os problemas associados aos latifúndios e à expansão do agronegócio, bem como as preocupações sobre a preservação da Floresta Amazônica. Essa compreensão visual apoiou a reflexão crítica sobre as políticas agrícolas, a distribuição de terra e os dilemas ambientais que enfrentamos atualmente. 

Clique na imagem para conferir a galeria de fotos:


O papel da agricultura familiar

Em todas as aulas, exploramos como a agricultura se integrou à nossa comunidade. Conversamos sobre como é fundamental valorizar nossas raízes e compreender a importância de apoiar iniciativas locais. Nossa feirinha da agricultura não é um simples mercado, mas um símbolo de resiliência e vitalidade. 

Mesmo assim, alguns estudantes acreditavam que as grandes exportações e os grandes latifúndios eram os pilares que sustentavam o Brasil. Recordo-me de questioná-los: “Se o Brasil é o maior produtor de soja, por que o óleo de soja custou R$ 15 no ano passado?” Por outro lado, alguns ainda mantinham o estereótipo de que a agricultura familiar era apenas para subsistência, sem gerar renda significativa para a população. Entendemos, então, a importância de desmistificar tais estereótipos. 

Também exploramos os dilemas éticos e socioambientais associados ao agronegócio. Um dos alunos trouxe à tona uma vinheta de TV com o slogan “Agro é Pop, Agro é…”, destacando os argumentos usados pelos grandes fazendeiros para justificar suas práticas. Examinar a geração de renda no município, especialmente por meio das perspectivas dos próprios alunos, adicionou uma camada de autenticidade às nossas discussões. 

Afinal, é crucial reconhecer o papel essencial que as comunidades agrícolas desempenham na economia do Brasil, não apenas como produtores de alimentos para subsistência, mas como geradores de renda. Tais reflexões ressaltam a necessidade de uma compreensão mais profunda sobre o panorama agrícola do país.

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Visitas de campo

Em uma escola pública de uma cidade pequena como Ibiassucê, é crucial que os alunos tenham a oportunidade de se conectar com o ambiente ao seu redor, fortalecendo o senso de identidade e pertencimento à comunidade local. Além disso, onde muitas vezes os recursos são limitados, as aulas de campo podem servir como uma maneira eficaz e acessível de proporcionar uma educação prática e enriquecedora.

Durante o projeto, os alunos exploraram suas próprias comunidades vizinhas e as experiências locais. Muitos estudantes têm raízes profundas no campo, tornando essa vivência ainda mais significativa. Alguns optaram por conduzir entrevistas e elaborar questionários com os agricultores por WhatsApp, outros aproveitaram as visitas para fazer os relatórios.

Entre as histórias relatadas, está a da estudante Fernanda. Sua mãe participa do grupo “Mulheres de Careta”, na comunidade de Careta. Elas se dedicam à produção de bolos derivados da mandioca, iniciativa que preserva tradições locais e proporciona sustento às famílias envolvidas. Mais uma prova do poder transformador das iniciativas da agricultura familiar. 

Também visitamos o município vizinho, Caculé, e a Feira de Agricultura Familiar. Com direito à ônibus de excursão, parecia que estávamos em uma aula de campo universitária, onde o conhecimento se misturava com a diversão, exatamente como Paulo Freire nos ensinou: aprendemos melhor quando estamos nos divertindo. 

Os grupos se organizaram para fotografar e gravar vídeos com os agricultores, especialmente com os profissionais de Ibiassucê, que não pudemos visitar devido a questões logísticas. O encontro promoveu mais um debate sobre como grande parte do que está nas mesas dos estudantes provém da agricultura familiar. E não são apenas mulheres e homens negros envolvidos nesse contexto, mas também mulheres e homens brancos.

➡️ Leia também: A alimentação escolar no Brasil: uma linha do tempo

O que aprendemos juntos?

As saídas de campo foram momentos de conexão profunda com a terra, com as histórias das pessoas e com as lições de vida que só a agricultura familiar pode oferecer.

À medida que avançamos em nossas pesquisas, os alunos perceberam a importância vital da agricultura familiar para a economia nacional. Eles compreenderam que a agricultura familiar não apenas fornece alimentos mais saudáveis e livres de agrotóxicos, mas também desempenha um papel crucial no aumento da renda das comunidades.

Os áudios estão sendo transcritos de forma cuidadosa para preservar a riqueza da linguagem utilizada pelos entrevistados, valorizando suas histórias e experiências de maneira autêntica. Com os registros em vídeo, produzimos dois videodocumentários, nos quais os agricultores da cidade compartilham suas histórias de vida e experiências na agricultura familiar. Também fizemos um fotolivro. Tudo será lançado em um evento especial na escola, com a presença da comunidade.

O projeto não apenas consolidou meu conhecimento acadêmico, mas também me ensinou a importância de respeitar e valorizar as práticas locais. Ver meus alunos seguindo esse mesmo caminho é incrivelmente gratificante. 


Laiane Michele Silva Souza

Graduada em geografia pela Uneb (Universidade do Estado da Bahia), é bacharelanda em psicopedagogia pelo Centro Universitário de Maringá (Polo Caetité-BA). Graduanda em pedagogia na Unifaveni (BA), é bolsista do programa de ações afirmativas da Uneb, onde integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Geografia e desenvolve a pesquisa sobre levantamento de Fontes para as histórias das ações afirmativas da universidade. Professora orientadora medalhista e representante Nacional da Olimpíada Brasileira de Geografia, ganhou o primeiro lugar do Concurso Federal Jovem Senador e o terceiro lugar na Categoria Empreendedorismo na 7ª Feira de Ciências do Estado da Bahia.

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competências para o século 21, ensino fundamental, Finalista Prêmio Professor Porvir, metodologias ativas, Prêmio Professor Porvir

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