Como ouvir e lidar com as emoções das crianças durante a quarentena
Especialistas dão dicas sobre como construir conexões durante convívio familiar na quarentena que ajudam as crianças a expressar o que estão pensando e sentindo
por Maria Victória Oliveira 1 de maio de 2020
Mudança da rotina, isolamento social, saudade dos colegas e dos professores, a preocupação dos pais e a falta de respostas sobre o futuro são alguns fatores que mexem com as emoções das crianças em período de quarentena. De uma hora para outra, elas começaram a ouvir adultos falarem sobre perda de emprego e a ver diariamente na TV notícias sobre a situação de pacientes com o novo coronavírus (COVID-19). E tudo isso sem poder sair de casa para brincar e se distrair.
Tudo isso começou ainda no início das aulas, quando os professores estavam conhecendo os nomes e ritmos de aprendizagem de cada um dos seus alunos que, por sua vez, haviam acabado de criar novos círculos de amizade.
Para entender como professores podem restabelecer esses laços durante as aulas remotas e apoiar famílias a encontrar a melhor forma de conversar com seus filhos, ajudando-os a encontrar as palavras certas para descrever seus sentimentos, o Porvir conversou com especialistas em habilidades socioemocionais. Mais do que nunca, a preocupação com seu desenvolvimento pode trazer benefícios imediatos e também no médio prazo, quando as aulas presenciais voltarem à normalidade.
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Relação aluno-professor
A construção de um vínculo entre professor e a turma no início do ano letivo leva algum tempo e certo empenho das duas partes. A escalada de casos de coronavírus no Brasil e a suspensão das aulas aconteceu bem no momento em que corpo docente e discente estavam começando a se alinhar. Por isso, Marcia Frederico, psicóloga e consultora pedagógica do LIV (Laboratório Inteligência de Vida), explica que esforços no sentido de manter ou continuar construindo esses vínculos, mesmo que de forma online, é de extrema importância. “O professor estar ao vivo por meio de uma ferramenta para dizer ‘oi, estou aqui, como vocês estão?’ oferece uma abertura de escuta que é fundamental.”
Segundo a psicóloga, isso se faz ainda mais necessário na educação infantil, etapa na qual essa relação de confiança depende muito da questão física e afetiva. Para Marcia, colocar a imaginação para funcionar e aproveitar o contexto é um dos caminhos a serem seguidos. Contar uma história, fazer uma brincadeira com cores e objetos e até aproveitar a curiosidade das crianças pela casa do professor e mostrar algum objeto pessoal são formas de manter o contato afetivo com os alunos. “É um movimento de trazer todas as teorias para a prática e investir na troca afetiva, que é, na minha opinião, o que mantém viva a educação.”
É certo que cada escola conta com uma realidade e orientações próprias, entretanto, a psicóloga reforça que a possibilidade de adaptar os meios e a forma de manter o contato com os estudantes devem ser prioridade. “Algumas escolas dispõem de plataformas em que professores e alunos podem se ver. Outras, não. Nesses casos, uma ideia é realizar, com autorização da escola, uma ligação ou videochamada para ter um tempo de troca, nem que seja individual com cada estudante. Hoje em dia, ‘vale tudo’, de certo modo, nesse momento de virada da educação.”
Ambiente familiar
Para Marcia, as crianças são reflexo do ambiente familiar no qual estão inseridas. Enquanto algumas estão em um ambiente minimamente estruturado e aproveitam para ficar mais tempo com os pais, outras estão em ambientes menos favoráveis e são impactadas por estresse, ansiedade e sobrecarga da família.
Tonia Casarin, empreendedora, mestre em educação e autora da coleção Tenho Monstros na Barriga, livros que tratam sobre a descoberta dos sentimentos por uma criança, vai na mesma direção. Ela afirma que as emoções sentidas pelos adultos “estão contagiosas como o próprio vírus”, afetam o clima da casa e, consequentemente, o comportamento das crianças. “Já ouvi relatos de crianças que não estão conseguindo encostar em nada ou deitar na cama, porque estão com medo, já que o vírus ‘está em todo lugar’. Isso não traz esse ambiente seguro que queremos dentro de casa”, afirma.
Diante dessa situação desafiadora e nova para todas as partes envolvidas, Tonia enumera algumas dicas. Uma delas é conversar com os filhos e ajudá-los a nomear as emoções que sentem. “Ajudar as crianças com o vocabulário é muito importante, assim como dividir suas próprias emoções. Isso pode criar conexões em um momento em que as famílias estão passando mais tempo juntas.”
Outro ponto que merece destaque é a criação de uma rotina, por mais que isso pareça difícil nesse momento. Para Tonia, a previsibilidade do desenrolar dos acontecimentos durante o dia é fundamental para crianças. Por isso, dependendo da faixa etária, a construção conjunta dos horários que filhos deverão seguir é uma das possíveis tarefas para esse momento. “Envolver a criança no processo de cozinhar o jantar, por exemplo, é uma oportunidade de ela aprender a cozinhar e se conectar. Limpar a casa é outra possibilidade. É importante que entenda que cada um tem a sua tarefa e qual é a sua. Assim, cria-se um senso de responsabilidade que gera autonomia.”
Competências socioemocionais como conteúdo
Em uma recente transmissão realizada pelo LIV, Lourdes Atié, educadora e socióloga, reforçou que, mais do que pensar em cumprir os conteúdos dispostos no currículo, é hora de dar atenção à saúde mental. Márcia faz uma conexão da fala de Lourdes com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), reforçando que trabalhar habilidades e competências socioemocionais também se configura como conteúdo e, portanto, dar espaço para os alunos verbalizarem o que estão sentindo é um primeiro passo.
“Costumamos ouvir que a crise é a grande professora. Então, que possamos aproveitar os ensinamentos em todos o sentidos. Devemos pensar na possibilidade que esse momento traz para que as habilidades socioemocionais sejam aprofundadas, já que estão sendo vividas tão intensamente no ambiente familiar”, reforça a psicóloga. “Das crianças aos adolescentes, há uma gama de possibilidades para trabalhar (as emoções) como conteúdo e reverter como ensinamento e aprendizado. É possível desenvolver ações comunitárias que saem do círculo pessoal e envolvem um pensamento mais global, para desenvolver empatia e solidariedade, por exemplo.”
A valorização do papel do professor
A ‘virada da educação’ a qual Marcia se referia acima, em grande parte, tem a ver com a valorização do papel do professor pelas famílias. “Elas estão percebendo que a educação e a relação de ensino-aprendizagem com crianças e jovens não é simples”, disse.
Tonia Casarin afirma que, mesmo em condições normais, com as crianças frequentando a escola, o engajamento dos pais, mães e responsáveis é um ponto desafiador. Para esse momento, a empreendedora reforça a importância dos dois lados reconhecerem o papel do outro. Os professores, por exemplo, devem compreender que, apesar de muitas mães e pais estarem trabalhando de casa, ainda precisam seguir uma agenda e não estão totalmente à disposição de seus filhos para ajudar no processo educacional.
“O papel dos pais é muito importante. Mas, ao mesmo tempo, são pessoas que não têm nenhum tipo de formação pedagógica, o que gera uma frustração grande de não saber como ajudar os filhos e até brigas. As famílias estão vendo que esse processo de aprendizado não é tarefa fácil”, reforça Tonia.
Por isso, a partir da empatia, a especialista indica que professores podem sugerir recursos e dicas sobre como as famílias podem ajudar as crianças; entretanto, sem ter um nível de exigência alto nesse momento. “Precisamos considerar que existem diferentes níveis de engajamento dos pais. É possível tentar manter esse contato, eventualmente com encontros virtuais, e passar essas atividades. Mas agora, o engajamento é mais importante que entregar uma lição perfeita.”