Cultura da favela em sala de aula aproxima famílias de creche no RJ
Projeto recriou o ambiente de uma favela do Rio de Janeiro. Inspiração foi o livro "Da minha janela", de Otávio Júnior.
por Vanessa Cordeiro Henriques 21 de dezembro de 2023
Identificar e compreender as diferenças e semelhanças entre as aves, perceber que, assim como elas, as pessoas têm características distintas, respeitar tais particularidades. Valorizar a preservação da natureza, por meio da qual preservamos as aves, conforme sempre fizeram nossos povos originários e como determina a lei 11.645/08. Esses são alguns dos objetivos do nosso projeto, intitulado “Da minha janela vejo a minha favela e de passinho em passinho vou de encontro ao mundo”.
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No livro “Da minha janela“, de Otávio Júnior, escritor, ator e contador de histórias, encontramos um relato sobre um pássaro em um fio. Inspirados por essa narrativa, na nossa sala, decidimos pendurar um barbante tingido de preto, com pregadores simulando pássaros. Essa conexão simbólica levou-nos a criar dentro da nossa sala, a favela que olhávamos diariamente da janela da nossa Creche Municipal Francisco de Paula, no bairro de Vila Isabel, próximo ao Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ).
No nosso espaço de aprendizagem, também construímos um ambiente natural que representava o único local onde esses pássaros habitavam antes de o homem modificar o entorno, dando origem aos ambientes urbanos. Em nossa representação de favela, incluímos comércio, moto táxi, oficina, lazer, sacolé e a tia Bernadete com seus gatos. Tinha também hortifruti, rampa de skate, pipa, Guaravita, biscoitos, salgadinhos e o túnel Noel Rosa, que é um dos acessos para chegar até a nossa creche.
Um dos eixos do nosso PPA (Planejamento Pedagógico Anual) é a sustentabilidade, e para criar nossa favela interna, utilizamos materiais recicláveis, como caixas de papelão, tintas, revistas e retalhos. Os bebês pintaram essas casas e prédios com tinta guache, colando retalhos e pendurando as bandeiras dos principais times cariocas nas janelas dessas construções.
Para simbolizar o Estado, fizemos um helicóptero da polícia. Esse elemento veio como forma de crítica sobre como o poder público atua nas comunidades. Diferentemente da vida real, o nosso helicóptero não atira, mas lança livros com palavras como educação, lazer, cultura, esporte, saúde e saneamento básico. Um soldado carrega bandeiras com os dizeres “Paz e Educação”, representando uma abordagem positiva para lidar com desafios nas comunidades.
A representação desse helicóptero é uma crítica a essa ideia de que na favela precisa entrar atirando, como se ali só morassem bandidos e a solução para a violência local e situações de vulnerabilidade fosse gerando mais violência e ignorando que a favela é lugar de potência.
Para inaugurar a nossa favela, promovemos o “Baile da Quebradinha” – nome escolhido pelos responsáveis dos estudantes. Um dos funks mais curtidos pelos bebês é “O Funk do Patinho”.
No evento, exibimos fotos de MCs e DJs que marcaram os anos 2000, como DJ Marlboro, Furacão 2000, Claudinho e Buchecha, MC Marcinho, Serginho e Lacraia, entre outros. Além disso, optamos por incluir nomes contemporâneos como L7nnon, Mc Cabelinho, Mc Poze do Rodo, Ludmilla, Gloria Groove e Kevin o Chris.
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Inspirados em outro livro do Otávio Júnior, chamado “De passinho em passinho”, criamos uma batalha de passinhos. As educadoras, devidamente caracterizadas com tênis, boné, acessórios diversos, roupas e maquiagens com glitter ou paetê, destacaram o estilo característico dos “crias” da quebrada.
Para atrair a atenção da comunidade escolar, criamos uma faixa exclusiva para o baile, enquanto os bebês deram vida a um grafite usando borrifadores com água e tinta guache, valorizando uma forma de expressão comum nas paredes das favelas.
Contamos com a participação ativa dos responsáveis da turma, professores e alunos de outras turmas da unidade. O baile foi cheio de música, dança e diversão, com sacolé da fruta, biscoito Globo, vendedores ambulantes, caixas de som formando o famoso paredão, máquina de bolinha de sabão e chuva de dinheirinho fictício, em alusão aos shows do MC Poze do Rodo.
Observamos que toda a comunidade escolar se sentiu muito representada e ficou empolgada, saindo do baile ansiosa pelo próximo evento e agradecendo por reconhecermos seus gostos e estilos, compartilhando seus sentimentos e emoções em suas redes sociais.
Ao trazer o funk para a escola – fazendo as adequações necessárias, claro –, dissipamos o preconceito muitas vezes associado a esse ritmo, proveniente das favelas e da cultura majoritariamente negra. Afinal, músicas com letras inadequadas para crianças e adolescentes existem em diversos gêneros musicais, mas por que só o funk é visto pela sociedade como algo não cultural?
Diante dessa questão, desde cedo, trabalhamos com as crianças, valorizando, empoderando e respeitando a cultura que elas trazem para dentro da sala de aula.
Ao apresentar as pessoas das favelas como protagonistas positivas de sua própria história, destacamos que a favela é lugar de potência e cultura, merecendo respeito. Ver as famílias cantarem e dançarem junto com os bebês no baile, emocionando-se ao som do funk “Rap da felicidade”, é algo que nos fez sentir que nossa proposta pedagógica atingiu seu principal objetivo, o de afetar positivamente o outro. Isso ressalta a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira, como determina a lei 10.639/03.
Outro elemento importante para nós é a valorização da oralidade e corporeidade. Por meio da oralidade é que nos tornamos contadores de histórias, transmitindo-as e preservando-as, mantendo vivas nossas tradições e ancestralidades, passando-as de geração a geração, conforme fazem os Griôs.
Assim como a oralidade, nosso corpo fala, conta nossa história, carrega nossas memórias e possibilita a construção de saberes e troca de conhecimentos coletivizados.
Vanessa Cordeiro Henriques
Nascida no Rio de Janeiro, é pedagoga formada pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Além disso, possui pós-graduação em neuropsicopedagogia e em diversidade cultural e etnicidade, com um curso de extensão em educação inclusiva. Atualmente, exerce a função de professora de Educação Infantil na prefeitura do Rio de Janeiro. Ingressou na rede em 2018 como AEE (Agente de Educação Especial), cargo que desempenhou até 2019. Ela tem experiência em mediação escolar com crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista).