Daniel Munduruku: o professor deve se perguntar ‘Qual é o indígena que mora dentro de mim?’ - PORVIR
Crédito: Marcio Vieira/Governo do Tocantins

Inovações em Educação

Daniel Munduruku: o professor deve se perguntar ‘Qual é o indígena que mora dentro de mim?’

Em entrevista ao Porvir, o premiado escritor pertencente ao povo indígena Munduruku avalia como a educação tem mudado seu olhar para a questão indígena, discute o modelo de escola e faz recomendações para educadores

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 8 de fevereiro de 2023

A concorrida agenda do professor e escritor Daniel Munduruku exemplifica o quanto sua atuação é diversa. Ativista do movimento indígena brasileiro, é diretor-presidente do Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais e do selo Uka Editorial. Graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, é mestre e doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e pós-doutor em linguística pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). 

Autor de 56 livros (boa parte voltada à literatura infantojuvenil), Daniel, pertencente ao povo indígena Munduruku, coleciona premiações nacionais e internacionais, entre elas duas edições do Jabuti, o Prêmio para a Promoção da Tolerância e Não-Violência da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e o título de personalidade literária da sede paulista da Ordem dos Advogados do Brasil.

Somam-se ao vasto currículo o recém-lançado podcast “Nós – Uma Antologia de Histórias Indígenas”, que reúne contos e narrativas de diversas nações indígenas, e sua estreia como consultor da Rede Globo. Ele apoiará a pesquisa dramatúrgica sobre os conflitos entre indígenas e interesses do agronegócio para “Terra Vermelha”, título provisório da novela que deve estrear em abril. 

Nesta entrevista ao Porvir, concedida no mês que marca a luta dos povos indígenas (data celebrada nacionalmente em 7 de fevereiro), Daniel aborda a importância de a história e a cultura dos povos originários estarem presentes nas escolas muito além do 19 de abril. “O professor e a professora já se sentem incomodados com o tipo de conteúdo que lhes é imposto pela própria estrutura escolar. Essa mudança está acontecendo”, afirma. 

Confira como foi a conversa:

Porvir – Neste 2023, o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas aconteceu em meio ao drama humanitário na Terra Indígena Yanomami. Por que esse debate, tão urgente, deve ser levado à sala de aula?

Daniel Munduruku – A temática indígena é bem complexa. Ela não é simples, não é fácil. Para ser devidamente debatida, é preciso dar muitos esclarecimentos: é preciso apresentar os povos indígenas para as pessoas, além de lembrar as crianças e os jovens que há diferentes momentos de contato dos indígenas com a sociedade brasileira. O perigo é achar que os Yanomami, por estarem em um estado de contato muito mais recente do que o povo Munduruku (que tem mais de 300 anos), ou o povo Tupinambá (que tem 500 anos), são o único povo indígena do Brasil. É preciso esclarecer, informar, mostrar que há uma diversidade cultural linguística, uma diversidade de relações sociais e étnicas. É fundamental levar a temática indígena à escola para a gente quebrar a lógica que a narrativa hegemônica tem apresentado, que quase sempre coloca os povos indígenas no contexto de inferioridade. Só quem pode fazer essa desconstrução é justamente a escola.

Diversidade em números
Em 2022, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) iniciou o recenseamento nos territórios indígenas. Os dados ainda não foram divulgados, por isso, os números oficiais que existem são os retratados no Censo Demográfico de 2010, primeira pesquisa que registrou a quantidade de etnias e de línguas indígenas existentes no Brasil. Foram contados 896,9 mil indígenas, de 305 povos (sem contar os mais de 60 que moram escondidos em meio às florestas) e falantes de 274 línguas (há outras que ainda não são conhecidas ou estudadas). As estatísticas sempre estão presentes na obra de Daniel Munduruku.

Porvir – Como levar a questão indígena de forma adequada à sala de aula de escolas regulares? Temos a Lei 11.645, mas ainda há dificuldade de inserir o tema, de fato, no planejamento pedagógico das escolas não indígenas…

Daniel Munduruku – É só a gente pensar que a lógica que rege a organização e o planejamento das escolas é a lógica linear que é a lógica ocidental. E a lógica ocidental é uma lógica da exclusão, porque as escolas vão se planejando de acordo com o calendário previamente formulado, e tendem a reproduzir as datas comemorativas de forma muito aleatória e exclusiva, no sentido da exclusão. Isso serve, também, para alimentar o próprio capitalismo, o próprio sistema que foi sendo construído: um sistema de pensamento, econômico e político que vai sendo alimentado exatamente pela lógica da do consumo. Então, os povos indígenas acabam se transformando nas escolas como um tema obrigatório simplesmente, não como um tema de fato para discutir questões relevantes para a construção e constituição da nossa própria identidade. Enquanto as escolas não entrarem na lógica da desconstrução, a temática indígena vai continuar sendo tratada apenas de forma muito aleatória e superficial.

Porvir – Como podemos pensar nessa desconstrução?

Daniel Munduruku – Primeiro, é preciso fazer uma reforma na mente dos professores, e isso não é uma coisa muito fácil, embora já tenha tido muitos avanços. Acho que a sociedade brasileira evoluiu bastante nas últimas décadas, especialmente na última década. Agora, os professores não se conformam mais em simplesmente celebrar uma data comemorativa no dia 19 de abril; eles estão questionando. E isso reflete a reforma que vem acontecendo ao longo das últimas duas décadas, pelo menos, em que o professor e a professora já se sentem incomodados com o tipo de conteúdo que lhes é obrigado, que lhes é imposto pela própria estrutura escolar. Essa mudança está acontecendo. 

Daniel Munduruku durante palestra na Virada Sustentável de 2021
Crédito: Virada Sustentável 2021/Flickr Daniel Munduruku durante palestra na Virada Sustentável de 2021 | Crédito: Virada Sustentável 2021/Flickr

Porvir – Quais seriam boas ferramentas?

Daniel Munduruku – Agora nós temos literatura indígena de montão, com livros para crianças, para jovens, para adultos, para a alfabetização de adultos escritos por indígenas e, portanto, podem ter uma utilização de sala de aula que pode ajudar nessa desconstrução. Penso que levar as narrativas indígenas contada pelos próprios indígenas, levar dentro do possível a presença indígena para sala de aula convidando indígenas que moram em contextos urbanos para falar com as crianças é um ponto positivo. Assim, a gente sai daquela ideia de que existem os indígenas verdadeiros, como os Yanomamis, por exemplo, e os indígenas que estão em contexto urbano e, portanto, “deixaram” de ser indígenas. É importante que a Lei 11.645 ajuda e obriga, claro, os professores a colocarem a temática na pauta da escola – muitas vezes, porém, eles não sabem o que fazer. Já existe material suficiente para isso, basta estar antenado, basta uma gestão escolar competente. Assim, certamente a transformação vai acontecer. 

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Porvir – A literatura é, portanto, um caminho para que o professor se aproxime e estude melhor sobre a história e a cultura dos povos originários. Quais outras sugestões você faria aos educadores?

Daniel Munduruku – Os professores precisam ler, mas não apenas o livro em si, pois, além do conteúdo, existem as histórias que estão por trás das palavras. O professor não pode se acomodar, tem de buscar também esses sentidos mais profundos provocados pela leitura. Se a gente quiser mesmo que o professor e a professora mudem seu modo de operar em sala de aula, eles têm de perguntar uma questão muito simples: “Qual é o indígena que mora dentro de mim?” Ou o que seria mais radical, colocando sempre entre aspas a palavra índio: “Qual é o ‘índio’ que mora dentro de mim? É esse ‘índio’ romantizado que impuseram na minha mente, é esse ‘índio’ ideologizado que me obriga a não gostar dele? Ou é esse ‘índio’ comprometido que reivindica e luta por sua terra – portanto, um indígena que é comprometido com o seu modo de ser?” Ainda que esteja em contexto urbano, ainda que esteja vivendo uma situação crítica, ainda que esteja sendo perseguido… Qual é o “índio” que mora dentro de cada professor e de cada professora? Se eles e elas conseguirem responder minimamente a essa pergunta, poderão reconstruir essa visão que foi introjetada em sua mente e, a partir disso, passarão a ensinar as crianças a partir desse novo olhar. A mudança, eu sei que isso é meio cafona de dizer, mas a mudança começa dentro da gente mesmo.

Porvir – O que você considera como uma escola acolhedora e inovadora para um estudante indígena?

Daniel Munduruku – É muito difícil responder essa pergunta, na verdade. Porque os povos indígenas não têm muito essa ideia de escola, sabe? A comunidade é a escola e todos são responsáveis pela educação. Tentar juntar as crianças em um prédio cheio de formalidade, cheio de protocolos, quase sempre faz com que elas se sintam desconfortáveis – embora se saiba que hoje a escola é muito importante e ela tem a sua importância até para que os indígenas possam conhecer melhor a sociedade onde vivem. Ainda assim, é muito difícil ter uma escola que de fato siga os métodos indígenas de educar. Essa escola ocidental não é a escola ideal – nem mesmo para ocidental, muito menos para indígena, que é livre. Eu penso que uma escola que se queira, de fato, para os povos indígenas, tem que ser uma escola que siga os moldes da educação ancestral, da educação coletiva e comunitária. Uma escola que acolhe é aquela que não tem paredes, que não escraviza, as pessoas não se sentem escravas. Tenho esse sonho de que um dia a gente terá uma escola indígena nesses moldes.

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Porvir – O que falta para alcançarmos uma boa política educacional para as populações indígenas?

Daniel Munduruku – Falta, antes de mais nada, que os nossos governantes tenham um espírito público de verdade, que não queiram impor determinadas formas de aprendizado, de pedagogia, que afetem as culturas de forma inabalável. Uma boa política educacional tem que chamar os especialistas indígenas para conversar, tem que pensar nos modelos novos de educação, tem que pegar a própria experiência das comunidades em educar e em transmissão de conhecimento, que leva encontrar justamente o desenvolvimento de uma prática que seja uma prática pedagógica do pertencimento, porque é o pertencimento que gera comprometimento e que há de gerar também pessoas mais críticas, mais capazes de ler o mundo sem precisar ser dominado pelo mundo.

Porvir – E em relação à formação dos professores indígenas? Qual sua avaliação? É preciso abrir mais espaços na academia para esses profissionais?


Daniel Munduruku –
Tudo é uma questão mesmo de compreensão, do que é formação e do que é educação. Vai formar professores indígenas para indígenas ou vai formar indígenas que sejam capazes de dialogar com sua própria pedagogia e fazer com que ela se adeque de uma maneira mais próxima à ancestralidade da qual aquele povo pertence? Acho que as políticas para a educação indígena ainda são muito equivocadas, porque elas são pensadas a partir dos moldes dos ocidentais. Pensar em formar professores indígenas para reproduzir o conhecimento ocidental não é uma boa política, é preciso revisar isso. Espero que tenhamos tempo nos próximos anos, porque isso também é a garantia de manutenção das culturas, da própria identidade de cada povo e de cada cultura. Vale lembrar que não se pode pensar a educação indígena de uma forma chapada, como se fosse uma proposta única para todos os povos. É preciso levar em conta a diversidade que existe entre os próprios indígenas, senão a gente incorre nos mesmos erros de fazer uma educação genérica e de achar que uma pode ser melhor do que a outra.

Porvir – Pela primeira vez, o Brasil conta com um Ministério dos Povos Indígenas. Quais suas expectativas? A área educacional deverá ser impactada?


Daniel Munduruku – Olha, eu gosto da ideia de ter o ministério indígena, embora eu ache que ele não resolva absolutamente nada porque tem muito a ver com a capacidade gestora de ministério e a capacidade financeira também. É preciso ter condições para cumprir uma pauta que seja pensada pelos indígenas, mas que seja também aceita pelos não indígenas. Não se trata de fazer um mundo paralelo para os indígenas e, sim, fazer com que a sociedade brasileira olhe para os povos indígenas de forma como deve ser, de maneira tolerante e respeitosa, não como a sociedade brasileira quer que nós sejamos, mas como nós somos de fato. Um ministério, embora tenha competências para isso, pode ser que não cumpra esse papel, até porque ministérios começam e terminam, ministros entram e saem o tempo inteiro. Isso tudo tem de ser pensado a médio e longo prazos, não pode ser assim como um toque de mágica, né? Não tenho uma expectativa muito positiva. Tenho esperança de que a coisa seja interessante, mas não tenho expectativas de muitas mudanças. Em relação à educação, não penso que vai mudar muita coisa, não, sabe? Não acho que no campo educacional, para os indígenas, isso mude bastante… talvez mude a educação da sociedade brasileira para olhar para os povos indígenas. Isso já é um começo, mas com certeza não é o ideal.


Relembre o episódio sobre educação indígena do podcast “O Futuro se Equilibra”, parceria entre o Porvir e o Instituto Unibanco:


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educação indígena, ensino fundamental, ensino médio, ensino superior

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