É um erro oferecer soluções sem ouvir quem está do outro lado, diz professora Gina Vieira - PORVIR
Crédito: PORNCHAI SODA/IstockPhoto

Coronavírus

É um erro oferecer soluções sem ouvir quem está do outro lado, diz professora Gina Vieira

Em transmissão online do LIV (Laboratório Inteligência de Vida), educadora destaca papel afetuoso da escola e a necessidade de conectar atividades pedagógicas com o momento atual

Parceria com LIV

por Redação ilustração relógio 8 de maio de 2020

O fechamento das escolas em razão da pandemia do coronavírus (COVID-19) fez com que a maioria das instituições de ensino passasse a apostar na tecnologia para manter estudantes engajados com a aprendizagem mesmo que a distância. Mas como isso acontece para aqueles que não têm internet, computadores ou celulares em casa?

No dia 28 de abril, data em que celebra-se o Dia da Educação, o LIV (Laboratório Inteligência de Vida) promoveu uma transmissão online com o tema “Ensino a distância para quem?”, que contou com a participação de Gina Vieira Ponte. A professora e criadora do premiado projeto Mulheres Inspiradoras conversou sobre como o cenário imposto pelo coronavírus pode contribuir para o acirramento das desigualdades entre alunos no Brasil.

Leia mais: 
– Tudo sobre a cobertura Educação em Tempos de Coronavírus
– 10 passos para montar o plano de contingência
– O coronavírus também vai contaminar a educação? Entenda os riscos
– Christian Dunker: ‘Famílias vão ter que criar nova experiência compartilhada’ 

Ao falar sobre a importância da discussão, a professora disse que a conjuntura da pandemia escancarou as nossos problemas históricos não resolvidos, como a profunda desigualdade social e a má distribuição de renda. “Tudo isso tem um impacto muito profundo na educação e traz diversos desdobramentos”. Por mais que a tecnologia tenha um papel primordial no momento, a professora lembra que o custo dos dispositivos e dos planos de internet impedem que todos tenham acesso às atividades pedagógicas.

Para Gina, o momento exige que a educação seja vista de forma mais ampla, porque não é só a criança que vai ser educada neste momento, a família também será. Algumas redes estão formando comitês que envolvem pais, professores e estudantes para que pensem em soluções juntos. “Um dos maiores erros que podemos cometer neste momento é oferecer soluções sem ouvir quem está do outro lado”, disse.

Confira abaixo os principais trechos da conversa.

LIV: A pesquisa TIC Domicílios mostrou que apenas 48% dos alunos da classe D e E do país têm acesso à internet. Desses, 85% acessam a rede exclusivamente do celular. Nesse cenário, deve-se considerar que existe um celular para a família inteira, e que o sinal deve ser pior em áreas rurais, por exemplo. Então, educação à distância para quem?
Gina Vieira: Primeiro devemos esclarecer que todo o atendimento pedagógico que está sendo realizado neste momento não pode ser qualificado dentro da categoria educação a distância, que é uma modalidade específica e consolidada, com uma história muito forte na educação brasileira. O mais apropriado é falarmos em “atendimento remoto em situação emergencial”. Além disso, se 85% dos estudantes só acessam a internet pelo celular, é provável que isso aconteça a partir de dados móveis que são limitados. Uma internet de banda larga de boa qualidade, de alta velocidade, ela corresponde a quase um terço do salário mínimo. A partir desses dados, a primeira discussão que devemos fazer é questionar se é justo usarmos essas atividades remotas para repor os dias letivos, pensando no quanto isso pode aprofundar as desigualdades sociais. Também devemos nos perguntar se a primeira urgência é promover atendimento pedagógico remoto, considerando que estamos todos lutando para nos manter vivos e para ter menos danos diante do caos.

LIV: Uma pesquisa da Data Favela registrou que 92% das mães que vivem em favelas disseram que faltará comida após um mês isolamento. Sabemos que muitas crianças estão sofrendo mais abuso, tanto físico como sexual, e correm o risco de perder familiares. E quando vamos debater com secretários de educação só se fala na preocupação com o atraso do conteúdo, na perda do aprendizado escolar. Qual é a sua opinião sobre isso?
Gina Vieira: Essa preocupação anuncia que nossa concepção de educação é muito empobrecida e está muito amarrada à crença de que os alunos são só uma cabeça que pensa. Nós negamos todas as dimensões que eles têm e que são imprescindíveis para o processo de aprendizagem. Alguns estudos, por exemplo, mostram que um dos fatores que mais complica o processo de aprendizagem é o estresse. E se damos respostas pedagógicas limitadas à entrega de conteúdo, vamos colaborar para aumentar o estresse dessa família. Não é que não podemos propor atividades que cooperem para que os estudantes continuem engajados no processo de aprendizagem. A questão é que temos que pensar em como fazer isso, e não encaminhar planilhas de tarefa para casa sem sequer ter ouvido quais são as prioridades dessa família.

LIV: Qual é o papel da escola nesse sentido?
Gina Vieira: Na minha concepção, o agente mais importante nesse momento é a escola pública, por ser o aparelho do Estado que está mais próximo dessas crianças e adolescentes. Para muitos deles, a escola é um refúgio que está sendo negado nesse momento. Então, antes de falar de entrega de conteúdo, temos que falar de humanidade e empatia, que ao contrário do que alguns dizem, também são conteúdos que estão nas competências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). São competências que não desenvolvemos com aula expositiva e planilha de exercício, mas a partir das experiências e vivências que nos são proporcionadas. Então, se em um momento como esse, minha primeira medida educadora é entrar em contato com as famílias desses estudantes e perguntar como elas estão, e a partir dessa posição acionar redes de apoio. Eventualmente, eu mostro para essa família competências como empatia, responsabilidade social e senso coletivo.

LIV: Nessa lógica de dialogar com o momento, como é possível engajar os estudantes?
Gina Vieira: Os professores podem engajar os estudantes em uma perspectiva de pedagogia de projetos para que eles possam também se sentir atores. Se eu estivesse trabalhando com estudantes dos anos finais nesse momento, iria propor que produzissem um diário íntimo contando como está sendo cada dia na pandemia, que desafios eles estão enfrentando. Isso traz um espaço para organizar as emoções na escrita e da a oportunidade de exercitar a autoria. Para crianças muito pequenas, ao invés de mandar várias planilhas de atividades, eu peço para ele fazer vídeo chamada para a avó e depois contar como é que foi essa conversa? Não podemos acreditar que é possível colocar os estudantes numa bolha ou realidade paralela, ignorando tudo o que está acontecendo. Temos que trazer o momento para o processo pedagógico e transformar isso numa estratégia para que eles possam ter, nesse momento, o atendimento pedagógico significativo, contextualizado e com intencionalidade.

LIV: Como podemos trabalhar o vínculo com os estudantes, de forma a fazer com que o aumento da evasão escolar não seja o resultado dessa pandemia?
Gina Vieira: A gente tem uma escola ainda muito conservadora, muito tradicional, que ainda é excludente, tão colonizadora, que apresenta os conteúdos de maneira descontextualizada, que não valoriza o protagonismo e a autoria do aluno, que não coloca como sujeito ativo na aprendizagem e que colabora para evasão. Muitas vezes, o jovem evade da escola porque não vê sentido naquilo que a instituição está propondo. Então o primeiro ponto é que a conjuntura da pandemia tem que nos fazer olhar com mais profundidade para como a escola funciona. Para além disso, devemos entender que a educação não dá conta de tudo. Precisamos trabalhar numa articulação mais profunda e capilarizada das redes de apoio, mapeando quem são os estudantes em situação de vulnerabilidade social e pensando em acionar outras possibilidades para estimular a permanência deles na escola. Nossos problemas educacionais são, antes de qualquer coisa, problemas sociais, econômicos e de desigualdade social. São resultado da produção histórica do nosso país, que tem a sua origem no genocídio dos povos tradicionais e na escravização de pessoas negras. Essas questões nunca foram resolvidas e não estão no passado distante, elas estão aqui, agora.

LIV: No estado de Illinois, nos Estados Unidos, apenas 15% da população é negra, mas 35% dos casos da doença e 40% das mortes dos pacientes de COVID-19 são de pessoas negras. Considerando a realidade brasileira, esse padrão provavelmente irá apresentar resultados semelhantes. Qual deveria ser o papel do Estado e da educação frente a isso?
Gina Vieira: Eu tenho repetido que qualquer resposta bem pensada para esse período precisa estar atenta a três categorias essenciais: gênero, classe e raça, porque a maioria dos jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social estão na categoria de pretos e pardos porque, como eu disse, essa é uma produção histórica. O Brasil institucionalizou o racismo, com várias leis que proibiam o acesso de negros a direitos básicos. Se hoje temos pessoas negras excluídas socialmente e morando nas favelas, isso é responsabilidade do Estado. Portanto, o Estado precisa estar atento para reparar essa dívida histórica social e pensar em alternativas para que esse grupo de estudantes não abandone a escola, porque isso impacta a vida de todos nós. Eu, por exemplo, fui a primeira da minha família a fazer curso superior, a me tornar a servidora pública e a fazer o mestrado. Quando os meus irmãos viram essa mudança, eu anunciei outras possibilidades identitárias na minha comunidade, onde o que estava reservado para mim era ser trabalhadora doméstica ou babá. É por isso que garantir a permanência de estudantes negros na escola, com possibilidade de êxito e de avanço de aprendizagem, é uma questão fundamental para a educação. Além disso, temos que pensar também nas políticas específicas para esse momento da pandemia. Porque estão morrendo mais pessoas negras? Porque são elas que têm menos acesso ao sistema de saúde.

LIV: Mesmo sendo a educação um bem público, hoje existe uma percepção de que a educação formal é papel da família. Como fica esse peso que colocamos sobre as famílias para que sejam educadoras da criança?
Gina Vieira: Aqui em Brasília existe uma proposta para oficializar o homeschooling, ou seja, a educação formal oferecida em casa. Em um país desigual como o Brasil, essa é uma forma de precarizar e sucatear a educação dos mais pobres, significa tirar do Estado a obrigação de atender as crianças mais pobres. Além disso, pessoas preocupadas com o homeschooling não querem que chegue para seus filhos uma educação que valorize a diversidade, para que as crianças não acessem discussões sobre valores plurais, sobre nossos marcos civilizatórios sobre os direitos humanos. Nós não vamos avançar com humanidade se a gente não estiver na escola um espaço de fortalecimento da democracia e de discussão dos valores. É na escola, a partir da educação, como um bem social, para que as crianças tenham contato com os valores plurais, que a gente rompe com essas práticas que atentam contra os direitos humanos. Escola não é só a transmissão de conhecimento. escola é relação com o território e com o mundo, é receber o conhecimento banhado em afeto, convivendo com uma diversidade de pessoas e aprendendo a respeitar essa diversidade.

LIV: No Uruguai, os livros estão sendo incluídos dentro da cesta básica. Nova York está disponibilizando roteadores e internet gratuitamente para famílias que não têm acesso. Que ações semelhantes estão sendo feitas no Brasil?
Gina Vieira: Esse respiro de esperança nesse momento é muito importante. Aqui em Brasília estamos transmitindo aulas pela TV Justiça e pela TV Gênesis, e os professores estão sendo formados para trabalhar com plataformas virtuais. O Centro de Referências em Educação Integral publicou um artigo incrível, mostrando como as redes estão apostando em metodologias que nos permitam acessar a inteligência coletiva para construir soluções. Um dos maiores erros que podemos cometer neste momento é oferecer soluções sem ouvir quem está do outro lado. A educação também precisa ser pensada no sentido mais amplo de que não é só a criança que vai ser educada neste momento, a família também será. Algumas redes estão formando comitês que envolvem pais, professores e estudantes para que pensem em soluções juntos. Mas a maior potência desse momento está na ação dos professores que estão gravando mensagens, entrando em contato com as famílias, acionando as redes de apoio para que as crianças que estão sem assistência, ligando para as crianças, mandando vídeo dizendo que estão com saudades, sugerindo atividades para que as crianças da educação infantil continuem se desenvolvendo a partir de atividades lúdicas. Quero aproveitar essa oportunidade para parabenizar todos os professores e professoras do Brasil, os gestores de escola pública e secretários de educação que estão se desdobrando para que os nossos estudantes não se sintam abandonados nesse momento.

Baixe: Infográfico com as 10 Competências Gerais da BNCC

Quer saber mais sobre socioemocionais?
Clique e acesse

LIV

TAGS

competências para o século 21, educação infantil, engajamento familiar, ensino fundamental, ensino médio, equidade, formação continuada, tecnologia

Cadastre-se para receber notificações
Tipo de notificação
guest

0 Comentários
Comentários dentro do conteúdo
Ver todos comentários
Canal do Porvir no WhatsApp: notícias sobre educação e inovação sempre ao seu alcanceInscreva-se
0
É a sua vez de comentar!x