“Escola deve ser humanizadora e avaliar mais do que a memória”
César Aparecido Nunes, pesquisador e doutor em educação que fará palestra na Bett Brasil Educar, defende a importância de uma escola voltada para a formação do cidadão
por Marina Morena Costa 12 de maio de 2016
A escola tem um vínculo profundo com a sociedade brasileira e pode melhorá-la, produzindo comportamentos de tolerância, respeito e inclusão. O professor César Aparecido Nunes não só acredita nesse papel fundamental do processo educacional, como trabalha para aferir se estamos realmente atuando nas competências socioemocionais, e não apenas na memória e capacidade de síntese dos estudantes.
Professor titular de Filosofia e História da Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Nunes é doutor, autor de mais de 25 livros e pesquisador de novas formas de avaliação ética, crítica e moral. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas PAIDÉIA da Unicamp e já colaborou com um projeto internacional da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que busca avaliar a criatividade e o pensamento crítico em 15 países.
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“Temos que buscar indicadores que nos ajudem a fazer uma leitura correta do que a escola está proporcionando às crianças e adolescentes no mundo de hoje, que exige educação para sustentabilidade, autonomia moral, capacidade de compreensão das relações globais, tolerância, respeito às diferenças culturais”, destaca.
Para o professor, a escola de hoje deve ser “humanizadora”, dotar os estudantes de “procedimentos, condutas e esclarecimentos estéticos culturais elevados”. Ele avalia que há facilidade no manejo das novas tecnologias, mas com pobreza vocabular, conceitual. “Temos que criar comportamentos referenciais, respeitosos na apropriação tecnológica e no manejo de informações, de modo que a gente não faça da internet uma degradação da nossa vida, uma forma voraz e neurótica de saber da vida dos outros. Os computadores invadiram o nosso cotidiano e nós damos mais atenção para essas cavernas”, ressalta.
Considerado um dos mais conceituados congressistas da área da educação, Nunes fará uma palestra na Bett Brasil Educar sobre o tema central o evento “Melhor Escola, Melhor Sociedade”, em sua abertura. O evento, que concentra uma feira de exposições e um congresso, é o maior educacional da América Latina, e será realizado na São Paulo Expo, entre os dias 18 e 21 de maio.
Nesta entrevista concedida ao Porvir, César Nunes fala sobre a relação da nossa sociedade com a tecnologia e os desafios para uma educação voltada para a humanização e a cidadania. Confira:
Porvir – O senhor colaborou no desenvolvimento de uma avaliação da criatividade e do pensamento crítico, em um projeto internacional que envolve 15 países e a OCDE. Poderia falar um pouco mais sobre esse trabalho?
César Nunes – Participei como colaborador para buscar encontrar índices e desencadear intervenções de modo a conduzir nas crianças e adolescentes, através do sistema regular, uma autonomia de pensamento; criar pessoas que tenham poder de decisão, autonomia moral, capacidade de raciocínio de modo que possam a partir desse projeto tanto dar conta dos conteúdos escolares, como compreender a sociedade, desenvolver o espírito empreendedor, ser capaz de provocar mudanças na própria realidade onde atua, com o conhecimento crítico, com criatividade e autonomia moral.
Porvir – Qual é a importância de avaliar as competências socioemocionais?
César Nunes – Temos que buscar indicadores que nos ajudem a fazer uma leitura correta do que a escola está proporcionando às crianças e adolescentes no mundo de hoje, que exige educação para sustentabilidade, autonomia moral, capacidade de compreensão das relações globais, tolerância, respeito às diferenças culturais. Eu acredito que nós precisamos ter não somente uma escola que avalie a memória e a capacidade de síntese das crianças para reter informações e transformá-las em desempenho para o trabalho, para o mercado. A escola é também uma instituição humanizadora, então tenho buscado que a gente avalie as crianças também trabalhando as coordenadas afetivas e emocionais, junto com o manejo tecnológico e as habilidades para o mundo do trabalho e da sociedade. É nesse aspecto que eu desenvolvo e faço minha intervenção nessa avaliação por competências socioemocionais.
Porvir – Na Unicamp, o senhor desenvolve uma avaliação da convivência ética e formação moral. Como seria essa avaliação?
César Nunes – Eu trabalho no Grupo de Estudos e Pesquisas PAIDÉIA na Unicamp, e a gente faz esse tipo de intervenção nas escolas da região de Campinas. Nós temos um conjunto de intervenções: fazemos contato com os professores, palestras “sensibilizatórias”, e de duas a três vezes por semestre, fazemos um tipo de situação avaliativa. Por exemplo, apresentamos uma reportagem da televisão local sobre uma pessoa bem pobre que encontrou dinheiro na rua e devolveu. Deixamos as crianças debaterem e analisamos os argumentos deles, o que entendiam por ética, e a partir da exposição dessas atitudes chamadas eventuais e paradigmáticas nós vimos que eles começam a entender o que é o agir moral, o agir de acordo com a consciência.
Porvir – Em suas palestras e artigos, o senhor fala bastante sobre a importância da humanização da educação, do papel da escola na formação da pessoa humana, e não apenas na preparação para o mercado de trabalho, e muito menos como um depósito de gente. O senhor poderia falar sobre a urgência de avançarmos nesse sentido?
César Nunes – O Brasil chegou muito tarde à escola moderna. Até a primeira República, a escola era mais privilégio do que direito das pessoas. Nós tivemos uma expansão de um modelo de escola que ainda é mediadora para o trabalho. A escola não é uma herança cultural. Para mim, humanização é dotar a pessoa de procedimentos, condutas e esclarecimentos estéticos culturais elevados. A escola hoje pode ser o lugar onde as crianças brinquem e aprendam a trabalhar e respeitar o outro. O processo escolar que eu vejo hoje é o de formação do ser humano moderno, tolerante, moralmente adequado, equilibrado; isso está na superação da nossa escola atual. A escola de classe média prepara para passar no vestibular. E a escola popular tem sido a da assistência social compensatória, dando muito mais práticas higienistas do que efetivamente uma visão de mundo e uma autonomia. Tenho defendido o que o Plano Nacional de Educação (PNE) contempla a inclusão de todas as crianças na escola, mas numa escola que possa produzir nelas todos os apelos de um ser humano autônomo, criativo, respeitoso e ao mesmo tempo feliz.
Porvir – Em artigo recente, o senhor escreveu que vivemos uma revolução nas formas de viver, de pensar e de existir, e estamos cada dia mais dependentes das tecnologias. A educação humanizada seria capaz de preparar melhor os sujeitos para lidar com esse mundo tecnológico?
César Nunes – Acho que as tecnologias precisam ser melhor dimensionadas. Tecnologia vem da palavra tékhnē, em grego, e logía, que é pensamento. Significa saber fazer e pensar no que se faz. Só que as pessoas têm usado tecnologia como técnica e não têm conseguido interpretar a segunda parte da palavra, que é a logía, que vem de lógos, pensamento, reflexão. A tecnologia em seu sentido mais amplo é tudo aquilo que a humanidade produziu e colocou a serviço do movimento cultural. Estamos em um último estágio da tecnologia, as chamadas tecnologias digitais, da capacidade de transmissão de dados, de informações a partir de uma grande rede mundial de computadores, a capacidade da inteligência artificial de um smartphone. Para mim, tecnologia é falar bem, ter referências culturais, saber onde fica a Europa, é saber a quem homenageia o nome da sua rua. Isso tudo são tecnologias históricas, culturais, geográficas. Recentemente estamos vendo que as tecnologias saíram das grandes corporações e se tornaram produtos do cotidiano. Temos manejos de tecnologia, mas temos pobreza vocabular, conceitual. Não temos tido capacidade de fazer disso uma referência ética e estética. Quando você está numa mesa almoçando, a beleza do ato é estar com pessoas que você geralmente escolhe e o almoço é uma dimensão humana de nutrição. Uma pessoa que fica mexendo no celular durante um almoço pode ter manejo tecnológico, mas não tem educação ética e estética. Não é hora de ficar se expondo nas redes sociais, de perder o senso de público e privado. Isso não é uma coisa que nasce com as pessoas ou que venha em um manual, isso é pai e mãe que tem que dar e escola que tem que ajudar a formar. A educação tecnológica não pode ficar reduzida ao manejo, a operacionalidade, porque nisso os manuais têm sido cada dia mais didáticos. A escola tem o papel de produzir critérios para condutas éticas e estéticas elevadas para apropriação tecnológica.
Porvir – Não estamos preparando bem nossos estudantes para lidar com essa realidade virtual?
César Nunes – Hoje estamos escrevendo mais nas redes sociais, só que a gente não tem elevado a linguagem. É uma achologia, “eu acho que”, sem aprofundamento. As pessoas se bloqueiam e só dialogam com quem é próximo. Isso precisaria ser debatido para a gente conseguir respeitabilidade. Se os pais toda hora usam o celular, a criança vai fazer a mesma coisa. Na Coreia existe um conceito de intoxicação eletrônica, a criança que fica oito horas no computador é chamada de intoxicada e recebe uma punição, fica duas horas sem o celular, sem computador. É uma forma de encaminhar a questão, mas não resolve. A França ampliou em uma hora de aula a jornada, são 20 minutos de exposição do professor, 20 minutos de pesquisa no celular e 20 minutos de exposição coletiva, tentando integrar as tecnologias a um novo modelo de didática e planejamento de aula. Não é o modelo repressivo de negar, nem de fazer a escola perder a sua identidade institucional de ter um professor mediador. O conhecimento adequado ao pensamento da criança e do adolescente só o professor bem formado e a escola esclarecida podem fazer. Tem que ter um equipamento simbólico, ético, estético e cultural, para criar comportamentos referenciais, respeitosos na apropriação tecnológica e no manejo de informações, de modo que a gente não faça da internet uma degradação da nossa vida, uma forma voraz e neurótica de saber da vida dos outros. Os computadores invadiram o nosso cotidiano e nós damos mais atenção para essas cavernas.
Porvir – Na Bett Educar, o senhor dará uma palestra com o tema “Melhor Educação, Melhor Sociedade e a Busca da Qualidade da Educação e da Escola”, sobre as mudanças que a sociedade brasileira vem passando e o papel da escola e dos professores neste contexto. O senhor falará um pouco sobre tudo isso que estamos conversando?
César Nunes – Isso. Este tema é sobre o vínculo profundo que a escola tem que fazer com a sociedade brasileira. Ela tem que produzir comportamentos de tolerância, de respeito à dignidade, de inclusão da pessoa deficiente, e é na escola que nós tivemos uma sociedade moderna, através de um modelo que seja capaz de instigar no coração das crianças o sagrado amor à vida, ao outro, ao diferente, para que a escola melhore a sociedade brasileira. Eu tenho 57 anos e fiz parte de outro momento histórico. Minha vida foi voltada para fazer com que os direitos das pessoas virassem lei. Eu achava que quando isso acontecesse nós teríamos um país novo. Hoje, mudei de tática, quero que as leis virem prática social. Nós tivemos nos últimos anos um relativo sucesso em produzir uma nova matriz jurídica: fizemos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Eco 92, Rio+10, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Juventude, o direito à união estável homoafetiva, o Plano Nacional de Direitos Humanos. Isso tudo está na lei e não é de um partido político, é da sociedade civil brasileira. Tirar 29 milhões de pessoas da miséria foi um grande feito, mas tirar da miséria cultural é mais importante. Se sair da miséria econômica e não tiver uma escola boa, a tendência é que volte para ela, porque a escola é que forma para a cidadania e para a humanização.
* Esta matéria foi alterada no da 18 de maio