Escola no RJ fortalece identidade e autoestima com ensino antirracista
Conheça o projeto pedagógico da Escola Municipal Embaixador Barros Hurtado, no Rio de Janeiro, que transforma a realidade dos alunos por meio da educação antirracista baseada na Lei nº 10.639/2003
por Fernanda Nogueira
15 de setembro de 2025
A educação voltada para as relações étnico-raciais e antirracistas é prioridade na Escola Municipal Embaixador Barros Hurtado, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ). Lá, a lei 10.639/2003, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira, faz parte do PPP (Projeto Político-Pedagógico), é amplamente debatida pela comunidade escolar e orienta projetos durante todo o ano.
O tema aparece em diferentes disciplinas, incluindo língua portuguesa, matemática, ciências e espanhol, além de história. Os professores passam por formações constantes sobre o tema. Entre as atividades, estão palestras com escritores de literatura afrocentrada (aquela que coloca a experiência, a cultura e a ancestralidade negra no centro da narrativa) e a promoção de passeios culturais sobre a temática para alunos, professores e funcionários.
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Alguns dos especialistas que já participaram de eventos na escola são a jornalista Flávia Oliveira, o professor Ivanir dos Santos, o escritor Júlio Emílio Braz, a escritora Sonia Rosa e a educadora Lavini Castro. Um passeio deste ano foi à região conhecida como Pequena África, na zona portuária da cidade.
“É um centro histórico e cultural da comunidade afro-brasileira, fundamental para a resistência e preservação da cultura africana desde o período da escravização, e que se tornou o berço de manifestações como o samba”, afirma a professora de língua portuguesa Mônica Aniceto.
Assim como seus colegas, Mônica contextualiza a história e cultura afro-brasileira. Ela segue o currículo carioca, usando a apostila da rede, materiais didáticos da GERER (Gerência de Relações Étnico-Raciais), da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, além de aulas que ela mesma cria.
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Nas turmas de 7º ano, apresenta aos estudantes livros como “Luena Gaba”, de Ricardo Jaheem; “Quando Tocam os Tambores”, de Estela Martins e “Vovó aMARria”, de Rê Francis e Janine Eufrásio. Nas salas de 8º ano, trabalha crônicas e contos de autores negros como Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz e Machado de Assis, além de artigos de opinião, como os da jornalista Flávia Oliveira, do jornal “O Globo”.
No 9º ano, os estudantes leem “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak, “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, e “A Terra Dá, A Terra Quer”, de Antônio Bispo do Santos. As obras servem de repertório de redação e preparação para provas externas e seminários que acontecem em outubro.
Os professores realizam ainda seminários com assuntos como feminismo, mercado de trabalho, mito da democracia racial, racismo estrutural, entre outros. “Neste ano, criamos os ‘Jovens Embaixadores da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER)’, coordenado pela professora (da sala de leitura) Cristiane Borges. Cada turma envia dois alunos, que estudam temas como meritocracia, o ‘pacto da branquitude”, raça e racialidade. Depois de oito aulas, eles são responsáveis por multiplicar os conhecimentos adquiridos em sala de maneira efetiva”, explica Mônica.
O projeto é inspirado no “Território Educador” da GERER, segundo a professora. A iniciativa da secretaria atua na promoção da educação antirracista por meio de projetos, reflexões, materiais educativos e práticas pedagógicas.
A autoestima dos estudantes se fortalece desde o 6º ano do ensino fundamental, quando ingressam na escola. “No 8º , já apresentam conhecimento, vocabulário e percepções antirracistas. É um processo. Além da mudança de como falam e de alguns comportamentos, a questão da estética é notória, principalmente entre as meninas. Assumem os cabelos crespos e se autodeclaram lindas.”
Ex-estudantes mostram um sentido de pertencimento, de acordo com Mônica, ao replicarem os conhecimentos adquiridos e voltarem para contar que influenciam positivamente suas novas escolas.
Menos bullying, mais aprovações e autoestima fortalecida
As ações desenvolvidas com os estudantes são monitoradas por meio da análise dos resultados de avaliações externas e internas e pela participação no processo de ensino-aprendizagem, segundo a diretora-geral da escola, Carla Maria Brandão de Oliveira.
A gestora aponta a diminuição de casos de bullying e de violência. Ela reitera o impacto na autoestima , observando “a forma como as meninas usam seus cabelos, a naturalidade como (os alunos) se autodeclaram negros, buscando neles mesmos uma identidade própria, valorizando suas belezas e vendo com senso crítico os padrões de beleza impostos, principalmente, pela mídia.”
No dia a dia, é preciso “contagiar a equipe, tirar as pessoas da zona de conforto, aceitar novas metodologias e vertentes de pensamento e, acima de tudo, manter o trabalho, sem deixar que a rotina cansativa da escola desanime, pois os alunos são sedentos por novos desafios”, diz Carla.
A escola funciona de portas abertas para a comunidade, recebendo e acolhendo as famílias, que são convidadas a participar de todas as culminâncias, colaborando e atuando no processo. As estratégias mostram bons resultados também em processos seletivos. Em 2024, a escola teve 43 aprovações em instituições federais e estaduais, como o Colégio Pedro II, FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica), CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca), Instituto Federal do Rio de Janeiro e Escola SESI.
Despertar do olhar crítico e do orgulho entre os estudantes
Nas aulas da professora de espanhol Elisabete Macedo, os jovens comparam suas histórias pessoais com os temas estudados. Ela apresenta a eles personalidades negras e indígenas da cultura hispano-americana, além de políticos, escritores e artistas.
“Eles se tornam mais críticos em relação à realidade do lugar onde vivem, percebem, com mais facilidade, falas racistas em seu cotidiano e se tornam, sobretudo, adolescentes que lutam conosco por um contexto social livre dessa ótica preconceituosa.”
Assim como Mônica e Carla, ela percebe mudanças no comportamento das jovens. “Muitas alunas se tornam mais vaidosas, trançando os cabelos, usando o cabelo natural, fazendo penteados. E isso fica notório com o avanço dos anos na escola, pois, muitas vezes, essas meninas chegam tímidas (querendo se esconder, literalmente) e, de repente, se mostram com todo orgulho.”
Elisabete procura adequar a linguagem, a abordagem e o conteúdo às diferentes faixas etárias e níveis de ensino. Nos nonos anos, os estudantes são estimulados a terem mais protagonismo, aliando a língua espanhola ao contexto antirracista. “Quando proponho um projeto sobre cultura hispano-americana, por exemplo, muitos alunos já sentem a necessidade de apresentarem personalidades negras destes países. E eu fico muito feliz com isso!”
Como o ensino antirracista se articula com os conteúdos escolares
Baseada na lei, a abordagem da escola prepara os alunos não só para os exames e para a vida acadêmica, mas também para atuar de forma crítica e engajada na sociedade. “Trabalhamos diariamente os conteúdos de forma coerente e atualizada, sem deixar de contextualizá-los e alinhá-los a uma visão antirracista, humana, crítica e consciente”, explica Elisabete.
As aulas de história também incluem conteúdos étnico-raciais, segundo a professora Aline Silva. “Por meio da própria história do Brasil, da contribuição cultural afrodescendente que está presente no nosso cotidiano de forma incontestável, como na música, na dança, nos costumes e na política”.
Ela cita os sambas-enredo “Kizomba, Festa da Raça”, de 1988, da escola de samba Vila Isabel; “Pára Com Isto, Dá Cá o Meu”, do mesmo ano, da Império Serrano, e “História Pra Ninar Gente Grande”, de 2019, da Mangueira, como exemplos de temas de aulas.
Aline usa “outras formas de resistência no combate ao racismo estrutural” nas aulas, como palestras, debates, leituras e a exibição de programas, documentários e filmes, como “A Cor da Cultura”, “A Negação do Brasil” e “Quanto Vale ou É por Quilo?”.
A escola insere ainda a educação antirracista em matemática, com pesquisas, construção e ensino de jogos educativos africanos e estudos de conceitos matemáticos por meio da capoeira, da engenharia africana e das tranças, com apresentações em uma feira chamada “Afroetnomatemática”.
Em ciências, o estudo de astronomia inclui contos, narrativas e descobertas realizadas pelos povos africanos e indígenas, aulas sobre a origem da humanidade no continente africano e o estudo do conhecimento sobre plantas medicinais e a importância dos saberes ancestrais.
Caminhos para uma educação antirracista
O enfrentamento efetivo do racismo no ambiente escolar não pode ser visto como responsabilidade exclusiva das escolas, de acordo com Ana Paula Brandão, gestora do Projeto Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista (SETA) e diretora programática da ActionAid Brasil.
O Projeto SETA realiza pesquisas, formações e campanhas de mobilização em prol da equidade racial na educação, com o objetivo de dar voz e promover a mobilização e liderança de grupos representados por ele.
A iniciativa é uma aliança entre movimentos sociais e organizações negras, quilombolas, indígenas e feministas ligadas ao tema da educação, como ActionAid, Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), Geledés, Makira-E’ta e UNEafro Brasil.
“É fundamental que as secretarias de educação e demais órgãos públicos garantam condições estruturais e políticas de formação continuada para educadores, assegurem apoio técnico e institucional e promovam mudanças curriculares orientadas pela equidade racial”, diz Ana Paula.
As escolas precisam se preparar para o compromisso, formando corpos docentes, revisando currículos, adotando medidas preventivas e estabelecendo protocolos para tratar o tema de maneira ágil, responsável e transformadora, segundo a gestora.

“Trata-se de uma ação que demanda corresponsabilidade e articulação entre gestores públicos, comunidades escolares e a sociedade, com o objetivo de construir ambientes educacionais verdadeiramente inclusivos e antirracistas.”
Para que a abordagem tenha sucesso nas escolas, é importante que os profissionais da educação conheçam a legislação, o parecer do conselho nacional de educação sobre a lei, as diretrizes curriculares de Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), quilombolas e indígenas, os materiais, livros e pesquisas que já foram produzidos.
“Mas, mais importante ainda, que conheçam o seu público, seu corpo docente, seu corpo estudantil e suas famílias e territórios, assim poderão adequar o currículo escolar para torná-lo mais próximo de suas realidades.”
Por isso, ela explica que o Projeto SETA propõe como primeira intervenção a realização de um diagnóstico, “para entender quem é esse educador, sua realidade, como ele enxerga seus estudantes e seu nível de conhecimento da temática”.
Depois, essas informações são cruzadas com os dados oficiais sobre desempenho e características dos estudantes.
“Assim, respeitando e ouvindo os educadores, podemos construir juntos as melhores estratégias para cada realidade. Não temos uma metodologia única ou material didático exclusivo, ao contrário, fazemos a curadoria do que já existe, selecionamos as melhores soluções para cada local. Mas também oferecemos formação continuada, que foi desenvolvida junto com especialistas e que pode ser usada por todos”, conta Ana Paula.
Apoio contínuo e formação docente como pilares da mudança
A primeira etapa consiste no conhecimento da rede de ensino e do território. “Nela, o projeto oferece ferramentas metodológicas a fim de compreender a realidade da implementação de ERER na rede: fortalezas, fraquezas, desafios, obstáculos e acúmulos. Depois, é aplicado o Diagnóstico de Gestão Educacional na rede, e os resultados são analisados em conjunto com a equipe técnica da Secretaria e a equipe SETA, a fim de apresentar recomendações para o avanço da agenda na gestão local e a construção do Plano de Ação.”
Além dessas etapas, o projeto acompanha e avalia as ações implementadas junto às secretarias de educação, com foco na produção de um relatório que registra os avanços nos indicadores de institucionalidade de ERER e de equidade racial.
Não é uma tarefa simples implementar uma educação antirracista, segundo Ana Paula, “ainda mais em uma sociedade estruturalmente racista como a brasileira”. Ela ressalta que grande parte das secretarias de educação ainda não implementou de forma efetiva a Lei nº 10.639/03 – que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira nas escolas – e a Lei nº 11.645/08 – que incorporou também a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena.
A situação pode ser observada nas informações do Diagnóstico de Equidade, da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão) do MEC (Ministério da Educação), de 2024.
Entre os dados divulgados, o relatório mostra que “2.322 secretarias municipais (42,6%) responderam ter produzido alguma normativa para a implementação da Lei 10.639/2003, alterada pela Lei 11.645/2008. O percentual sobe para 74,1% quando se observam as redes estaduais.”
“Quando falamos de implementar a lei, significa transformar a escola, adaptar o currículo, formar professores, profissionais da educação, famílias e gestores, criar protocolos antirracistas, adquirir materiais e livros sobre essa perspectiva, enfim, transformar o ecossistema escolar. Isso demanda vontade política, orçamento e comprometimento. A legislação existe e precisa ser aplicada”, completa.





