Gamificação apoia o professor a desenvolver o hábito da leitura
Uso de conceitos de jogos pode apoiar objetivos pedagógicos diversos, desde que a experiência seja atrelada a um planejamento e narrativa de desenvolvimento.
por Maria Victória Oliveira 3 de setembro de 2020
Só quem já instalou algum jogo no celular sabe o quanto as missões e buscas por pontos podem ser viciantes. É do universo do jogo, ou melhor, da palavra game, que surge o conceito da gamificação. Entretanto, no que consiste esse termo quando aplicado ao contexto educacional?
Antes de mais nada, é necessário diferenciar o jogo em si de processos que usam o conceito dos jogos em contextos de não-jogo. Segundo Jean Tomceac, coordenador de educação do CIEB (Centro de Inovação para Educação Brasileira), enquanto os jogos são construídos com um fim em si mesmo, ou seja, propõem objetivos que devem ser alcançados no âmbito do jogo, a gamificação consiste na aplicação de características dos jogos, como a pontuação, ranking e uma narrativa, em um contexto diferente, como um conteúdo pedagógico.
Apesar da palavra gamificação marcar presença em discussões sobre inovação na educação, sua adoção enquanto processo dentro da escola não é algo novo ou exclusivo da tecnologia e de mídias digitais, conforme explica Danielle Brants, cofundadora e gestora da área de produtos da Árvore. Segundo ela, a metodologia já é utilizada por professores em sala de aula ou até mesmo em casa em família com as atividades rotineiras. De uma forma ou de outra, o que está em jogo aqui é a possibilidade construir uma narrativa.
É a narrativa que faz com que formulários com barras de preenchimento que indicam “etapa 1 de 4”, por exemplo, não sejam propriamente um processo gamificado, e sim um componentes da gamificação. “Uma atividade que envolve ganho de pontos pode parecer, a princípio, um processo de gamificação, porque ganhar pontos é um dos elementos, assim como a criação de rankings. Mas isso não é o percurso completo necessariamente, porque essa metodologia implica a construção de um storytelling, uma narrativa, ou seja, trazer o jogador para um ambiente mais lúdico, no qual você usa metáforas”, explica Danielle.
A importância do planejamento
Segundo a especialista, os atos de tornar uma atividade prazerosa e envolver conquistas, desafios e percepções de evolução e progresso são comportamentos inerentes do ser humano. É por isso que gamificação pode e deve ser aplicada a contextos educacionais. Para Jean, um dos passos decisivos para uma boa estratégia de gamificação na educação é aliar a metodologia a um planejamento, que passa por uma etapa de conhecer mais a fundo os perfis dos estudantes.
“No processo de gamificação, a personalização é um ponto forte. Então, o professor precisa saber se os alunos gostam ou não de jogar, que tipo de jogo gostam. Saber quem são seus estudantes e fazer um planejamento baseado nessas informações facilita a identificação de estratégias e elementos de gamificação que funcionam melhor e fazem mais sentido com cada turma, além de ter uma razão pedagógica. Aplicar a gamificação só por aplicar dá muito trabalho e pode ser que o educador não atinja seu objetivo.”
O coordenador também menciona a teoria ‘Flow’ para reforçar a potência do trabalho pedagógico com gamificação. De forma simplificada, flow é um estado alcançado pelas pessoas quando se veem submersas em assuntos ou tarefas e, com isso, deixam de perceber a passagem do tempo. “Juntar esse sentimento de ‘estar em flow’ com algum tipo de conteúdo pedagógico é muito rico, porque o aluno vai passar por um processo de aprendizagem e vai aproveitar e gostar daquilo, além de criar uma sensação de pertencimento no que está fazendo.”
Incentivo à criação do hábito de ler
Considerando que os elementos dos jogos podem ser adaptados aos mais diversos temas, conteúdos e disciplinas, a gamificação encontra espaço em qualquer aula. Durante a alfabetização do ensino fundamental 1, exemplifica Jean, é possível montar um percurso de rotação por estações. “Em uma estação, as crianças têm contato com letras criadas com palitos de madeira. Em outra, modelam os símbolos com massinha e, em uma terceira, interagem com o alfabeto recortado em cartolina. As estações podem ser interligadas por um caminho feito com fitas no chão. Deve-se ter um percurso claro e objetivo, unindo uma narrativa com ações simples e a proposta de passar por cada ilha.”
A mesma dinâmica também incentiva a criação do hábito de leitura. Grupos de discussões e clubes de leitura são alguns métodos para isso, assim como a criação de um passaporte da leitura, explica Danielle: a cada livro lido, o aluno ganha um carimbo em um passaporte, simulando os pontos de um jogo.
Além de reconhecer as conquistas, o processo de gamificação também deve ser calibrado para que, no fim das contas, crianças e jovens, sintam prazer em ler. “Construir e manter o hábito da leitura é algo difícil. Por isso, na Árvore, pensamos em como trazer elementos para que o aluno se sinta desafiado, passe por missões e tenha a sensação de progresso”, afirma a especialista.
Na plataforma, cada criança ou jovem deve escolher um livro e registrar seu progresso diário de leitura. À medida que avança, o aluno ganha gotas, metáforas para os pontos, que são usadas para regar uma floresta. A missão é ajudar o macaco Otto a reflorestar um ambiente que foi desmatado. “Se a pessoa fica sem ler dois ou três dias, ela deixa de ganhar gotas e as que já tinha são usadas para regar a floresta. Sem gotas, as árvores plantadas vão deixar de crescer. Usamos a metáfora da floresta em crescimento que, na verdade, é o desenvolvimento do aluno como leitor. O importante não é ler o livro inteiro de uma vez. Na nossa gamificação, o objetivo principal é promover e fortalecer o hábito leitor, então o disparador de progresso é a consistência de ler um pouquinho todos os dias na plataforma.”
Papel da tecnologia
Além de facilitar processos de interatividade e retornos avaliativos sobre as leituras, a tecnologia também pode apoiar a personalização de experiências de leitura gamificada a partir de dados e registros virtuais sobre como os alunos estão progredindo. “Os dados podem nos ajudar a trazer novos desafios aos estudantes que já evoluíram ou outros estímulos para aqueles que ainda enfrentam desafios na leitura. É uma forma de personalizar a experiência a partir dos dados”, explica Danielle.
Também depende da intencionalidade pedagógica do professor o grau de autonomia conferido a crianças e jovens durante esse processo. Segundo a representante da Árvore, é possível incentivar que cada aluno siga de forma mais individualizada, sendo o protagonista de seu próprio aprendizado, ou, ao mesmo tempo, propor um jogo colaborativo com a intenção de incentivar uma evolução conjunta, para que a turma possa desenvolver a habilidade socioemocional de colaboração.
Engana-se quem pensa que a gamificação serve apenas a crianças e jovens. Adultos também gostam de jogar e é possível aproveitar de elementos da gamificação para incentivar o hábito leitor também nos mais velhos. Cada usuário pode criar sua estante virtual, trocar informações sobre livros e socializar as descobertas com amigos.