Falar de diversidade é defender direitos humanos, diz Olga de Dios, ilustradora das infâncias
O Porvir entrevistou Olga de Dios, escritora e ilustradora espanhola que explicou como a literatura infantil pode abrir caminhos para falar com as crianças sobre raça, gênero, diversidade e direitos humanos. Um convite a educadores compreenderem o papel da arte na formação das infâncias
por Ana Luísa D'Maschio / Beatriz Cavallin
10 de dezembro de 2025
Um pássaro amarelo, de asas curtas, inventa uma mochila para voar. Monstro Rosa, rejeitado em uma cidade sem cores, encontra acolhimento em uma comunidade cheia delas. Monstro Azul, com seus longos braços desengonçados, ensina a abraçar e a ouvir sem precisar se comparar a ninguém. Bicho Bolota não encontra sua espécie, mas descobre que pode escolher o próprio nome e que não precisa caber em padrões, sejam eles de gênero ou de classificações binárias.
Esses personagens habitam os livros da autora e ilustradora espanhola Olga de Dios, referência na literatura infantil que aborda, com sensibilidade ímpar, temas como diversidade, liberdade e imaginação. Seus traços de cores vivas, com monstros e animais de olhos grandes e formas sem contorno que lembram desenhos da pré-escola, dão leveza a conversas profundas sobre preconceito, autonomia e diversidade familiar e afetivo-sexual.
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“Quando desenho um monstro, ele não tem gênero fixo, não tem um corpo correto, não precisa se encaixar em padrões. Isso me permite criar personagens livres, que não reproduzem papéis sexistas. Minha intenção nunca é perpetuar estereótipos”, explica.
Formada em ilustração e arquitetura, Olga acredita que o livro ilustrado é a primeira galeria de arte de uma criança, capaz de ampliar imaginários e formar uma visão antidiscriminatória do mundo. Para ela, a arte precisa ser política e, ao mesmo tempo, capaz de construir o impossível. Em suas páginas, imagina com delicadeza mundos sem racismo, sem sexismo, sem LGBTfobia e sem desigualdade. “Imaginar é um gesto político”, afirma.

Com um currículo de 15 livros publicados, sua obra chega ao Brasil pela editora Boitatá. A autora também disponibiliza gratuitamente, em seu site, versões digitais em espanhol. “Compartilhar é abrir mão do controle. O importante é que circule e chegue às pessoas”, diz.
Seu lançamento mais recente no Brasil, “Caderno de artista: para criar e pensar”, convida crianças e adultos a desenhar, experimentar e aceitar o erro como parte do processo criativo. As páginas em rosa neon nasceram de sua exposição “Spray Cocktail Party”realizada em Madri (Espanha), em 2021, e reforçam sua defesa da arte como espaço de liberdade e diálogo.
Neste final de 2025, Olga esteve em São Paulo (SP)* para uma série de eventos e conversou com o Porvir. Confira os principais trechos:
Porvir – Como nasceu a ideia do “Monstro Rosa”, seu primeiro livro lançado em 2016?
Olga de Dios – “Monstro Rosa” nasceu num momento muito específico da história da Espanha. Era um período confuso, marcado pela aprovação do casamento igualitário. Eu me lembro claramente de como setores conservadores – não apenas a extrema direita, mas também partidos tradicionais – reagiram com muita força, com discursos que diziam defender “a família tradicional”.
Esses discursos falavam de proteção das crianças, como se elas estivessem sendo ameaçadas pelo reconhecimento de famílias diversas. Foi um momento doloroso, pois parecia que todas as infâncias tinham que caber dentro de um único molde. Para mim, isso era terrível. Eu vinha refletindo há anos sobre o que significa a diferença e sobre como ela pode ser vivida como algo bonito e libertador – ou como algo que oprime e machuca quando não é aceita.
“Monstro Rosa” nasceu desse sentimento: o de ser diferente em uma sociedade que exige uniformidade. No livro, o mundo onde ele nasce é monocromático, rígido, padronizado – árvores iguais, casas iguais, tudo igual. É uma metáfora do mundo normativo. E então há outro mundo, para onde ele viaja, que é colorido, diverso, cheio de formas e possibilidades. Esse mundo não existe como um lugar específico: é um espaço simbólico. E sempre digo: esse mundo colorido não é um futuro distante. É algo que precisa começar agora, nos gestos cotidianos.
Porvir – Quando nasceu seu desejo de escrever e ilustrar livros?
Olga de Dios – Eu sempre desenhei. Mas só na vida adulta descobri o livro ilustrado como uma forma artística completa. Estava estudando arte e, de repente, percebi que esse formato me permitia juntar tudo: desenho, texto, design, narrativa, universo. Meu primeiro livro nasceu quando eu tinha 33 anos. E, curiosamente, eu não escrevia pensando na infância. Mas a infância se aproximou de mim. As crianças reconheceram meu trabalho, e isso mudou tudo.
Porvir – Seu traço se parece com o do desenho infantil. Isso é intencional?
Olga de Dios – Sim, completamente. Eu estudei arte, tenho formação técnica, sei pintar academicamente. Mas esse não é o objetivo dos meus livros. Meu objetivo é que as crianças sintam o desenho como algo próximo, possível, acolhedor. Quando alguém diz que meus desenhos parecem feitos por crianças, isso para mim é o maior elogio. As crianças têm um olhar livre, não preso às regras. A arte infantil e a arte contemporânea compartilham essa liberdade. Eu quero provocar essa sensação: “eu posso fazer isso também”.
Porvir – Por que seus personagens são monstros? O que te levou a essa escolha?
Olga de Dios – A escolha dos monstros e suas cores não é gratuita. Os monstros me oferecem liberdade absoluta de criação. Não quero reforçar papéis de gênero – e desenhar monstros me permite escapar disso. Eles não têm gênero fixo, não têm corpo “correto”, não precisam se encaixar em nada. Também não quero replicar estereótipos gráficos, como “menina de rosa”, “menino de azul”. Tento criar personagens que são abertos, que não carregam uma narrativa fechada. Não há um esforço consciente da minha parte para que os personagens não tenham representação de gênero, eu apenas não sei desenhar de outra maneira. Eu penso assim, sou assim, vivo assim.
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Porvir – Falar de diversidade com crianças é algo necessário?
Olga de Dios – É necessário desde sempre. A diversidade está nas escolas, nas ruas, nas famílias. Negar isso é negar a realidade. Não podemos ocultar das crianças aquilo que condiciona suas vidas. A diversidade não é um conteúdo “opcional”: é uma questão de direitos humanos. Falar de diversidade é defender direitos humanos, e isso deve acontecer desde cedo, de forma cotidiana e não excepcional.
Porvir – E quanto à política? É possível falar de política com crianças?
Olga de Dios – Dizer que algo é “apolítico” já é um ato político. A infância vive em sociedade. Ela sente as consequências das políticas públicas, dos discursos de ódio, das desigualdades. A extrema-direita está crescendo em vários países, inclusive no meu. Vi, no Brasil, o medo que alguns professores têm de falar sobre diversidade. Isso é muito perigoso. O discurso de ódio destrói comunidades, destrói vidas. Precisamos enfrentar isso com firmeza. Somos muitos, e somos fortes.
Porvir – Você acredita que a arte ajuda as crianças a se tornarem cidadãs mais críticas?
Olga de Dios – Sem dúvidas. A arte permite que crianças expressem sentimentos, ideias, perguntas. Ela abre espaço para múltiplos discursos. Ensina a escolher, a comparar, a construir pensamento próprio. Meu trabalho como artista é oferecer ferramentas para isso. A infância tem direito à arte, ao pensamento, à imaginação.
Porvir – Você disponibiliza seus livros gratuitamente em seu site oficial. Por quê?
Olga de Dios – Desde que comecei a publicar, entendi que uma obra deixa de pertencer apenas à autora e passa a ser de quem a recebe. No início, isso foi difícil, especialmente porque trabalho com personagens visuais e comecei a vê-los reinterpretados de maneiras muito diferentes nas escolas do mundo. Às vezes, simplificavam demais; outras vezes, ficavam até melhores do que os meus. Mas esse processo me ensinou que compartilhar é também abrir mão do controle e aceitar que a criação se torna coletiva. Com o tempo, percebi outra questão: meus livros eram publicados em vários países, mas não chegavam a muitos outros. Crianças de comunidades de outros idiomas me escreviam pedindo exemplares. Então entendi que precisava democratizar o acesso.
Porvir – Isso afetou sua parceria com as editoras?
Olga de Dios – Foi literalmente uma luta com as editoras — uma guerra de negociações, explicações e resistência. Consegui, em alguns contratos, garantir o direito de publicar versões digitais sob licença livre. Para mim, isso é cultura livre: permitir que uma criança da Colômbia, do Peru, do interior do Brasil ou da Espanha possa ler meus livros sem barreiras. Na página de download, escrevi: “Você está baixando este livro porque a autora quis que você pudesse acessá-lo”. É um gesto ético e político. E, sinceramente, não me preocupa se isso afeta as vendas. O importante é que as histórias circulem e cheguem a quem precisa delas.

Porvir – Seu livro mais recente lançado no Brasil, “Caderno de artista: para criar e pensar” surgiu a partir de uma exposição sua em Madri. É um convite à criatividade e a compreender o erro como oportunidade. Por que o erro é tão central no seu processo criativo? De que maneira ele orienta sua prática?
Olga de Dios – Eu trabalho com manchas, rabiscos, borrões. Às vezes, enquanto desenho, derramo tinta sem querer. Mas isso vira parte da obra. Eu não busco o “desenho perfeito”. Eu busco o gesto artístico vivo. Ensinar a criança a lidar com o erro é ensiná-la a ser crítica, a ser livre, a experimentar. É ensinar que o mundo não é sobre acertar sempre, mas sobre explorar.
Porvir – Como você vê o papel dos professores e dos mediadores na leitura?
Olga de Dios – É imprescindível. O livro é um ponto de encontro entre adultos e crianças. Cada leitura compartilhada cria um universo novo. Quando comecei, eu não entendia plenamente isso. Mas vendo professoras trabalhando com meus livros, vendo bibliotecárias mediando leituras… eu aprendi muito. Hoje, quando crio, penso também nesses mediadores. Eles ampliam o alcance dos livros.
Porvir – Algum professor em especial marcou sua trajetória escolar?
Olga de Dios – Tive professores que marcaram muito a minha vida escolar – alguns para o bem, outros para o mal. Quando eu era pequena, tive uma professora que foi o verdadeiro terror da minha infância (risos). Essas experiências negativas também formam quem somos. Mas, mais tarde, na Escola de Arte Pública de Madri, encontrei professoras completamente diferentes. Elas me deram asas, me ajudaram a confiar no meu trabalho e a acreditar no que eu podia criar. Foram fundamentais para o meu desenvolvimento artístico. A educação é essencial para construir igualdade na sociedade, e a arte dentro da educação é ainda mais importante. Desde cedo, as crianças deveriam ter contato com diferentes formas de expressão artística.
Porvir – Como você se vê, hoje, ao dialogar com as infâncias?
Olga de Dios – Eu me sinto muito afortunada. Aprendo constantemente com as crianças. Elas me mostram caminhos que eu não veria sozinha. Quero que meu trabalho esteja ao lado delas, não acima. Quero que sintam que têm voz, que têm o direito de imaginar, de criar, de existir como são. Sempre pensei muito em infâncias queer porque me remete à minha infância, mas hoje meu desejo é que meus livros cheguem à todas as famílias. Quero que os adultos saibam que não estão sozinhos, que educação é uma tarefa coletiva.
Campanhas que marcaram: do Unicef ao Ministério da Igualdade
Em 2022, Olga de Dios colaborou com o Unicef Espanha — fundo das Nações Unidas responsável por promover e proteger os direitos das crianças — em uma campanha pelo Dia Mundial da Infância. A iniciativa propôs um ateliê criativo no qual crianças de diferentes escolas foram convidadas a desenhar o mundo que desejam para o futuro. A partir dessas produções, a autora e ilustradora criou uma imagem final que sintetiza os principais desejos do grupo.
Outra iniciativa de destaque é o cartaz “Crescer com Orgulho”, criado para o Ministério da Igualdade da Espanha. A obra representa a diversidade por meio de personagens multicoloridos e transmite uma mensagem de acolhimento às famílias, especialmente às crianças, em um contexto de avanço dos discursos de ódio no país. O cartaz presta homenagem às pessoas que atuam diariamente pela construção de uma sociedade mais inclusiva e diversa, sobretudo nas primeiras etapas da educação, e está disponível para download em alta resolução.
*Olga veio ao Brasil com o apoio da AC/E (Acción Cultural Española), entidade pública voltada à promoção da cultura espanhola dentro e fora do país. A autora conversou com o Porvir logo após participar de um encontro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Clique aqui para assistir.





