Oportunidades e demandas para a educação técnica e profissional com o Novo Ensino Médio
Com 18 especialistas nacionais e internacionais, Seminário Internacional Juventude, Trabalho e Educação reforça importância de a educação incorporar novas tecnologias para formar alunos com competências técnicas e socioemocionais, de acordo com as novas demandas do mundo do trabalho
por Maria Victória Oliveira 1 de novembro de 2021
Diante de estimativas de que 14% dos postos de trabalho atuais desaparecerão em 15 a 20 anos e que outros 32% sofrerão profundas transformações, como aponta a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e que 36% dos empregos do futuro exigirão a solução de problemas complexos, de acordo com análise do Fórum Econômico Mundial, é necessário que a educação repense que estudante está sendo formado hoje.
O Novo Ensino Médio, que começará a ser implementado a partir de 2022, traz mudanças nesse sentido. O foco está no desenvolvimento de habilidades a partir de um modelo de aprendizagem mais flexível, com itinerários que permitirão aos alunos o aprofundamento em temas de seu interesse.
Entre eles, está justamente o de realizar uma formação profissional e técnica integrada ao ensino médio regular. Foi sobre as possibilidades desse novo arranjo o Seminário Internacional Juventude, Trabalho e Educação, realizado pelo Canal Futura em parceria com o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e o SESI (Serviço Social da Indústria), entre os dias 5 e 7 de outubro.
Ao longo de seis painéis, 18 especialistas de diferentes áreas abordaram os desafios da educação no Brasil, as transformações tecnológicas pelas quais o setor produtivo e a indústria estão passando e como isso altera as formas de trabalho nas fábricas com mais automação e robotização – bem como as expectativas com a implementação do Novo Ensino Médio e a expansão do itinerário de formação técnica e profissional.
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O ensino médio conectado com o desenvolvimento industrial
Gustavo Leal, diretor de operações do SENAI, apontou que cada vez mais as empresas exigem profissionais com base de conhecimento técnico associada a um perfil comportamental robusto, ou seja, que demonstrem raciocínio analítico, sejam criativos, capazes de resolver problemas e trabalhar em equipe.
Observando essa demanda, SESI e SENAI consideram o Novo Ensino Médio como oportunidade para propor novos processos de ensino e aprendizagem e qualificar os alunos da forma como o mercado está demandando. Nesse sentido, foi realizado um projeto piloto em 2018 em cinco estados com a metodologia “três mil horas em três anos”.
No primeiro ano do ensino médio, são 800 horas de aprendizados ligados à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) para a formação geral básica e 200 horas do módulo de iniciação do trabalho, no qual os estudantes recebem inúmeras informações para ajudá-los em seus processos decisórios a respeito de seu plano de carreira. Já no segundo ano, são 600 horas voltadas à BNCC e 400 horas de formação técnica, com os estudantes agrupados por área de interesse. Por fim, no terceiro e último ano do ensino médio, são 400 horas para BNCC e 600 horas de formação técnica. A partir de aprendizados e adaptações, o programa foi expandido para 23 estados e hoje é implantado em mais de 100 escolas do SESI e SENAI.
Especificamente no contexto brasileiro, o desafio é a escala, considerando o tamanho do país. Por isso, Gustavo pontua a importância da união de esforços para acelerar e ampliar a oferta de educação profissional e de nível técnico nesse modelo integrado.
“Os governos estaduais são os grandes protagonistas da oferta de ensino médio no país. Assim, temos estimulado os departamentos regionais do SESI e SENAI a se aproximar das secretarias de educação e mostrar que existe interesse da nossa parte em trabalhar junto. Em um território com densidade de atividade industrial, por exemplo, talvez seja mais interessante para a secretaria pensar em uma parceria com o SENAI para oferta dos cursos do setor industrial da região a redes públicas de ensino. Isso reduz custos, pois a educação profissional não é barata”, explica o diretor.
Como o ensino deve considerar as necessidades dos estudantes
Vitor de Angelo, secretário de educação do Espírito Santo e presidente do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), destacou dados socioeconômicos do Saeb 2019 (Sistema de Avaliação da Educação Básica) ao falar da urgência do tema: 70% dos alunos do 9º ano do ensino fundamental 2 tinham interesse em conciliar estudos e trabalho, o que não é o ideal.
Entretanto, Vitor defende que mais do que um desejo, trabalhar e estudar são necessidades incontornáveis, muito mais presentes entre estudantes da rede pública do que na rede particular. “O quinto itinerário do Novo Ensino Médio não ‘empurra’ ninguém para o mundo do trabalho. Ele qualifica pessoas que já tinham esse desejo para que estejam melhor preparadas.”
Um ponto de atenção, entretanto, é o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que não deve ser excludente para estudantes que se formaram no ensino técnico, como explica Vitor. “Se o aluno formado pelo ensino técnico profissional precisou trabalhar durante o ensino médio, presumivelmente ele precisará continuar trabalhando durante a faculdade, se optar por fazê-la. Se o estudante quiser continuar no ensino superior, ótimo. Se quiser parar [os estudos] no ensino médio, ele já sai com um diploma do ensino técnico e profissional integrado, não uma educação técnica apartada do currículo. Estamos falando da possibilidade de fazer um ensino técnico profissional integrado, dando sentido prático e contextualizando conhecimentos.”
Para Vitor, o Novo Ensino Médio não irá resolver todos os desafios da educação básica, mas representa uma oportunidade de promover um aprendizado integrado, contextualizado e qualificar, desde a educação básica, a mão de obra para o mundo do trabalho.
Ponto de vista da indústria
Gilberto Peralta, presidente do Grupo Airbus para o Brasil, compartilhou o ponto de vista da indústria e o desejo de o Brasil alcançar patamares de outras regiões, como a Europa, onde há um grande número de profissionais disponíveis e qualificados para que a indústria escolha os melhores.
“Gostaríamos que o Brasil tivesse mais formação técnica, pois dos 12% de estudantes que conseguem fazer o ensino médio e técnico, apenas 15% são de formação técnica de engenharia, manufatura e construção, por exemplo. O restante vai para outras áreas.”
Diante desse cenário de escassez de mão de obra, Gilberto comentou que a alternativa para a indústria é ela mesma formar os profissionais. Na fábrica de helicópteros da Airbus em Itajubá (MG), por exemplo, são recrutados estudantes com o ensino médio completo para que, depois de 10 anos de formação, estejam aptos e capacitados para trabalhar na montagem de uma aeronave.
Além disso, diante da proximidade da fase 4.0 da indústria, o executivo reforça que além de mais mão de obra qualificada a partir do ensino médio, as próprias indústrias também precisarão realizar um movimento de capacitar seus atuais colaboradores para atuar em um mundo onde inteligência artificial e robótica, por exemplo, são uma realidade.
Construindo juntos: o impacto das parcerias para a educação profissional
Qinxiang Gao, especialista em formação superior profissional e técnica na China e engenheiro elétrico de formação, usou seus 34 anos de experiência na área para fazer uma retomada histórica da educação profissionalizante no país.
A partir do estabelecimento da República Popular da China, em 1911, Qinxiang delimitou três períodos importantes. O primeiro, de 1949 a 1991, marcou a expansão de escolas de nível médio e técnico, onde jovens estudavam meio período e trabalhavam no outro. Essa primeira experiência de dividir o dia entre momento de estudo e de trabalho aconteceu na maior fábrica de algodão do país e, a partir disso, multiplicaram-se iniciativas semelhantes, com escolas de treinamento internas no setor industrial.
Em 1965, por exemplo, havia mais jovens cursando o ensino técnico do que o ensino médio regular. Hoje, 200 milhões de chineses são formados com habilidades para o trabalho, o que equivale a quase a totalidade da população brasileira.
Em 1992, todo o país fez a transição do sistema econômico planejado para economia de mercado, o que levou a novas adaptações em escolas e faculdades. Esse período durou até 2014, quando o Conselho de Estado da China emitiu um documento para acelerar o desenvolvimento da educação profissional moderna de um viés quantitativo de habilidades para um qualitativo.
Atualmente, quatro elementos compõem a educação profissional na China: empregos, cursos, competições e certificados. “Esses elementos formam um sistema de incentivo para que as pessoas aprendam mais, recebam mais treinamento para se desenvolver desde o nível iniciante e, assim, tornarem-se técnicos ou operários altamente qualificados.”
Além disso, Qinxiang comentou que, nos cinco anos seguintes a partir de 2014, houve um grande número de jovens com níveis altos e médios de qualificação profissional empregados por entidades da nova economia, como trens de alta velocidade, fabricação avançada, agricultura moderna, comércio eletrônico, serviços de turismo e de aviação, áreas que geraram 17,5 milhões de vagas de emprego.
Novos olhares
Na discussão sobre o cenário brasileiro, Rossieli Soares, secretário de Educação do Estado de São Paulo, reforçou, em primeiro lugar, que é necessário acabar com o preconceito que ainda existe diante da educação técnica e encará-la como mais uma opção para o desenvolvimento de competências dos jovens. Outro ponto que mereceu destaque, segundo o secretário, é a regionalização, ou seja, as necessidades de cada comunidade, assim como o tipo de indústria, e combinar essas informações à oferta educacional. “Não adianta termos um curso técnico maravilhoso se o jovem não vai ter ‘vazão’ porque estará preocupado com a empregabilidade.”
Além disso, considerando que, em muitos casos, jovens escolhem uma profissão por desconhecer todas as opções, o secretário pontuou que instruir crianças e adolescentes é uma tarefa conjunta. Na rede estadual de São Paulo, o componente Projeto de Vida está presente desde o sexto ano do ensino fundamental 2, com o objetivo de apoiar os alunos na conquista de seus sonhos e também mostrar-lhes outras possibilidades.
Potencial das parcerias público-privadas
Rodrigo Nobre Fernandez, professor da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas), comentou que apenas duas cidades no Brasil, Belo Horizonte e Contagem, ambas em Minas Gerais, já desenvolveram parcerias no âmbito de concessões com o setor privado, isto é, delegar responsabilidades relacionadas à construção e infraestrutura da escola e gestão, deixando a parte educacional para o setor público.
“Ainda não tivemos avaliações para verificar essa participação. Mas com certeza isso já deixa uma brecha, pois em tempos de recursos escassos, precisamos atrair novos investimentos. O setor privado é um braço muito importante e pode ajudar na construção dessas parcerias para o desenvolvimento de mais infraestrutura para escolas e cursos profissionalizantes.”
Segundo o professor, o contexto é pensar em alternativas para preparar a população para que tenha as capacidades técnicas exigidas para ingresso no mercado de trabalho atual, além de investir na disseminação de conhecimento sobre a natureza das parcerias público-privadas e na avaliação dos resultados das experiências já em andamento.
Modernização
Segundo Rossieli, o Brasil já conta com um incentivo, a Lei da Aprendizagem (Lei nº10.097/2000), que poderia ser mais bem aproveitada. “O que eu vejo é que ainda há uma dificuldade da indústria de todas as áreas em dar mais suporte à formação dos jovens”. Mas há espaço para melhorias, diz Rossieli, porque o setor privado tem mais capacidade de acompanhar o surgimento das novas tecnologias, possa ajudar a acelerar o processo de formação, em uma comparação com o que foi exposto por Qinxiang no caso da China.
A ideia é que exista um sentido para a aprendizagem do aluno em permanecer na empresa enquanto aprendiz e, em uma reformulação da lei, poder ficar o outro período aprendendo na escola.
Papel do gestor
Esse conceito de modernização – tanto da lei como das próprias tecnologias inovadoras que surgem a cada dia – precisa ser absorvido por todos. “Há um tempo falava-se em curso de datilografia. Os mais novos nem sabem o que é isso. Portanto, nesse cenário, o papel do gestor educacional é fundamental. Não podemos ficar presos, temos que ter uma capacidade maior de adaptação, pois é o que a vida nos exige hoje”, comentou Rossieli, inclusive reforçando a importância de modernizar aspectos da legislação brasileira para conferir mais celeridade aos processos.
Para Rodrigo, o gestor deve ser como uma ponte entre o que está acontecendo e o que é importante para a formação dos alunos no local onde atua. Não se trata apenas, entretanto, de criar novos cursos e formações. Um caminho possível é promover mudanças nos cursos já existentes, incorporando as atualidades.
Uma delas é uma base de conhecimento em tecnologia. “Contando da minha experiência pessoal, quando terminei o ensino médio e entrei no ensino técnico, falei ‘quero aprender tecnologia da informação porque acredito que isso vai abrir portas para várias áreas’. Acho que [o ensino de tecnologia] deve ser inserido no âmbito da formação profissional e no próprio ensino médio. As escolas precisam prover essa infraestrutura para que os alunos tenham capacidade de dominar ferramentas novas, o que será um diferencial em sua formação e para a própria atuação no mercado de trabalho”, explicou.