Qual o papel do material didático, seja impresso ou digital
Professores de escolas públicas e especialistas em educação avaliam o plano de troca de livros didáticos por materiais digitais na rede estadual de São Paulo
por Ana Luísa D'Maschio / Ruam Oliveira / Vinícius de Oliveira 11 de agosto de 2023
Desde o início de agosto, quando anunciou que não participaria do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático), recusando dez milhões de livros didáticos para os alunos que seriam entregues gratuitamente pelo MEC (Ministério da Educação), a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo passou a ser questionada sobre os impactos da medida. Naquele momento, a proposta era adotar apenas materiais digitais para alunos do ensino fundamental 2, elaborados pelas equipes da própria secretaria.
Em poucos dias, o plano precisou ser revisto. Entre as críticas da comunidade escolar à proposta, estavam a baixa qualidade do material digital, a abolição do suporte impresso e a falta de consideração das diversas realidades das escolas: das dificuldades de conexão à ausência de equipamentos. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) voltou atrás na decisão da total digitalização. A partir de agora, a orientação é que materiais de ensino criados pela secretaria devem ser entregues também no formato impresso para as escolas. “Vamos imprimir centralizadamente e distribuir esse material para as escolas. Então, o aluno vai ter o tablet e o material impresso disponíveis. Vai no gosto do freguês”, afirmou ao jornal O Estado de S.Paulo.
Renato Feder, secretário de educação investigado por conflito de interesses por sua empresa vender notebooks à pasta que comanda, segue no cargo. À Folha de S.Paulo, Feder disse que os livros escolhidos pelo MEC são superficiais. “Estamos desenhando uma escola sem Tik Tok, em que o aluno pega o caderno e presta a atenção no professor e no conteúdo desenvolvido pelo estado de São Paulo.” A nova decisão também não tem sido bem aceita pelos educadores.
Professores com dificuldades
“A aula é uma grande TV, que passa os slides em Power Point, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, define o secretário. “O professor perdia muito tempo escrevendo na lousa. Agora, em um clique, todo o conteúdo estará na lousa digital ou no aparelho de televisão da sala de aula.” Mas não é bem assim a realidade encontrada na escola, observa a professora de língua portuguesa Isabel*, que trabalha na rede estadual de São Paulo há mais de 20 anos.
“É como voltar para a época das cavernas. Eles nos disponibilizaram um material em PDF ou PPT para vincularmos às aulas. Trata-se de uma espécie de apostila parecida com slides, que não tem nada a ver com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). É um conteúdo defasado, de 15 anos atrás, e querem que os alunos ‘anotem’ isso de uma TV ou de um data show (aparelho que amplia as imagens de um computador, televisão ou aparelho de DVD para projeção em uma tela maior). Ou seja, acabo tendo que usar mais o quadro para passar as coisas do que as TDIC (Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação) propriamente ditas”, explica.
Severina*, professora de química do ensino médio, concorda com a colega, e acrescenta à lista a limitação do suporte digital para alunos e estudantes da rede pública, principalmente para os mais novos: poucos têm equipamento como um bom computador em casa e, quando contam com um celular, são mais simples, que não permitem baixar e manipular o material. “Às vezes a escola não tem muita internet e nossos celulares são recolhidos durante as aulas. Na televisão, eles passam o livro digital – a única matéria que conta com projetor, pelo menos onde eu estudo, é a de artes. Mesmo assim, gosto mais quando os professores imprimem atividades”, diz Isabela, estudante do 6º ano.
Muitos docentes passam pela mesma limitação. “Ainda não existe esse acesso maravilhoso à internet em todas as escolas, principalmente as mais afastadas. Há links e QR Codes indicados: precisamos clicar e, sem conexão, isso não funciona. Como vamos ter acesso completo?” questiona.
O Porvir questionou a secretaria sobre os pontos levantados pelas educadoras. A resposta está no final do texto.
Desigualdades digitais
Crystal Green, diretora de pesquisa da plataforma Hundred, instituição finlandesa que mapeia inovações educacionais, avalia que o maior desafio que redes ao redor do mundo enfrentam está relacionado à sustentação do programa digital. “Existe um alto custo e preocupações com o acesso. É preciso entender quais condições facilitadoras estão disponíveis para uma integração digital bem-sucedida”, disse ao Porvir, referindo-se a iniciativas que devem combinar formações intensivas para professores e um trabalho paralelo de conscientização das famílias, uma vez que parte da aprendizagem dependerá do que é feito pela criança em casa.
“Sem esses aspectos, o risco de aprofundar a desigualdade digital se torna iminente. As preocupações também se estendem às limitações pedagógicas dos dispositivos e à autonomia dos professores na tomada de decisões em sala de aula”, alerta. Se tais medidas não saírem do papel, a representante da Hundred considera que a implementação do programa se torna muito difícil. “As pessoas não usam ou não sabem como usar, mesmo que tenham acesso.”
Mariah Voutilainen, coordenadora no Hundred com experiência como professora de ensino fundamental nos Estados Unidos, ressalta a necessidade de se olhar para as diferenças socioeconômicas entre estudantes, seja dentro de uma mesma cidade, escola ou sala de aula. “Surgem problemas em que as crianças não têm acesso. Mesmo quando a família tem um dispositivo, ele pode não estar disponível para uso na escola. E até mesmo conseguir internet para muitas famílias pode ser muito desafiador devido ao custo”, pondera.
No Brasil, esse tem sido um cenário identificado por diferentes pesquisas, como a TIC Educação, antes e durante e após a pandemia. Ao longo do período de isolamento social, 39% dos alunos usam o próprio smartphone para acompanhar as aulas online, o que foi insuficiente para acompanhar de forma adequada as atividades síncronas ou assíncronas.
Digital: mais que digitalização de conteúdo
Em linha com um discurso manifestado desde a fundação do Porvir, como demonstrado no Guia Tecnologia na Educação, a adoção de tecnologia nas escolas não pode e nem deve se restringir a uma digitalização de textos e imagens. E muito menos precisa se preocupar em levar à sala de aula momento uma tecnologia ainda incipiente como a inteligência artificial generativa, que carece de diretrizes e referências de aplicação bem-sucedida.
Quando se fala em substituir o livro impresso por material digitalizado, perde-se o melhor dos dois mundos. Professora da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde também lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional, a professora Theresa Adrião desaprova a visão reducionista do que significa uso de tecnologia na educação.
Material digitalizado e padronizado, recurso que o governo do estado está a oferecer às escolas públicas, agora impresso, não corresponde ao sentido atribuído a recursos digitais
“Material digitalizado e padronizado, recurso que o governo do estado está a oferecer às escolas públicas, agora impresso, não corresponde ao sentido atribuído a recursos digitais”, diz. “Estes envolvem plataformas de acesso digital por estudantes e docentes, que permitiriam, ao menos em tese, o acesso a fontes complementares de informação por meio de links, acesso a aplicativos, entre outros”, explica a professora da Unicamp.
Para Theresa, entender o movimento da secretaria de São Paulo como substituição do suporte físico pelo digital também é um equívoco. “O livro, a leitura em papel e a possibilidade de reler, grifar e percorrer página por página são estratégias fundamentais para a formação do leitor. Essas práticas não têm substitutos. Por outro lado, o uso de aplicativos para enriquecer e exemplificar o movimento das células, ou para acompanhar o degelo de uma região enquanto se lê e discute textos sobre o aquecimento global, é muito bem-vindo.”
O que representa um livro didático
Ao mesmo tempo, apontar o livro didático como um ponto frágil é igualmente impreciso. Ele desempenha o papel crucial de auxiliar os estudantes a alcançarem os objetivos de aprendizagem delineados no currículo de uma disciplina específica ou domínio de conhecimento, conforme estabelecido por documentos oficiais como a BNCC.
Kátia Smole, diretora do Instituto Reúna, esclarece que o desenvolvimento de materiais didáticos se concentra na formação de habilidades, competências e conhecimentos específicos daquela área de conhecimento, longe de ser um processo aleatório. “Não se trata de uma simples coletânea, mas sim de um estudo completo, abrangendo a compreensão de como os alunos aprendem, a sequência apropriada para a apresentação e prática dos conceitos.”
Assim como o escritor de obra literária conta uma história, o autor do livro didático também precisa pensar em uma narrativa, que acompanha o estudante. “Existe todo um contexto que vai gradualmente se desenvolvendo para compreender não apenas ao longo do mesmo ano letivo, mas também entre diferentes anos letivos, a maneira pela qual o aluno irá aprender”, comenta Kátia.
E dentro da estrutura educacional brasileira, as salvaguardas deste processo de aprendizagem são delimitadas pelo PNLD que, segundo Kátia, “é um dos melhores exemplos de políticas educacionais de país e não de governo”. Junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o PNLD compra e distribui livros e materiais didáticos para professores e estudantes de escolas públicas de todo o país.
Antes de chegar às escolas, as obras também passam por avaliação de uma banca avaliadora, que pode interromper o processo. “Esse critério de qualidade de produção não é uma coisa intempestiva, não se produz de uma hora para outra, não se produz em um mês e não se traduz só em um conjunto organizado de apresentações em Power Point ou de textos justapostos”, afirma a especialista.
Ao longo do tempo, ressalta Kátia, o Ministério da Educação conseguiu formatar o programa de modo que ele se tornasse educativo também para autores e as próprias editoras sobre o que significa uma obra de qualidade. Isso significa que não pode haver erros de informação, conteúdo que manifeste preconceitos ou uma visão única a respeito de um tema.
Para além da parte conceitual, livros que passam pelo PNLD precisam ter impressão colorida, e contar com um manual que oriente o professor. “Quando um governo considera que tem condição de produzir o próprio material, precisa minimamente mostrar para sua comunidade escolar quem está produzindo e qual é a formação desses autores.”
Os livros didáticos selecionados pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático porque são baseados nos documentos oficiais mais recentes e isso se choca com o currículo de São Paulo, analisam as educadoras ouvidas pelo Porvir. “O currículo não respeita a reforma dos Parâmetros Curriculares do Estado de São Paulo (feita em 2008), tampouco a atualização feita após a vigência da BNCC”, diz Isabel*. “Como o governo do estado de São Paulo oferece apostilas e material próprio, você acaba ficando preso a eles, porque há obrigatoriedade de utilizá-los. Não dá para conciliá-los com livros do PNLD porque o conteúdo é muito diferente do que está na apostila. São materiais que só funcionam separadamente”, pontua a professora Severina.
Convivência do impresso com o digital
Uma vez em sala de aula, o material didático digital para esta fase da vida educacional, do 6º ao 9º ano, deve coexistir com o livro impresso, dada a falta de competências digitais de estudantes, especialmente aqueles que recém saíram do fundamental 1 e conviveram a maior parte do tempo com atividades desplugadas nas quais telas tinham um papel secundário.
“É importante que se trabalhe com a mescla dos materiais, pois estamos vivendo uma mudança de época, uma transição da leitura e da oralidade para uma leitura de telas. Ambas possuem prós e contras, especialmente porque é importante entender que os estudantes precisam se apropriar de tecnologia. Mas como disse é importante saber aprender e isso ocorre em processo, portanto, o livro não deve ser dispensado, a escrita também não”, afirma Ana Lúcia de Souza Lopes, professora do curso de Pedagogia e Licenciaturas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP).
Para beneficiar a aprendizagem, a tecnologia precisa estar ligada a uma intencionalidade pedagógica, para assim, abrir espaço para o desenvolvimento criativo, a mão na massa que permita a articulação entre teoria e prática em sala de aula. “Utilizar somente um suporte hoje não possibilita uma aprendizagem significativa aos estudantes”, diz Ana Lúcia.
Não se trata, portanto, de uma escolha entre um ou outro, digital ou impresso. A professora do Mackenzie considera que as telas permitem uma atividade imersiva, interativa e que mobiliza o leitor em direções. Já o material impresso tem muitas vezes outras perspectivas, envolvem outras funções cognitivas. “Cada uma delas exige uma ‘atividade’ leitora diferente. Pensar numa transposição gera experiências ‘pobres’ e que diminuem a possibilidade de o estudante ter experiências de aprendizagem significativas”, avalia.
Leia mais: Os caminhos da aprendizagem: como o cérebro funciona?
Utilizar somente um suporte hoje não possibilita uma aprendizagem significativa aos estudantes. Por isso, o mais importante é a intencionalidade pedagógica que possibilitará ressignificar as práticas de aprendizagem, de forma a se complementarem.
*Os nomes com asterisco nesta reportagem foram alterados para preservar a identidade das educadoras.
O que diz a Secretaria de Educação de São Paulo
Questionada pelo Porvir a respeito do material que tem chegado a professores e estudantes da rede e a baixa conectividade nas escolas que impede que conteúdo indicados em links ou códigos QR sejam acessados, a secretaria respondeu por meio de sua assessoria: “Atualmente, os alunos da rede estadual contam com mais de 900 mil dispositivos, entre notebooks, desktops e tablets, para acesso ao conteúdo digital nas unidades escolares. Em média, esse total permite o atendimento de até quatro alunos por equipamento em sala de aula. A Seduc atua para ampliar o número de equipamentos à disposição dos estudantes”.