Por que direitos humanos devem ser assunto prioritário na escola - PORVIR
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Inovações em Educação

Por que direitos humanos devem ser assunto prioritário na escola

Para Crislei Custódio, coordenadora educacional do Instituto Vladimir Herzog, vivenciar os direitos humanos e seus valores no cotidiano escolar apoia a formação de uma sociedade democrática

por Ruam Oliveira ilustração relógio 20 de janeiro de 2023

O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 coloca a educação como um direito humano, e, por isso, precisa ser respeitado e valorizado. Mas o que é a educação em direitos humanos? Como aplicá-la na escola?

A base de uma sociedade democrática passa por formar sujeitos que reconhecem a todos como pessoas de direitos. E a escola é o primeiro espaço onde as pessoas têm contato com o que é diverso, reconhecendo-se como parte do mundo e, portanto, é fundamental estarem expostas ao tema. Esta é a avaliação de Crislei Custódio, coordenadora educacional no Instituto Vladimir Herzog. Criada em 2009, a instituição sem fins lucrativos tem como objetivo preservar a memória de Vladimir Herzog (1937-1975), jornalista torturado e assassinado pela ditadura militar, promovendo que atraiam a atenção da sociedade aos problemas sociais.

“Educação e direitos humanos possuem uma relação intrínseca. É necessário que os/as estudantes vivenciem os direitos humanos e seus valores no cotidiano escolar”, afirma Crislei, também doutora e mestra em educação pela USP (Universidade de São Paulo). “Formar o sujeito para a vida em sociedade, na perspectiva dos direitos humanos, requer um aprendizado fundamental: o reconhecimento de todos/as/es como humanos e sujeitos de direito. Isso é a base de uma sociedade democrática.”

Confira a entrevista: 

Porvir – Direitos humanos e educação: qual a intersecção?

Retrato da professora Crislei Custódio
Crédito: Arquivo pessoal Crislei Custódio (Arquivo pessoal)

Crislei Custódio – Educação e direitos humanos possuem uma relação intrínseca não apenas pelo fato de que, como sabemos, o direito à educação consiste em um dos direitos fundamentais salvaguardados pela Carta de Direitos Humanos, mas também, porque uma das concepções que balizam a ideia de educação moderna é a de formação do sujeito para a cidadania e cidadania, à luz dos princípios filosóficos e políticos da sociedade moderna, passa pela ideia de democracia. Formar o sujeito para a vida em sociedade, na perspectiva dos direitos humanos, requer um aprendizado fundamental: o reconhecimento de todos/as/es como humanos e sujeitos de direito. Isso é a base de uma sociedade democrática.

Porvir – Por que é importante que esta temática esteja presente nas escolas?

Crislei Custódio – Em primeiro lugar, isso é importante porque a escola tende a ser o primeiro espaço em que os sujeitos se deparam com a pluralidade humana. É na escola que somos colocados diante da diversidade em suas variadas expressões. É na escola também que passamos a nos entender como parte de um mundo que nos precede e que nos transcende e do qual precisamos aprender sobre a cultura, a história, as formas de convivência. Nesse sentido, aprender sobre os direitos humanos propicia que, no processo de socialização e de subjetivação de crianças e adolescentes, os indivíduos se percebam como sujeitos de direitos e reconheçam os outros também como sujeitos de direito, aprendendo a coexistir na diferença, com base no respeito mútuo, e a proteger e defender a dignidade humana, a justiça social e os valores da democracia.

Porvir – Como a inserção do tema contribui para o desenvolvimento da cidadania nos estudantes?

Crislei Custódio – Para nós que atuamos no campo da educação e dos direitos humanos, há uma distinção conceitual importante de ser feita e que nos ajuda a pensar na formação das nossas crianças e adolescentes à luz dos direitos humanos. De maneira geral, entendemos que a relação entre educação e direitos humanos se dá em três dimensões:

a) educação sobre os direitos humanos: que consiste na tematização dos direitos humanos no processo de ensino e de aprendizagem. Ou seja, a ideia aqui é a de ensinar os/as estudantes sobre a história dos direitos humanos, sobre quais são efetivamente os direitos humanos, sobre as contradições em torno dos direitos humanos, sobre as implicações decorrentes do fato de a Declaração Universal dos Direitos Humanos ser produto do pensamento liberal do ocidente (e que, portanto, não pode ser compreendido sem se considerar a ideia de branquitude e de patriarcado, por exemplo), dentre outros. Ou seja, nessa perspectiva, os direitos humanos são tomados na educação como tópico do currículo escolar, exigindo uma abordagem inter e transdisciplinar.

b) educação para os direitos humanos: que diz respeito à formação de defensores dos direitos humanos. Assim, nessa dimensão, o que se tem é um aprofundamento na compreensão acerca das lutas sociais, da agenda atual e das formas de atuação para a defesa dos direitos humanos em diferentes setores da sociedade. O fortalecimento dos órgãos colegiados da escola e instâncias de participação (conselho de escola, associação de pais e mestres, grêmio estudantil, assembleias etc.) e a articulação com entidades, coletivos, movimentos sociais, fóruns e associações do território são fundamentais para o desenvolvimento da cidadania ativa por parte dos/as estudantes.

c) educação em direitos humanos: trata-se da educação nos valores dos direitos humanos. Nas palavras da professora Maria Victoria Benevides Soares, “A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas”. Nesse sentido, entende-se aqui que educar em direitos humanos se dá pelo hábito. Ou seja, para além de falar sobre e compreender como se atua na defesa dos direitos humanos, é necessário que os/as estudantes vivenciem os direitos humanos e seus valores no cotidiano escolar. Desenvolver a consciência acerca dos direitos humanos e a cultura do diálogo e do respeito mútuo implica que a escola repense as práticas institucionais, pedagógicas e organizacionais interpelando-se sobre como, no dia a dia, ela promove e afirma os valores dos direitos humanos nas ações.

Porvir – Como professores e professoras podem se preparar para falar sobre o assunto?

Crislei Custódio – É preciso que professores/as estudem sobre o tema, leiam, busquem formação continuada sobre a temática, mas, sobretudo, que se organizem coletivamente, enquanto escola, para aprender, debater e rever práticas, regras e o projeto político pedagógico da unidade educacional coletivamente. Promover uma cultura de direitos humanos requer a compreensão inicial de que essa é uma agenda de todos e todas envolvidos/as no processo formativo das crianças e adolescentes (professores/as, diretores/as, coordenadores/as, profissionais de apoio, profissionais da administração, famílias e atores e demais organizações do território).

Para balizar esses estudos iniciais, é importante que a comunidade escolar se debruce na leitura e análise do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e nas Diretrizes Curriculares para a Educação em Direitos Humanos. Recomendo também os cadernos do “Projeto Respeitar é Preciso!”, do Instituto Vladimir Herzog, para apoiar esse estudo.

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Porvir – A tecnologia está atualmente muito presente nas escolas. Como ela também contribui e influencia a promoção dos direitos humanos?

Crislei Custódio – A internet e as redes sociais são uma realidade e fazem parte da vida de todos/as nós, principalmente das novas gerações. Dessa forma, um trabalho pedagógico que tenha o letramento em direitos humanos como fio condutor para discutir temas fundamentais como a proliferação dos discursos de ódio, o cyberbullying, a desinformação é essencial e urgente. A utilização de recursos tecnológicos para a inclusão de todos/as e promoção da equidade também se faz primordial nesse contexto.

Porvir – Quais são as suas expectativas em relação ao tema na escola para os próximos anos?

Crislei Custódio – A crescente divulgação de casos e manifestações de racismo, xenofobia e discursos de ódio nas escolas demonstram que o desenvolvimento de uma proposta educacional e trabalho pedagógico comprometidos com os valores dos direitos humanos é urgente. Associado a isso, o impacto de projetos como o Escola sem Partido e das escolas cívico-militares, bem como a proliferação de notícias falsas e desinformação acerca do trabalho desenvolvido nas escolas (o tema do suposto “kit gay” e da implementação dos banheiros unissex como tópicos centrais na campanha de fake news que permeou o debate político das últimas eleições nacionais no país) tensionou as relações entre famílias e escolas e inibiu, em muitos casos, o avanço em discussões fundamentais acerca de questões de gênero, sexualidade e demais marcadores sociais da diferença no cotidiano escolar nos últimos anos. Ou seja, o crescimento de uma agenda neoconservadora, extremista e que flerta diretamente com o fascismo, inevitavelmente, atingiu e tem atingido as escolas. 

Diante desse contexto e em face da retomada de um projeto de governo comprometido com a democracia, o que eu espero é que as pautas caras aos direitos humanos voltem à agenda pública de maneira contundente, influenciando os debates e os projetos desenvolvidos pelas escolas. Além disso, o fortalecimento dos direitos humanos e o resgate do PNDH (Programa Nacional de Direitos Humanos) enquanto política pública propiciará, a meu ver, a necessidade de se promover programas de formação continuada de professores/as na temática.


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direitos humanos, ensino fundamental, ensino médio

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