Programa brasileiro ganha prêmio da Unesco com uso de inteligência artificial na educação
Agência da ONU reconheceu o trabalho da Letrus em escolas públicas do Espírito Santo, no qual 12 mil alunos e 400 professores utilizaram software que analisa redações e oferece orientações de forma imediata
por Luísa Pécora 22 de maio de 2020
O Programa Letrus, que utiliza inteligência artificial para auxiliar no letramento dos estudantes, tornou-se a primeira iniciativa brasileira a ganhar o Prêmio Rei Hamad Bin Isa-Al Khalifa, entregue desde 2005 pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Criado pela start up Letrus, o programa permite que o estudante escreva redações sobre diferentes temas e obtenha correções e orientações imediatas. Por sua vez, os educadores recebem dados e gráficos sobre o desempenho da sala e dos alunos individualmente, podendo utilizar estas informações para auxiliá-los e também na preparação e desenvolvimento das aulas.
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O programa já foi utilizado por mais de 65 mil estudantes brasileiros, mas a Unesco reconheceu especialmente o trabalho desenvolvido em parceria com a Secretaria de Educação do Espírito Santo em 2019. Durante um período de cinco meses, o software mobilizou 400 professores e 12 mil alunos do 3º ano do ensino médio em 121 escolas públicas. De acordo com a Letrus, 90% tiveram uma aumento nas notas de redações.
O foco do projeto no Espírito Santo foram as dissertações, de olho na preparação para o Enem (Exame Nacional de Ensino Médio). De acordo com Luís Junqueira, um dos sócios-fundadores da Letrus, o software atua para reconhecer padrões de escrita. “Conseguimos saber quais são os desvios ortográficos e gramaticais de cada aluno, a formalidade e informalidade que coloca no texto, a maneira como estabelece conexões entre ideias e sentenças e onde estão as propostas de intervenção social, importantes no caso do Enem. A partir desse mapeamento, conseguimos diagnosticar e dar direcionamento”, afirmou.
Para ele, o fato de o aluno receber um “feedback”(retorno avaliativo) imediato, sem ter de esperar o tempo naturalmente mais longo da correção feita pelo professor, é importante para estimular a reflexão. “A atividade de escrita é apenas um dos elementos, mas há também a leitura da proposta e da coletânea, o entendimento da regras do jogo e a percepção sobre quais elementos não podem ser deixados de lado. Saber sobre tudo isso de maneira rápida e dinâmica ajuda o aluno a entender que o processo de letramento envolve não apenas a escrita, mas também a leitura crítica do seu próprio texto”, disse.
Além do auxílio ao aluno, Junqueira acredita que o programa atua principalmente para resolver “dores” do professor, já que o processo de correção de dezenas de redações é longo e frequentemente feito fora do horário de trabalho. A plataforma busca otimizar o tempo dos educadores para que possam atuar de forma mais estratégica. “A gente não precisa ficar mapeando mecanicamente o que uma modelagem de inteligência artificial consegue fazer em escala”, afirmou Junqueira, fazendo a ressalva de que o software não diminui a importância do professor no processo. “O papel do professor na verdade se torna ainda mais fundamental: ele reorienta sua prática para a tomada de decisões estratégicas e para uma gestão de sala de aula engajadora.”
A Letrus também trabalha com os professores, gestores e secretarias de ensino oferecendo treinamento, acompanhamento e a entrega de informações que podem ser preciosas para todos os envolvidos no processo pedagógico. “Esta é outra grande dor que habita as entranhas do nosso sistema educacional: não olhamos para os textos dos alunos para fazer diagnósticos profundos, não sabemos se eles estão escrevendo melhor ou pior do que os alunos da década passada ou retrasada, não guardamos estas informações e não extraímos delas elementos importantes para a tomada de decisões estratégicas”, comentou.
Formado em Letras pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Junqueira era professor de Língua Portuguesa quando começou o projeto Primeiro Livro, no qual estudantes escreviam obras literárias que posteriormente eram publicadas. A iniciativa chegou à Fundação Casa em 2015, com o lançamento de livros escritos por 25 jovens internos, e motivou Junqueira a buscar ferramentas tecnológicas que facilitassem o acompanhamento dos textos. A partir daí surgiria a Letrus, fundada em parceria com Thiago Rached.
Atualmente, o software é utilizado por mais de 130 escolas particulares (incluindo as 36 da Fundação Bradesco) e a empresa fechou parcerias com as redes públicas de São Paulo e Ceará para apoiar escolas durante a crise do coronavírus, um projeto que ainda está em fase de pré-implementação. De sua criação até o ano passado a Letrus foi parcialmente financiada pela Fundação Lemann, que apoiou o projeto no Espírito Santo ao lado do J-PAL, o Laboratório de Ação para Pobreza Abdul Latif Jammel, ligado ao Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês).
Para o futuro, o objetivo é crescer e fortalecer a presença nas escolas públicas, algo que Junqueira define como “esforço épico”. “Temos de articular e estabelecer relações muito próximas com uma grande diversidade de instituições para conseguir sobreviver”, afirmou. Eles espera, porém, ver novas portas se abrirem após o prêmio da Unesco. “Já passamos pela fase piloto e temos maturidade para conseguir fechar parcerias mais significativas, que envolvam mais pessoas e entidades, realmente pensando no letramento como política pública.”
A premiação da Unesco reconhece duas iniciativas por ano, que recebem US$ 25 mil cada. A edição de 2019 contou com 113 iniciativas inscritas e tinha como tema “O uso de Inteligência Artificial para inovação da educação, do aprendizado e do ensino”. O outro projeto premiado foi o espanhol Dytective, uma ferramenta para diagnosticar casos de dislexia em apenas 15 minutos.