Projeto de intercâmbio educacional reúne representantes do Brasil, Paquistão e Quênia
Lideranças brasileiras, paquistanesas e quenianas participam do Programa South-South, projeto de imersão voltado ao intercâmbio entre especialistas responsáveis pelas reformas curriculares nos países do Sul Global
por Ana Luísa D'Maschio 14 de setembro de 2022
O mundo conheceu a luta das meninas paquistanesas pela educação por meio da história de Malala Yousafzai. Ao receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, ela disse não ser uma voz solitária: “Eu sou aquelas 66 milhões de meninas que estão fora da escola”. Mas seu caminho foi sedimentado por outras ativistas pela educação, e entre elas está Baela Raza Jamil. Especialista em políticas públicas, ex-consultora técnica do Ministério de Educação do Paquistão, ela está à frente da Idara-e-Taleem-o-Aagahi (Instituição Educação e Conscientização, em tradução livre), organização não-governamental focada em incentivar a criação de sistemas educacionais para todas as crianças, sem discriminação de gênero, classe, etnia e religião. Baela está no Brasil, acompanhada por outros 14 pesquisadores educacionais de seu país.
Direto do Quênia, John Mugo, diretor-executivo da Fundação Zizi Afrique, também desembarcou em São Paulo. Sua ONG também busca assegurar a crianças e jovens com maior defasagem educacional o desenvolvimento de competências, tanto escolares quanto para o mercado de trabalho. John faz parte de uma comitiva de 15 quenianos especialistas em educação.
Baela, John e os demais 28 integrantes das caravanas paquistanesa e queniana são convidados do projeto de imersão oferecido pelo Programa South-South. Voltado a lideranças do Sul Global para o compartilhamento de práticas e impulsionamento de coalizões que promovam reformas voltadas à educação básica em seus territórios, o Brasil é representado pelo Centro Lemann de Liderança para a Equidade na Educação.
A semana de palestras, iniciadas na capital paulista com representantes do Movimento pela Base e do Todos pela Educação, que compartilham os detalhes de criação, atividades e parcerias de ambas as iniciativas brasileiras, culminará na visita ao Centro Lemann, localizado em Sobral, no Ceará. O grupo conhecerá de perto o município cearense de 210 mil habitantes, que conta com indicadores exemplares, tido como a melhor rede educacional do Brasil por contar com quase a totalidade das crianças que aprendem a ler e a escrever na idade adequada.
Conexões entre Brasil, Quênia e Paquistão
Com o objetivo de fortalecer a ação de lideranças educacionais dos três países, a fim de promover uma rede transnacional e o intercâmbio entre especialistas, o Programa South-South é resultado da parceria entre o governo britânico (FCDO/UK) e o Education Development Trust (EDT) com atores educacionais de diferentes partes do mundo: Fundação Lemann e Centro Lemann (Brasil), Programa da Fundação Lemann na Blavatnik – Escola de Governo da Universidade de Oxford (EUA) e as ONGs lideradas por Baela Jamil e John Mugo, Idara-e-Taleem-o-Aagahi e Zizi Afrique, respectivamente.
A formação, que envolve esta semana de imersão no Brasil, vai durar oito meses, com encontros remotos e locais no Paquistão e no Quênia. A produção de materiais de referência fica a cargo do programa da Fundação Lemann em Oxford: serão guias, levantamentos e podcasts voltados aos líderes do Sul Global, responsáveis e comprometidos com as reformas educacionais em seus respectivos países.
“O governo britânico, financiador desse programa, apoia iniciativas no Quênia e no Paquistão. Eles entenderam que fazia sentido somarmos os esforços com o Brasil, pois existia um contexto de reformas educacionais sendo realizadas nesses países por atores bastante engajados”, explica Carla Vila, líder do Programa South-South pelo Centro Lemann.
Mesmo com contextos sociais e culturas diferentes das brasileiras, os desafios educacionais são bastante semelhantes. O Banco Mundial aponta que os países da região sul contam com resultados de aprendizagem inferiores aos alcançados nas nações da região norte e consultores entendem que as lideranças do Sul Global possuem mais afinidade para compartilhar práticas alinhadas às questões locais.
“Os três países têm a questão de garantir o acesso para todas as crianças: mesmo com toda a diversidade, é preciso garantir qualidade e equidade”, reforça Carla. “Muitos dos exemplos do Norte Global não conseguem ser trazidos de uma maneira tão próxima para a nossa realidade: são distantes, inserem-se em outros contextos. É muito rico fazer uma troca entre países que têm desafios semelhantes de instabilidade política, questões sociais e condições socioeconômicas que também chegam à escola”.
Reforma na educação queniana
No Quênia, o sistema educacional é composto por três níveis: oito anos de ensino primário obrigatório (começando aos 6 anos), quatro anos de ensino médio e quatro anos de ensino superior. A taxa de alfabetização, em 2028, era de 81,5% (85% de homens, 78,2% de mulheres). A despeito de 93% das crianças e adolescentes de 4 a 16 anos estarem matriculados, 4 em cada 10 crianças em idade pré-escolar estão fora da escola. Apenas 26% das escolas primárias possuem laboratórios de informática.
“Há muito o que compartilhar entre os três países, principalmente a vontade de melhorar a sociedade. Estar na mesma sala com tantos responsáveis por reformas educacionais é um momento para que eu, como líder de coalizões, fique energizado e possa ir mais longe”, afirma John Mugo. Admirador do educador Paulo Freire e do dramaturgo Augusto Boal, John foi um dos 10 finalistas do prêmio Africa Education Medal, que destaca líderes educacionais no continente africano.
A reforma educacional queniana, que levou ao currículo novos referenciais sobre o que as crianças devem aprender, começou em 2016. No Brasil, essa discussão passa pela implementação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e do Novo Ensino Médio nos últimos anos. “Também estamos aprendendo muito sobre como melhorar nossa própria implementação. Acho que tanto o Quênia quanto o Brasil estão nessa fase de, após aprovar um programa nacional, entender se ele está funcionando para que as crianças possam se beneficiar”, diz John.
Outra semelhança entre Brasil e Quênia, na opinião do diretor da Fundação Zizi Afrique, são as desigualdades socioeconômicas que acabam por impactar a aprendizagem. “Na nossa fronteira com a Somália, pouquíssimas crianças passam do primário para o secundário. São disparidades dentro do mesmo país. Temos muitas diferenças nos resultados de aprendizagem entre crianças de famílias ricas e de famílias pobres”, comenta.
Filho de pais analfabetos, John disse que, a despeito de todas as dificuldades, eles sempre acreditaram na educação como uma saída para os filhos. “Meus pais foram capazes de incentivar a mim e aos meus oito irmãos, mesmo não podendo olhar nossos livros ou checar se havíamos feito a lição de casa”, conta. A propósito, quando se fala de alfabetização de adultos no Quênia, John traz a força da questão cultural: homens costumam não voltar para escola porque “parece que estão reconhecendo fraquezas”. Sua mãe, por outro lado, frequentou aulas noturnas e aprendeu a ler e a escrever na língua materna para cantar as músicas do coral da igreja que frequentava.
“A reforma do currículo no Quênia adotou o empoderamento e o envolvimento dos pais como um dos principais pilares. Formamos uma Associação Nacional de Pais e estamos descobrindo como essa ligação entre a casa e a escola pode ser mais próxima. Pais e professores precisam trabalhar juntos para que a aprendizagem aconteça”, ressalta. “Mesmo assim, notamos avanços: nossa taxa de alfabetização é de 81,5%”, pontua o educador.
Desafios paquistaneses
O Paquistão tem um cenário ainda mais delicado. É o segundo maior país com crianças que não frequentam a escola: entre os 62 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar, estima-se que entre 18 e 23 milhões estejam fora da escola.
Em 2018, a taxa de alfabetização da população era de 62,3% (72,5% homens e 51,8% mulheres). O sistema educacional está dividido em seis níveis principais: creche (aulas preparatórias); primário (1º ao 5º ano); médio (6º ao 8º ano); matrícula (9ª e 10ª séries, certificado de ensino secundário); intermediário (11º e 12º anos, certificado de ensino médio) e programas universitários de graduação e pós-graduação. Somente 27% dos adolescentes de 14 e 15 anos estão matriculados no ensino secundário.
Baela Raza Jamil ressalta que a crise de aprendizagem foi ampliada pela pandemia e pelas inundações no Paquistão, que já afetam 15% da população: o desastre natural desalojou mais de 500 mil pessoas e já soma cerca de 1,2 mil mortos. “Precisamos de soluções ousadas que não apenas impactem a educação em cada país, mas também promovam a construção de coalizões e redes para a cocriação de materiais de referência e reformas educacionais relevantes, adaptáveis a diferentes realidades e com poder de escala”, afirma.
Para Baela, o Programa South-South está fazendo algo único no sentido de reunir três continentes para explorar possibilidades de coalizões para a reforma da educação de uma maneira fundamental, em escala. “Mas você sabe que fazer coisas como essa requer muito mais do que habilidade: requer um compromisso muito profundo por parte das partes interessadas, que acreditam que há algo que vale a pena perseguir para as próximas gerações”, comenta.
Comparativamente, diz Baela, os três países exalam incoerências políticas. “Mas, ao mesmo tempo, há uma vontade de mudar, apesar da influência política. O que faz com que as reformas se tornem mais sustentáveis e mais persistentes ao longo do tempo são quando um pai acredita nelas, um professor acredita nelas, uma criança acabará acreditando nelas, jovens e políticos podem acreditar”, afirma. “Este é o tipo de trabalho com o qual estamos comprometidos. Aprender é um direito”.
Sobre a questão de gênero no Paquistão, Baela comenta que há um caminho longo a se percorrer: apenas 25% das mulheres estão no mercado de trabalho. “Malala é um símbolo de coragem por levantar mostrar ao mundo que meninas e mulheres não estão tendo oportunidades iguais, e as vozes que defendem a educação das meninas são poderosas. Da mesma forma que Malala, muitos têm lutado por essa causa. E não são apenas as mulheres: os homens que vieram para essa semana de formação, que são funcionários públicos seniores e secretários, também têm levantado a voz pelos direitos das meninas”, diz a especialista, reforçando a importância do despertar político.
Alguns programas de proteção social estão sendo colocados em prática, para encorajar os pais a colocar as meninas na escola. “Em alguns distritos do país, os números mostram equidade [na proporção de meninos e meninas que frequentam a escola]. Durante a pandemia, muitos pais perderam seus empregos. Vimos, por meio dos nossos relatórios, que pela primeira vez há meninos que estão ficando para trás das meninas [no nível de escolaridade] porque os pais querem que eles trabalhem”, diz Baela.
“Neste caso, não é só uma questão de gênero: estamos falando de um grupo social em desvantagem. Vemos isso também por meio das piores formas de trabalho infantil encontradas no país, com meninos e meninas catadores de lixo. Temos um programa que os retira do trabalho forçado, qualificando-os e apoiando-os a finalizar o ensino médio”, comenta a ativista. Sua ONG, a Idara-e-Taleem-o-Aagahi, atua diretamente com os desafios de aprendizagem no território. “Por que as crianças não estão aprendendo? Como é que as escolas não estão funcionando? Essas têm sido grandes questões, que preocupam também o governo”. A especialista conta que, justamente por isso, a caravana que visita o Brasil busca encontrar soluções efetivas.
Na conversa com o Porvir, Baela diz ser maravilhoso ver atores movidos pelas mudanças educacionais. “São esforços que levam tempo, exigem visão, compromisso e as habilidades certas para fazê-lo. É preciso paixão e paciência. É isso o que viemos aprender aqui. Afinal, o futuro só é possível por meio da educação”, finaliza.