Projeto sobre identidades questiona narrativas históricas oficiais
Coordenadora conta como iniciativa envolveu palestras de líderes indígenas para refletir sobre como nos tornamos brasileiros
por Luce Elena Diogo da Silva 21 de agosto de 2019
Como construímos nossas identidades na diversidade? Esta é a pergunta que pretende mobilizar os estudantes que chegam ao 7º ano da Escola Viva, em São Paulo (SP). Neste processo de pesquisa, entra em jogo o que aconteceu nos encontros entre os povos originários, os europeus e os povos africanos escravizados. Também é na busca de respostas e até na necessidade de elaborar outras perguntas que colocamos em xeque a história escolhida como oficial e as histórias que resistiram ao apagamento.
Analisar diferentes narrativas é fundamental para o entendimento de quem somos e de quem queremos (ou não) ser. Nesta fase da escolarização, esse entendimento propõe diferentes olhares: um sobre o mundo e outro para si. A diversidade de identidades está ligada à diversidade de narrativas sobre como nos tornamos brasileiros ou como são inventadas outras possibilidades de nos pensarmos brasileiros.
Sabíamos que nossa tarefa como educadores seria a de criar uma trajetória em que nossos alunos pudessem fazer um duplo caminho: por um lado, investigar as narrativas em torno da invasão portuguesa, do processo de colonização e do tráfico de negros escravizados; por outro, investigar os efeitos dessas narrativas nas dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais no cotidiano dessas populações nos dias atuais.
Vale ressaltar que, nos últimos quatro anos, nossa equipe pedagógica dedicou-se a consolidar no currículo escolar a lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, escapando de qualquer tentativa de folclorização ou fetichização que marcou muitas escolas instituições, fortalecendo os estereótipos e calando a voz da população indígena e dos afrodescendentes. Nesse sentido, foi fundamental consolidar a ética do bem comum e do direito de existir de todas as formas de vida.
Para a primeira investigação, contamos com as aulas de história; para a segunda, desenvolvemos e organizamos tecnologias em uma aula que faz parte da grade curricular do ensino fundamental ao médio, a aula projeto. A tecnologia da entrevista foi significativa por inúmeros aspectos: formar um ouvinte, garantir o “lugar de fala” desses povos (evitando traduções ou interlocuções) e produzir afetos. A primeira entrevistada foi a professora Paula Cassimiro (mulher, negra, professora de educação infantil da Escola Viva), seguida por Kika de Almeida (mulher, portuguesa, mãe de uma aluna da Escola Vila) e David Karai Guarani (liderança Guarani do Jaraguá). Cada uma dessas entrevistas produziu efeitos muito além do que imaginávamos!
Trazer uma liderança indígena para a nossa escola significou a consolidação de um compromisso ético com esses povos, com o nosso currículo e com a formação dos estudantes. Um compromisso que precisa ser reafirmado todos os dias diante das tentativas do pensamento único, hegemônico e neoliberal.
David Karai trouxe a ancestralidade e espiritualidade de muitos povos originários. Apresentou-nos um modo de vida que desconstruiu estereótipos e preconceitos, falou sobre o que é ser um guarani no século 21, um povo que compartilha as tecnologias disponíveis para nós e também mantém suas tecnologias ancestrais, que valoriza as formas pacíficas de reivindicar direitos constitucionais e entende seu território como condição para a existência dos que já foram e dos que ainda vão nascer. Um povo que tem uma visão sagrada da natureza, assim como é sagrada a sabedoria dos mais velhos.
Como um mestre amoroso, David nos ensinou uma versão da história que não está nos livros didáticos, mas circula na escola pública dentro da aldeia e que está, desde o mês de agosto, no universo de conhecimentos construídos na Escola Viva.
Com essa bagagem, seguiremos nossas investigações no estudo do meio por algumas cidades do oeste paulista. Vamos confrontar as narrativas históricas e as marcas identitárias na arquitetura, nos monumentos e, principalmente, nos encontros que teremos com outros modos de vida.
Luce Elena Diogo da Silva
Mulher, negra, filha de Edvar e Alzira, chegou à Escola Viva em 2006 como professora de artes cênicas. É coordenadora do ensino fundamental (6º a 9º ano) desde 2012. Formada em pedagogia e artes cênicas, sempre acreditou na arte e na educação como caminhos para formar sujeitos capazes de atuar para o bem comum. Luce defende que as experiências poéticas e cotidianas, o estudo e a formação acadêmica são fundamentais para os profissionais da educação refletirem sobre a sua ação pedagógica e qualificarem o trabalho desenvolvido em sala de aula. No seu percurso na Escola Viva, realizou três pós-graduações: Artes, Psicopedagogia e Gestão Escolar. Desde 2018, é integrante do Bloco Afro Ilú Obá De Min. Luce acredita na pedagogia dos afetos, ou seja, que a trajetória escolar deve produzir formas de afetar e ser afetado, em um movimento constante de viver a vida pública e, assim, sonhar e produzir um planeta que acolha todas as formas de vida, um planeta justo e solidário. Entende que os jovens estudantes da Escola Viva desenvolvem ferramentas necessárias para o desenvolvimento da inteligência coletiva, pois é essa a inteligência necessária para encontrarem seu lugar na sociedade.