Projeto trabalha pertencimento social de crianças bolivianas
Com o propósito de acolher filhos da comunidade de migrantes bolivianos em São Paulo, iniciativa trabalha a interculturalidade e a valorização dos saberes originais
por Ruam Oliveira 10 de maio de 2022
“A minha pátria é a minha língua”, disse Bernardo Soares. O heterônimo do poeta português Fernando Pessoa, em seu “Livro do Desassossego”, expressa um sentimento de pertencimento que se relaciona diretamente com a linguagem.
E qual o peso de poder compreender e ser compreendido a partir de determinado idioma? Uma língua carrega consigo aspectos de nações como história e cultura e tem impacto fundamental nas vidas e maneiras de se relacionar das pessoas.
Foi olhando para essas questões que Danielle Yura e Rocio Quispe, servidoras do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), criaram o projeto PertenSer. Com essa grafia, aparentemente “errada”, a mensagem é de acolhimento.
Os objetivos centrais da iniciativa são trabalhar a interculturalidade com migrantes residentes do entorno da instituição. Localizado no Canindé, em São Paulo (SP), o IFSP fica próximo à Praça Kantuta, um espaço de convivência e socialização da comunidade boliviana e um bom local para trabalhar as questões suscitadas pelo projeto.
Populações de migrantes internacionais têm crescido nos últimos anos. O Brasil abriga atualmente mais de 1,3 milhão de migrantes. Entre 2011 e 2020, a maior parte dessas pessoas vieram da Venezuela, Bolívia, Haiti, Colômbia e Estados Unidos, de acordo com dados do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais).
Em parceria com o coletivo “Si, Yo Puedo”, formado por voluntárias e voluntários de várias nacionalidades, entre elas Rocio, que é boliviana, o PertenSer começou como a ideia de auxiliar crianças bolivianas no aprendizado da língua portuguesa, explica Selma Regina Olla, uma das coordenadoras do projeto. Em pouco tempo, a equipe acabou percebendo que as dificuldades em relação a esse tipo de aprendizagem eram semelhantes às encontradas em crianças brasileiras não migrantes.
A partir dessa percepção, a coordenação reestruturou o projeto para trabalhar a interculturalidade – que, em linhas gerais, trata de quando duas ou mais culturas se relacionam entre si, sem que exista uma relação de desequilíbrio entre elas, ou seja, sem que uma cultura se sobreponha à outra.
Além de rodas de conversa no campus do IFSP, o projeto também prevê a ida a museus espalhados pela cidade, como o Museu do Imigrante, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu do Futebol. Essas excursões fazem parte do pano de fundo de discussão sobre localidade e pertencimento. Geralmente ocorrem, antes das saídas, algumas atividades prévias que preparam a turma para o que vão encontrar nas exposições.
Desde 2017, o projeto atendeu 50 crianças, com idade entre 9 e 12 anos, de diferentes nacionalidades latino-americanas, sobretudo bolivianas.
Múltiplos saberes
Quando se pensa na língua como um dos fatores trabalhados no projeto para fortalecer o sentimento de pertencimento, Selma aponta que geralmente existe um ideário de língua que é inclusive reproduzido nas escolas. A ideia de que exista uma língua culta e que não leva em consideração as construções feitas pela população migrante.
“É muito interessante a gente pensar que existem várias línguas portuguesas. Você tem a língua da sua comunidade, do seu bairro, da classe social, da sua faixa etária (…) A gente é feito de multiplicidade, mas condicionado a acreditar que falamos uma única língua”, diz Selma.
A educadora chama a atenção para a importância da valorização da língua porque, muitas vezes, observa-se que as próprias famílias não incentivam que os filhos falem os idiomas de origem porque acreditam que eles não são socialmente aceitos ou não são considerados “úteis” para uma possível inserção social ou até mesmo pensando mais adiante, no mundo do trabalho.
Helena Camargo, que também é coordenadora do projeto, destaca que houve a necessidade de trabalhar com as crianças até mesmo a percepção de que elas são migrantes e que entendam a própria comunidade.
“Quando a gente falou: “Quem nasceu em outro país e decidiu vir morar aqui é um imigrante”, e aí eles começaram a [perguntar]: “Meu pai nasceu na Bolívia e mudou para cá, então ele é migrante?” ou “Eu também nasci na Bolívia e vim para cá pequeno, eu sou migrante?”. E sempre enfatizando que todos somos cidadãos iguais não importa onde se tenha nascido”, diz Helena.
A educadora comenta que também há uma preocupação em relação ao bullying vivenciado pelas crianças andinas na escola. Ao fazê-las compreender um pouco mais sobre a importância e valorização da cultura andina, eles têm como objetivo fortalecer a visão positiva de pertencimento e incentivar a formação de grupos que os ajudem a se proteger de situações de bullying.
Apoio estudantil
Além da equipe de coordenação, o projeto também abre portas para que alunos de licenciatura do Instituto possam atuar diretamente com as crianças, e recebam uma bolsa para atuar no programa. Selma explica que há reuniões de formação e preparação para que os estudantes tenham o máximo de informação antes de iniciar o trabalho com as crianças.
“A gente faz um encontro formativo, sempre com uma leitura mais direcionada para a questão da decolonialidade e da interculturalidade. Depois a gente prepara materiais didáticos para as oficinas de sábado com as crianças”, explica Selma.
Os materiais didáticos pensados pela equipe vão desde trabalhos sobre letramento literário, histórias e contos andinos, até como são as vivências de um Xamã.
Selma conta que as formações de preparação para os bolsistas são contínuas por meio de reuniões semanais.
Não é tão comum que estudantes de graduação tenham contato com esse viés da educação, apesar de que tê-lo pode fazer toda a diferença na carreira docente a longo prazo.
Helena acredita que temáticas voltadas à migração tendem a se tornar cada vez mais presentes na vida e no contexto brasileiro e, por isso, ter contato com o assunto já na graduação é muito significativo quando se pensa em uma educação antirracista.
“É muito provável que os professores tenham alunos migrantes [num futuro próximo] e é muito importante eles estarem sensibilizados para essa diferença linguística e cultural para poder acolher”, diz Helena.
As atividades do projeto PertenSer ocorrem aos sábados pela manhã no IFSP. Ainda não há data prevista para o início do projeto em 2022.