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Inovações em Educação

Quando humor ultrapassa o limite e vira intolerância ou racismo em sala de aula

É importante não silenciar diante de cenários de racismo no ambiente escolar, mesmo que apareçam disfarçados de brincadeiras

por Ruam Oliveira ilustração relógio 22 de maio de 2023

Há muito se debate quais são os limites do humor. Apesar de antiga, a discussão sempre ressurge quando uma piada considerada ofensiva – ou de fato ofensiva – ganha palco nas conversas on e offline. 

A escola, como parte da sociedade, não está livre de vivenciar momentos nos quais piadas que ferem os direitos humanos resultam em discriminação contra professores, estudantes e demais integrantes da instituição. Discriminação não é bullying e nem mesmo pode ser interpretada como brincadeira. O que fazer então nesses casos? 

Racismo geralmente é o que mais aparece em muitas dessas “piadas”. De acordo com Iara Viana, assessora da subsecretaria de Desenvolvimento da Educação Básica na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, as bases para evitar que situações como essas continuem se repetindo é criar uma escola com princípios antirracistas, na qual diferentes atores da comunidade escolar se engajam para pensar estratégias educativas, reflexivas e preventivas. 

Muito do que é considerado humor, na verdade, é “racismo recreativo”. O termo foi aprofundado por Adilson Moreira, doutor em Direito Antidiscriminatório pela Universidade de Harvard (Estados Unidos), no livro “Racismo Recreativo”, que faz parte da coletânea “Feminismos Plurais”, organizada pela socióloga Djamila Ribeiro. Em linhas gerais, esse tipo de racismo se manifesta por meio de “piadas” ou “brincadeiras” que associam características físicas e/ou culturais de pessoas pretas e indígenas a algo negativo ou inferior. 

“Palavras expressam um consenso social dos membros do grupo majoritário sobre o valor de pessoas que pertencem a minorias raciais. Por esse motivo, o humor racista deve ser interpretado dentro do contexto social no qual ele está inserido, e não apenas como uma expressão cultural que objetiva produzir um efeito cômico”, afirma. 

Iara ressalta que as relações raciais no Brasil ainda são marcadas por contradições, e mesmo diante das evidentes desvantagens sociais vivenciadas pela população negra, ainda há segmentos da sociedade que negam a existência do racismo, tanto oficialmente quanto no senso comum. Para estar preparado para lidar com essas questões, a formação continuada é uma forte aliada. 

Palavras expressam um consenso social dos membros do grupo majoritário sobre o valor de pessoas que pertencem a minorias raciais.

Iara Viana, assessora da subsecretaria de Desenvolvimento da Educação Básica na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais

“Acredito que os professores precisam compreender que a promoção das relações étnico-raciais e do combate ao racismo não são optativas ou negociáveis. Estão previstas na legislação, por intermédio das leis 10.639/03 e 11.645/08. Independentemente de crenças pessoais, lacunas na formação inicial ou continuada, são ações inerentes ao fazer pedagógico dos docentes”, afirma Joana Oscar, coordenadora na Coordenadoria de Diversidade, Cultura e Extensão Curricular da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (RJ).

Uma pesquisa recente realizada pelo Instituto Alana e pelo Instituto Geledés destacou que 71% das cidades brasileiras ainda não implementam a lei 10.639/03, que se destian ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. O levantamento foi feito a nível nacional, com a participação de 1.187 secretarias municipais de educação. 

E quando acontece uma situação de humor racista, o que fazer? 

As abordagens podem ser diferentes, mas o ideal é que nenhuma manifestação racista seja ignorada. Iara avalia que, ao se deparar com qualquer manifestação ofensiva, o professor deve interromper a aula imediatamente e iniciar outro tipo de debate, contextualizando que os atos de racismo são considerados crime, fazendo as advertências devidas, informando à direção e solicitando uma conversa com a família. 

“É muito importante que o estudante (alvo da piada) seja acolhido com ações que o fortaleça diante da turma e não o afaste de seus pares, criando ali mais um estigma de que o ‘oprimido’ é o responsável por aquela situação de desconforto na turma. Os educadores devem usar o fatos concretos, ser diretos e objetivos para explicar que o racismo foi e continua sendo uma construção arquitetada, que mata jovens, que os afasta da escola e que fere a dignidade humana dessas pessoas”, sugere. 

Joana Oscar recomenda a condução de estratégias organizadas, pensadas com calma. “Tendo a crer que a intervenção pedagógica só é de fato construtiva e efetiva quando é planejada. Por isso, não acho adequado que o aluno seja abordado diretamente, porque, em vez de aproximar e gerar debate, pode ser constrangedor e reforçar outro tipo de violência, que são as relações de poder professor-aluno, direção-aluno, aluno-aluno”, reflete.

Assista ao vídeo “Recriar a escola com perspectivas afro-brasileiras” com a educadora Iara Viana. Vídeo: Instituto Alana / Reprodução.

A educadora ressalta que um tempo de observação, registro e diagnóstico pode ser positivo. Com base nesses dados, as escolas podem construir estratégias diversificadas que, inclusive, tragam a participação dos estudantes. 

A temática do antirracismo deve estar presente em diferentes contextos, níveis e etapas de ensino, de maneira que intencionalmente seja contrária a qualquer forma de discriminação, aponta Iara.

“Construir, ao longo do ano letivo, momentos que ampliem o repertório racializado dos estudantes é urgente. Apresentá-los autores e autoras negros e negras, suleados, lugares de destaque que essas pessoas devem ocupar por direito, as grandes invenções científicas de negros e negras, indicando as contribuições desta parcela da população para toda sociedade brasileira, ou seja, combater o eurocentrismo, muitas vezes imposto no nosso material didático”, sugere. 

Qual é a graça?

Com este título, o professor Luiz Henrique Rosa, da Escola Municipal Herbert Moses, no Rio de Janeiro (RJ), ao perceber que os xingamentos, apelidos e piadas eram constantes, propôs um projeto. A iniciativa com os alunos foi capaz de desconstruir preconceitos, promover autoidentificação e valorização de autoestima, contribuir para ambiente de relações mais positivo e inclusivo, além de gerar uma ampliação para a escola como um todo, tornando-se um exemplo de uma ação que também pode ser implementada em outras unidades. Quem conta é a professora Joana, que também é responsável pela Gerência de Relações Étnico-Raciais da secretaria municipal.

Assista ao vídeo sobre o projeto

“Batizei-o com esse nome porque, com ele, eu podia questionar vários eventos que aconteciam na escola: Qual é a graça de fazer piada com um grupo humano que foi sequestrado de sua terra natal e torturado em nosso país? Qual é a graça de magoar os outros?”, disse o professor Luiz em entrevista à secretaria do RJ. 

Outro projeto interessante sugerido por Joana Oscar vem dos estudantes do ensino fundamental 2 da Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos. Eles criaram o grupo “Mediadores de Conflitos”, no qual apuram situações conflituosas e, junto com a equipe pedagógica, pensam em formas de intervenção. 

“Essa ação oportunizou o fortalecimento das lideranças dos próprios de alunos, o engajamento da escola toda, a promoção da cultura do diálogo e do entendimento, a pesquisa sobre diferentes formas de intervenção em conflitos e também a resolução de conflitos de diferentes naturezas, não só as raciais, mas também o bullying, a gordofobia, a homofobia, a intolerância religiosa, as discordâncias de posicionamentos políticos, entre outros temas”, conta Joana. 

Influências nas redes sociais 

A temática voltou à discussão recentemente devido à remoção de um especial de um comediante brasileiro do YouTube a pedido da justiça. Durante o show, o humorista fazia piadas sobre escravidão, pedofilia e incesto, por exemplo. 

Esse conteúdo, reproduzido em diversas plataformas de redes sociais, está à disposição de crianças, adolescentes e jovens que utilizam a internet. Uma maneira de trabalhar essas questões é apresentar à classe elementos contranarrativos. “Assim como há influenciadores digitais que vendem posturas antidemocráticas, também há uma gama de conteúdo que pode não estar circulando com a mesma velocidade por motivos óbvios, que envolvem tanto os algoritmos (que influenciam mercado, opiniões e sedimentam padrões) tanto pela manutenção intencional de violência que são promovidas por certos grupos”, reflete Joana. 

Alguns exemplos podem ser usados para influenciar a turma e incentivar o debate, como o Projeto Querino, idealizado pelo jornalista Tiago Rogero e o podcast “Mano a Mano”, apresentado pelo rapper Mano Brown. 

Sozinhos, os educadores podem fracassar nessa formação integral. O trabalho deve ser feito por todos – secretarias, especialistas, coordenações pedagógicas, gestores escolares e famílias – na maneira de usar as redes sociais e interagir com os conteúdos ali disponíveis, comenta Iara

“Vale a pena nos atentarmos para duas análises frente a esse desafio: primeiro, criar possibilidades de formação continuada de professores, para melhor formar e informar os estudantes acerca dos artefatos tecnológicos, não apenas como recursos de ensino e de aprendizagem, mas também como maneiras de se expor a riscos na internet. Segundo, desenvolver uma cidadania digital, apostando na linguagem juvenil, de forma que eles traduzam os repertórios científicos raciais e de gênero em letramentos afirmativos nas redes sociais. Seria como criar uma ‘onda’ de postagens que educam, formam, informam sobre os direitos humanos e o respeito às diferenças”, diz. 

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